Danilo de Freitas fala da Prescrição Intercorrente no Direito Eleitoral para a Verba Legis
06/12/2022Financiamento de atos de pré-campanha, por Marina Almeida Morais
06/12/2022O regime democrático pressupõe a participação ativa da população e de outra forma não poderia ser concebido. Isso porque, tal como expresso no parágrafo único do artigo inicial da Constituição da República, o poder emana do povo que gere o Estado através de representantes eleitos. Essa é a tradução do princípio da representatividade, um dos valores mais caros que delineiam o sistema jurídico-normativo eleitoral brasileiro.
Essa representatividade em uma democracia, segundo Canotilho (2003) Nota 02, deriva, primordialmente, da autorização popular a um órgão soberano, que busca sua legitimidade no texto constitucional para agir de forma autônoma, mas sempre em nome do povo e para o povo.
Nos moldes atuais, a representação indireta ocorre por meio de partidos políticos, que são organizações que transformam determinada parcela da opinião pública em bandeiras de luta política, cujas finalidades, conforme aponta Gomes (2020, p. 128)Nota 03, são “alcançar e/ou manter de maneira legítima o poder político estatal e assegurar, no interesse do regime democrático de direito, a autenticidade do sistema representativo, o regular funcionamento do governo e das instituições políticas”.
Nesse cenário, merece destaque a questão da ação afirmativa exigida aos partidos políticos de respeito à chamada quota eleitoral de gênero, a qual visa garantir espaço mínimo de participação de homens e mulheres na vida política do país, por meio de reserva de certo número de vagas que as agremiações podem lançar para as eleições proporcionais.
Porém, ante a histórica e flagrante baixa participação feminina na disputa pelo poder político em todas as esferas do Estado, pelas mais diversas razões, e frente a exigência legal de reserva de espaço de composição de chapa para ambos os gêneros, a Justiça Eleitoral vem sendo demandada a verificar se os partidos políticos estão, de fato, buscando, incentivando e viabilizando as candidaturas femininas ou se estão incluindo em suas fileiras mulheres apenas para atender ao comando legislativo, em fraude.
Com isso, ao longo desse artigo, serão abordados os temas de participação feminina na política e a evolução da quota eleitoral de gênero, no primeiro tópico. Após, serão apresentados conceitos de fraude e dolo como elementos de violação às normas, em especial, as eleitorais.
Por fim, serão esposados casos em que se discutiu a fraude quota de gênero e seus resultados perante as Cortes Eleitorais.
1. A participação feminina na política brasileira e as quotas de gênero
De acordo com a organização Inter-Parliamentary Union (2022)Nota 04, o Brasil ocupa a 145ª posição mundial de participação feminina na política, ficando atrás, inclusive, de países menos desenvolvidos, como Etiópia e Guiana, e de nações com tradição religiosa de submissão das mulheres, a exemplo de países da Arábia Saudita.
Dados divulgados pelo Tribunal Superior Eleitoral (2020)Nota 05 revelam que nas últimas eleições, as candidaturas femininas representaram 33,5% (trinta e três vírgula cinco por cento) do total de pessoas aptas ao prélio, contudo, corresponderam apenas a 15,7% (quinze vírgula sete por cento) das que obtiveram a aprovação popular.
Autores de ciência política afirmam que as condições estruturais do Brasil, como baixo desenvolvimento econômico, baixo nível educacional ou deficiente distribuição de renda poderiam explicar o não envolvimento das mulheres na política (Araújo e Alves, 2007)Nota 06. Além disso, outros apontam ao problema prático da condição da mulher no meio familiar e na jornada de trabalho, cabendo ao homem o espaço privilegiado da política (Norris e Lovenduski, 1995)Nota 07.
Bolognesi (2012)Nota 08 refuta esse entendimento ao indicar outros critérios para a sub-representação feminina na política, tais como a dificuldade de acesso aos cargos de direção partidária, o pouco acesso ao financiamento de campanha, ainda que com recursos públicos ou mesmo, ainda, obstáculos na obtenção de tempo de propaganda eleitoral no rádio e tv.
