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Sem apresentar nenhuma prova, o presidente Jair Bolsonaro questiona frequentemente a credibilidade das urnas eletrônicas e já insinuou que não aceitará o resultado das eleições de 2022 sem o voto impresso.
É neste contexto, a menos de um ano e meio da disputa nacional, que a Câmara dos Deputados instalou uma comissão especial para debater uma proposta de emenda à Constituição (PEC) sobre a implementação da impressão do voto, que, a princípio, ocorreria junto ao uso da urna eletrônica.
Na prática, não se trata do voto impresso diretamente, mas sobre a impressão em papel de um comprovante do voto dado na urna eletrônica, que seria mantida normalmente nas eleições.
Independentemente do mérito da proposta, sua implementação dificilmente seria possível até outubro de 2022, dada a complexidade da tarefa.
Além disso, o fato de a proposta ter sido feita em forma de emenda à Constituição torna ainda mais difícil o processo para sua aprovação, visto que ela precisaria ser aprovada em dois turnos tanto na Câmara como no Senado, com três quintos dos votos em cada uma das Casas do Congresso.
Aliado a este ponto, o modo como o tema tem sido abordado, questionando a confiança no sistema eleitoral e desacreditando a urna eletrônica, acaba, segundo especialistas, por fragilizar um dos pilares da democracia: o voto.
O que está sendo proposto? A proposta em debate, a PEC 135/2019, foi apresentada pela deputada federal Bia Kicis (PSL-DF) em setembro de 2019. Aliada de Bolsonaro, ela propõe que cédulas físicas conferíveis pelo eleitor deverão ser expedidas “independentemente do meio empregado” para o registro do voto.
O texto portanto não propõe abolir a urna eletrônica e substituí-la pelo voto impresso, como por vezes é divulgado incorretamente em redes sociais.
A proposta não detalha os dados que constariam nessas cédulas, mas determina que elas seriam “depositadas, de forma automática e sem contato manual, em urnas indevassáveis, para fins de auditoria”. Ou seja, os eleitores não teriam contato com elas. Também não é dito o que ocorre a partir da impressão, ou seja, se o eleitor, por exemplo, é obrigado a conferí-las. É dito apenas que elas devem ser “conferíveis pelo eleitor”, também sem dizer como.
O texto completo da proposta é o seguinte: “No processo de votação e apuração das eleições, dos plebiscitos e dos referendos, independentemente do meio empregado para o registro do voto, é obrigatória a expedição de cédulas físicas conferíveis pelo eleitor, a serem depositadas, de forma automática e sem contato manual, em urnas indevassáveis, para fins de auditoria”.
Diferentemente de ocasiões anteriores em que o tema foi abordado, como na minirreforma eleitoral de 2015, neste caso não é citada a urna eletrônica. À época o texto dizia que “no processo de votação eletrônica, a urna imprimirá o registro de cada voto, que será depositado, de forma automática e sem contato manual do eleitor, em local previamente lacrado”.
O texto anterior dizia ainda que “o processo de votação não será concluído até que o eleitor confirme a correspondência entre o teor de seu voto e o registro impresso e exibido pela urna eletrônica”.
Essa proposta não chegou a ser implementada porque foi considerada inconstitucional pelo STF (Supremo Tribunal Federal) —a impressão dos comprovantes, segundo o tribunal, poderia ser uma forma de violar o sigilo da votação.
Por que, da forma como está sendo colocada, a pauta do voto impresso é prejudicial à democracia? No histórico brasileiro, a urna eletrônica é vista como um avanço, por ter diminuído a chance de ocorrência de fraudes, ao diminuir o contato e o risco de interferência humana na contagem dos votos.
No modelo atual, já há várias camadas de proteção e auditoria. Especialistas apontam, contudo, que nenhum sistema de proteção é infalível e, neste contexto, há quem defenda que a eventual implementação de um comprovante impresso do voto seria mais uma forma de auditoria e segurança.
