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Por Ezikelly Barros para o JOTA
Atualmente, na doutrina e na jurisprudência, muito se discute acerca de qual órgão do Poder Judiciário é o competente para processar e julgar as ações que versem sobre os interna corporis dos partidos políticos brasileiros, isto é, os atos intrapartidários.
O cerne dessa discussão gira em torno da natureza jurídica das agremiações. A despeito de os partidos políticos terem sido reconhecidos como associações de caráter privado pelo primeiro Código Eleitoral brasileiro (Decreto n. 21.076/1932)[1] — o Código Assis Brasil —, com a aprovação do quarto Código Eleitoral (Lei n. 1.164/1950), durante o Governo Dutra, as greis tornaram-se pessoas jurídicas de direito público interno[2].
Sob a égide do Regime Militar, foi aprovado o quinto Código Eleitoral (Lei n. 4.737/1965) — ainda vigente — que silenciou sobre essa natureza em razão da aprovação, simultânea, da primeira Lei Orgânica dos Partidos Políticos (LOPP) que reafirma:
LOPP (Lei n. 4.740/1965). Art. 2º. Os partidos políticos, pessoas jurídicas de direito público interno, destinam-se a assegurar, no interesse do regime democrático, a autenticidade do sistema representativo. (grifo nosso)
A Constituição Cidadã de 1988 — atendendo aos anseios liberalizantes da redemocratização — além de assegurar ampla liberdade e autonomia às agremiações partidárias, no art. 17, restabelece a natureza jurídica de direito privado, posteriormente regulamentada pelo art. 1º da Lei dos Partidos Políticos (Lei n. 9.096/1995).
Assim, segundo o magistério de Augusto Aras, os atos praticados pelos partidos políticos passaram a ser classificados em três espécies: i) atos partidários simples (atos intrapartidários); ii) atos partidários qualificados (atos intrapartidários que influenciam diretamente o processo eleitoral); e iii) atos partidários propriamente eleitorais (atos praticados pelos partidos durante a eleição)[3].
Dessa forma, para a corrente majoritária[4], quando a ação judicial for proposta contra ato partidário simples — os atos intrapartidários que não influenciam o processo eleitoral e que não são atos propriamente eleitorais das greis — a natureza jurídica privada dos partidos atrai a competência residual da Justiça Comum Estadual. Esse entendimento foi firmado, desde o início dos anos 90, pelo Tribunal Superior Eleitoral, verbis:
“COMPETÊNCIA – AÇÃO ORDINÁRIA ANULATÓRIA – ATO DE ORGÃO DE DIREÇÃO DE PARTIDO POLÍTICO – INTERVENÇÃO. VERSANDO A AÇÃO A INSUBSISTÊNCIA DE ATO DE INTERVENÇÃO A ENVOLVER ÓRGÃOS DE PARTIDO POLÍTICO, A COMPETÊNCIA PARA JULGÁ-LA NÃO É DA JUSTICA ELEITORAL, MAS SIM DA JUSTICA COMUM”.[5]
Assim, com o voto de minerva do então Presidente Ministro Marco Aurélio Mello, o TSE passou a declinar da competência para julgar os atos partidários simples (atos intrapartidários) em favor da Justiça Comum, restando à jurisdição eleitoral apreciar apenas os atos partidários qualificados (atos intrapartidários que influenciem diretamente o processo eleitoral)[6] ou os atos partidários propriamente eleitorais (durante a eleição).
Nesse mesmo sentido firmou-se a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao afirmar que “compete à Justiça Comum processar e julgar a ação em que filiado pretende discutir ato deliberativo, de natureza interna corporis, de partido político”[7].
Por outro lado, para a segunda corrente[8] — a qual me filio —, a Magna Carta de 1988, ao conferir aos partidos a atribuição de corpos intermediários entre a sociedade e o Estado, não nos permite confundi-los com meras associações privadas, visto que essa relevante função pública que desempenham evidencia uma natureza jurídica bifronte ou complexa[9], fato esse que, por si só, já justificaria a atração da jurisdição eleitoral.
Mas há, ainda, em favor da competência da Justiça Eleitoral — para julgar os litígios contra atos partidários simples, isto é, os atos intrapartidários — a própria essência dessas agremiações políticas, pois não se pode perder de vista que, nas democracias contemporâneas, o principal objetivo dos partidos políticos é alcançar o Poder Político por intermédio das eleições[10].