A pesquisadora Luciana Panke (2016, p. 74)Nota 09 se alinha a esse entendimento e atesta que:
A política, enquanto território de disputas de poder e majoritariamente masculino, está formada por dinâmicas dos homens: horários, modos de atuação, de negociação. (…) As principais barreiras para a entrada das mulheres são: conseguir apoio no partido, financiamento de campanha, obter uma equipe de confiança (alcançar preparação de media training, leis, comunicação) e superar o machismo oriundo de homens e mulheres (ao sair para uma campanha, ter força para enfrentar as pressões inerentes ao embate e as pressões oriundas de sociedades que desvalorizam a presenta da mulher nesses espaços)
Assim, as cotas de gênero surgem como modelo de ação afirmativa em nível mundial com o fim de reduzir ou compensar o desequilíbrio entre as candidaturas e, sobretudo, a eleição de homens e mulheres, baseada num contexto, como já mencionado, em que as mulheres são culturalmente formadas para desenvolver habilidades no âmbito privado, enquanto aos homens é reservado o âmbito público.
Prova dessa realidade é o fato de as mulheres terem sido um dos últimos contingentes sociais a conquistar direitos políticos nas democracias contemporâneas, apesar de a democracia ter como requisito essencial a participação do maior número possível de adultos, dentre os quais, as mulheres. Aliás, Dahl (2001, p. 13)Nota 10 destaca que:
Há cerca de quatro gerações – por volta de 1918, mais ou menos ao final da Primeira Guerra Mundial –, em todas as democracias ou repúblicas independentes que até então existiam, uma boa metade de toda a população adulta sempre estivera excluída do pleno direito de cidadania: a metade das mulheres.
Entretanto, quando se destaca a importância da igualdade, participação efetiva e inclusão de mulheres para conformação da democracia, não se deve limitar à compreensão meramente formal destes critérios. Com efeito, Neto, Gresta e Santos (2018, p. 255)Nota 11, relembram as lições de John Rawls sobre a concepção política de justiça e assinalam que:
A justiça somente pode ocorrer no contexto social em que impera o valor equitativo das liberdades políticas, ou seja, a igualdade de oportunidades para atos da vida política, com relação à aptidão de afetar os resultados das eleições e de ter acesso aos cargos políticos. É dizer, não basta a inexistência de impedimentos legais para a participação de todos os adultos, senão que é necessário permitir essa efetiva participação, essa efetiva inclusão.
No Brasil, a política de incentivo à participação de mulheres na disputa eleitoral reduz-se, ao que importa esse estudo, à estipulação contida na Lei 9.504/97, art. 10, § 3º, segundo a qual “do número de vagas resultante das regras previstas neste artigo, cada partido ou coligação preencherá o mínimo de 30% (trinta por cento) e o máximo de 70% (setenta por cento) para candidaturas de cada sexo”. Apesar de prever um mínimo de presença de candidatos de cada sexo na lista proporcional, a cota de 30% acaba representando o máximo de candidaturas femininas que os partidos e coligações apresentam.
A cota de gênero foi introduzida na legislação eleitoral brasileira pela Lei nº 9.100/95, aplicando-se às eleições municipais de 1996. Em 2009, sobreveio alteração legislativa, promovida pela Lei nº 12.034 com o fim de propiciar novo parâmetro para a aplicação da cota de gênero. Isso porque, na redação original, os partidos deveriam apenas reservar o espaço em suas chapas para as candidaturas femininas, o que culminava, na prática, na não a necessidade de realmente viabilizá-las.
A utilização do termo imperativo “preencherá” em substituição à locução “deverá reservar” aponta para a ideia de que o preenchimento do percentual mínimo de candidatos por gênero deve ser observado considerando-se o total de candidaturas efetivamente apresentadas e não sobre aquele número de possível apresentação. E se da operação de cálculo da cota de gênero resultar em número fracionário Gomes (2020, p. 415)Nota 03 esclarece que:
A regra que manda, em todos os cálculos, desprezar a fração, se inferior a meio, e igualá-la a 1, se igual ou superior (LE, art. 10, § 4º), não pode ser inteiramente seguida aqui. É que, sendo a fração inferior a meio, deverá ser desprezada, e, consequentemente, o percentual de 30% não será observado. Figure-se o exemplo de Município em que haja 9 lugares a preencher na Câmara Municipal; cada partido poderá lançar 14 candidatos a vereador; como 30% de 14 é 4,2. O número de vagas reservadas será de 4, menos, pois, que o mínimo legal. Logo, tratando-se de cotas eleitorais, se do cálculo resultar fração, esta jamais poderá ser desprezada, devendo, ao contrário, ser arredondada sempre para mais.