No entanto, no contexto recente brasileiro, em que há grande disseminação de desinformação sobre as urnas nas redes sociais e em que o próprio presidente da República faz reiterados ataques ao voto eletrônico —sem apresentar nenhuma prova—, o debate acaba prejudicado.
Ana Cláudia Santano, professora de direito eleitoral, coordenadora da Transparência Eleitoral Brasil e membro da ABRADEP, avalia que a discussão sobre o voto impresso é legítima, mas que tem sido instrumentalizada.
“Simplesmente alegar que o voto impresso é a única forma de garantir a legitimidade das urnas eletrônicas não é correto. Porque a gente tem vários mecanismos de segurança do sistema eletrônico de votação.”
Para ela, diferentemente do que tem ocorrido, o debate deveria ser técnico e racional. “Agora o que a gente vê é a instrumentalização desse debate [sobre o voto impresso] para outros objetivos que não ficam muito claros para a população.”
Quais problemas costumam ser apontados em relação ao voto impresso? Entre os problemas elencados por críticos à proposta está que pessoas analfabetas ou cegas não teriam como conferir o comprovante impresso, apenas com a interferência de uma terceira pessoa. Para resolver a questão seria preciso desenvolver uma adaptação do mecanismo pensando nesses eleitores.
Além disso, são apontados riscos do sigilo do voto em caso de a impressora travar obrigando o mesário a abrir a urna. Outro questionamento é o que ocorreria se uma pessoa intencionalmente disser que o voto impresso difere do que ela digitou, mesmo que esteja correto.
Também o custo envolvido com a implementação do voto impresso, que chegaria a R$ 2 bilhões, é apontado como dificultador. O valor é baseado em estimativas de 2018, feitas à época em decorrência da lei sobre o tema de 2015 (antes que a regra fosse declarada inconstitucional).
“Cabe ressaltar, porém, que é muito provável que, em novo procedimento licitatório, esses valores sejam ainda mais elevados, tendo em vista a variação cambial, a crise mundial de abastecimento de componentes eletrônicos e as dificuldades logísticas impostas pela pandemia da Covid-19”, afirmou o TSE em nota à Folha.
Para Diogo Rais, professor de direito eleitoral na Universidade Mackenzie e membro da ABRADEP, o movimento de questionamento das urnas e de supostas fraudes eleitorais faz parte de uma estratégia maior de desacreditar as instituições. Na avaliação dele, a proposta não traria mais segurança às eleições.
“Eu acredito que a impressão do voto não resolve os problemas que propõe e cria problemas que até agora não existiam. Encarece o processo, burocratiza e deixa mais sujeito a muitas dúvidas e revisões, inclusive as infundadas.”
Se aprovada, a mudança pode valer nas próximas eleições? A Constituição prevê, em seu artigo 16, que “a lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência”. Isso quer dizer que, para serem aplicadas em 2022, as mudanças teriam que ser aprovadas até o início de outubro de 2021, um ano antes das eleições. No entanto, no caso de uma PEC, há divergência se essa regra se aplicaria.
Carolina Cyrillo, professora de direito constitucional da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), por exemplo, entende que a regra não se aplicaria a uma emenda à Constituição. Sob essa perspectiva, não haveria um prazo do ponto de vista legal para a aprovação.
Já a advogada eleitoral e membro da ABRADEP Samara Castro discorda. Para ela, a possibilidade de emendas constitucionais promoverem mudanças significativas no processo eleitoral sem um prazo mínimo geraria insegurança jurídica.
Do ponto de vista prático, mesmo se aprovada antes de outubro, o tempo até as eleições seria curto para uma mudança do gênero. Após a aprovação da medida em 2015, por exemplo, o planejamento do TSE já previa a implementação gradual da medida.
“Do ponto de vista legal, se o voto impresso for aprovado, aí não tem muito o que fazer, vai ter que implementar. A questão é que vai implementar em condições muito desfavoráveis. Além de ser um período muito curto para o aspecto técnico, de onde viria esse dinheiro para financiar isso?”, questionou Samara.