Com efeito, a própria essência partidária revela que todos os atos intrapartidários — praticados entre o partido político e o seu filiado ou órgão partidário e entre os órgãos partidários da mesma agremiação — têm por objetivo atingir o processo eleitoral, ainda que não o afetem diretamente, como exige a atual jurisprudência, e por essa razão os conflitos judiciais deles decorrentes merecem e devem ser apreciados pelo órgão do Poder Judiciário especializado na matéria partidária.
A Justiça Eleitoral está envolvida com a análise da temática desde o processo de criação e homologação dos partidos políticos, no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), até o cancelamento ou extinção deles. Ademais, cabe a essa justiça especializada distribuir e fiscalizar os recursos do fundo partidário e o acesso ao direito de antena, aos partidos que atendem aos requisitos constitucionais, além de processar e julgar as ações da fidelidade partidária.
O reconhecimento da competência da Justiça Eleitoral para apreciar essa questão pode ocorrer — à semelhança do que ocorreu no início dos anos 90 — por meio de alteração da jurisprudência do TSE. Aliás, em brilhante passagem pela Corte, o Ministro Luiz Fux propôs essa evolução jurisprudencial[11], porém uma liminar monocrática de Ministro do Supremo Tribunal Federal obstou[12], por ora, essa mudança de entendimento.
Com o advento da Constituição Federal de 1988, que alterou substancialmente a natureza jurídica dos partidos, caberia ao Poder Legislativo, em atenção ao disposto no seu artigo 121, regulamentar a organização e a competência da Justiça Eleitoral por meio de Lei Complementar.
O Código Eleitoral vigente (Lei n. 4.737/1965) — que é Lei Ordinária — não dispõe, no seu art. 23, acerca da competência da Justiça Eleitoral para processar e julgar as ações que versem sobre os atos intrapartidários (ou atos partidários simples), nem poderia fazê-lo (!), pois, como dito alhures, o Códex de 1965 foi concebido sob o pressuposto de que essas greis possuíam natureza jurídica de direito público interno e, consequentemente, todos os seus atos (internos ou externos) estavam sob a jurisdição eleitoral.
A nova ordem constitucional imposta, pela Carta Cidadã de 1988, e a inércia do legislador em regulamentar o artigo 121 da Lei Maior levaram a Suprema Corte a recepcionar o Código Eleitoral de 1965 como uma “lei material complementar na parte que disciplina a organização e a competência da Justiça Eleitoral”[13], providência acertada que, todavia, não preencheu o vácuo legislativo em relação aos atos intrapartidários.
Na última legislatura, o plenário do Senado Federal aprovou um Projeto de Lei Complementar[14] atribuindo essa competência à Justiça Eleitoral, porém, apesar de possuir parecer favorável à aprovação na Comissão de Constituição Justiça e Cidadania (CCJ) da Câmara dos Deputados[15], o referido projeto encontra-se pendente de votação.
Assim, é bastante oportuna a iniciativa da Presidência da Câmara dos Deputados em instituir um Grupo de Trabalho — o qual tenho a honra de integrar — para elaboração do anteprojeto do Novo Código Eleitoral e do Código de Processo Eleitoral. Além de ser o primeiro Código Eleitoral relatado por uma mulher, a Deputada Federal Margarete Coelho (PP/PI), em 89 anos desde a criação da Justiça Eleitoral, essa lei terá a importante missão de fixar a competência para o julgamento das ações contra atos intrapartidários.
Cumpre ressaltar que a proposição de regulamentação da competência da Justiça Eleitoral para julgar as ações judiciais que versem sobre os atos intrapartidários (ou, segundo a classificação doutrinária, os atos partidários simples) não vulnera o princípio da autonomia partidária. Não se trata de atribuir uma competência que o Poder Judiciário não possui, mas de remanejar as demandas já existentes ao órgão judicial especializado.
Em outras palavras, a regulamentação da competência da Justiça Eleitoral para processar e julgar as ações que versem sobre os atos intrapartidários — que hoje tramitam na Justiça Comum Estadual — não autorizará o Poder Judiciário a imiscuir-se nas denominadas questões ou matérias interna corporis dos partidos políticos, acobertadas pelo manto do princípio da autonomia partidária.
No entanto, como o ordenamento jurídico pátrio não comporta direitos e garantias absolutos, a autonomia constitucional deverá ser exercida dentro dos limites, implícitos e explícitos, da Constituição Federal de 1988 e da legislação que a regulamenta[16]. Com efeito, caso um ato intrapartidário ultrapasse esses limites — à luz do princípio constitucional da inafastabilidade da jurisdição[17] — caberá à Justiça Eleitoral processar e julgar a ação dele decorrente.
A atribuição dessa competência no Novo Código Eleitoral (o Código Margarete Coelho), evidentemente, deverá respeitar a autonomia dos partidos políticos — mormente quanto à discricionariedade partidária[18] — de sorte que caberá à Justiça Eleitoral apenas analisar a validade formal dos atos interna corporis dos partidos, sendo vedada a manifestação acerca do juízo de conveniência e oportunidade dos atos intrapartidários.
Todo esse quadro evidencia que, seja por alteração legislativa, seja por alteração jurisprudencial, é imprescindível que se reconheça a competência da Justiça Eleitoral para processar e julgar as ações que versem sobre atos intrapartidários, desde que respeitada a autonomia partidária — sobretudo em relação à discricionariedade partidária[19] —, excluindo-se da sua competência apenas as relações civis dos partidos com terceiros e as ações de natureza trabalhistas.
NOTAS
[1] Código Eleitoral (Decreto n. 21.076/1932). Art. 99. Consideram-se partidos políticos para os efeitos deste decreto: 1) os que adquirirem personalidade jurídica, mediante inscrição no registro a que se refere o art. 18 do Código Civil; 2) os que, não a tendo adquirido, se apresentarem para as mesmos fins, em caráter provisório, com um mínimo de quinhentos eleitores; 3) as associações de classe legalmente constituídas.
[2] Código Eleitoral (Lei n. 1.164/1950). Art. 132. Os partidos políticos são pessoas jurídicas de direito público interno.
[3] ARAS, Augusto. Fidelidade Partidária: efetividade e aplicabilidade. Obra atualizada, revista e ampliada por Ezikelly Barros. 2ª ed. Rio de Janeiro: GZ, 2021, p. 565-573.
[4] GOMES, José Jairo. Direito Eleitoral. 16ª ed. São Paulo: Atlas, 2020. p. 169-170.
[5] TSE, RESPE n. 13456, Rel. Min. José Eduardo Rangel De Alckmin, Rel. designado Min. Marco Aurélio Mendes De Farias Mello, DJE em 13.11.1996).
[6] Nesse sentido: TSE, RESPE n. 22792, Rel. Min. Carlos Eduardo Caputo Bastos, PSESS em 18.9.2004.
[7] STJ, 2a Seção, CC n. 40429/SC, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, DJE em 7.6.2004, p. 157.
[8] ARAS, Augusto. Fidelidade Partidária: efetividade e aplicabilidade. Obra atualizada, revista e ampliada por Ezikelly Barros. 2ª ed. Rio de Janeiro: GZ, 2021, p. 631-635.
[9] MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 13. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 821. (Série IDP).
[10] VIANA, Nildo. O que são os partidos políticos? Goiânia: Edições Germinal, 2003. p. 12-13.
[11] TSE, Mandado de Segurança n. 0601453-16.2016.6.00.0000, Rel. Min. Luiz Fux, acórdão de 21.8.2018.
[12] STF. Conflito de Competência n. 8.015/DF, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, Decisão Liminar em 23.3.2018.
[13] STF, Tribunal Pleno, MS 26604, Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA, julgado em 4.10.2007, DJe em 3.10.2008.
[14]Senado Federal, PLS nº 181/2017, Senador Romero Jucá (PMDB/RR).
[15]Câmara dos Deputados, PLP nº 493/2018, Rel. Dep. Edilázio Júnior (PSD/MA).
[16] BARROS, Ezikelly. Autonomia Partidária: Uma Teoria Geral. 1ª ed. São Paulo: Almedina, 2021. (Coleção IDP), p. 170-189.
[17] Constituição Federal. Art. 5º, XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.
[18] A Discricionariedade Partidária, segundo o conceito desenvolvido pela Autora, representa o núcleo essencial do princípio constitucional da autonomia partidária que não poderá sofrer nenhuma interferência do Poder Judiciário. BARROS, Ezikelly. Autonomia Partidária: Uma Teoria Geral. 1ª ed. São Paulo: Almedina, 2021. (Coleção IDP), p. 213-227.
[19]BARROS, Ezikelly. Op. cit. p. 213-227.
ARAS, Augusto. Fidelidade Partidária: efetividade e aplicabilidade. Obra atualizada, revista e ampliada por Ezikelly Barros. 2ª ed. Rio de Janeiro: GZ, 2021.
BARROS, Ezikelly. Autonomia Partidária: Uma Teoria Geral. 1ª ed. São Paulo: Almedina, 2021. (Coleção IDP).
GOMES, José Jairo. Direito Eleitoral. 16ª ed. São Paulo: Atlas, 2020.
MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 13. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. (Série IDP)
VIANA, Nildo. O que são os partidos políticos? Goiânia: Edições Germinal, 2003.