2. Da fraude à quota de gênero
A dificuldade em lançar candidatura de mulher em ordem apta a preencher a quota mínima de gênero, tal como já apontado nesse artigo, tem levado partidos políticos a (tentar) fraudar o regime e o processo de registro de candidatura. Mister ressalvar que, embora se utilize genericamente a expressão “partido político”, o ilícito, via de regra, não é engendrado pela vontade coletiva de seus componentes ou legionários, mas de seus dirigentes, contudo, como representantes da agremiação e, por seus atos, a organização se manifesta, manteremos a expressão, porém com esse esclarecimento.
Segundo a doutrina de Crivellari (2013, p. 145)Nota 12, a fraude eleitoral se traduz em “qualquer ato ardiloso, enganoso, de má-fé, com intuito de lesar ou ludibriar outrem, ou de não cumprir determinado dever, do que normalmente resulta a obtenção de vantagem indevida”.
Por sua vez, Costa (2009)Nota 13 afirma que a fraude abrange tanto aquela em sentido estrito (burla direta à lei) quanto à simulação de atos jurídicos, sendo certo que a simulação é a prática de um ato encoberto por fingimento, disfarce ou artifício, a fim de dar aparência real ao que inexiste ou ocultar o que verdadeiramente existe. Já no caso de fraude em sentido estrito, o elemento subjetivo essencial é tão somente a finalidade de burlar a lei eleitoral, isto é, pratica-se o “ato querido, que é o que aparece e é conforme a uma norma jurídica, mas sua prática tem por escopo justamente ferir a finalidade de uma outra norma jurídica” (ob. cit., p. 416).
O Tribunal Superior Eleitoral, no paradigmático REspE nº 1-49/PI, definiu que o conceito da fraude “é aberto e pode englobar todas as situações em que a normalidade das eleições e a legitimidade do mandato eletivo são afetadas por ações fraudulentas, inclusive nos casos de fraude à lei”.
Desse modo, a fraude à quota de gênero se configura com o lançamento de candidaturas de mulheres que, na realidade, não disputarão efetivamente o pleito. São candidaturas fictícias. Os nomes dessas mulheres são incluídos apenas e tão somente para atender à necessidade de preenchimento do percentual mínimo legal, em evidente burla à regra legal.
Caso reconhecida a fraude enfocada, o efeito jurídico do respectivo ato deve ser a desconstituição da decisão anterior que deferiu o Demonstrativo de Regularidade dos Atos Partidários – DRAP, com a consequente perda dos mandatos e suplência de todos os que participaram da fraude ou dela se beneficiaram de forma direta ou indireta, conforme posicionamento da Corte da Democracia:
RECURSOS ESPECIAIS. ELEIÇÕES 2016. VEREADORES. PREFEITO. VICE-PREFEITO. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL (AIJE). ART. 22 DA LC 64/90. FRAUDE. COTA DE GÊNERO. ART. 10, § 3º, DA LEI 9.504/97. (…) CASSAÇÃO. TOTALIDADE DAS CANDIDATURAS DAS DUAS COLIGAÇÕES. LEGISLAÇÃO. DOUTRINA. JURISPRUDÊNCIA. 8. Caracterizada a fraude e, por conseguinte, comprometida a disputa, não se requer, para fim de perda de diploma de todos os candidatos beneficiários que compuseram as coligações, prova inconteste de sua participação ou anuência, aspecto subjetivo que se revela imprescindível apenas para impor a eles inelegibilidade para eleições futuras. Precedentes. 9. Indeferir apenas as candidaturas fraudulentas e as menos votadas (feito o recálculo da cota), preservando-se as que obtiveram maior número de votos, ensejaria inadmissível brecha para o registro de “laranjas”, com verdadeiro incentivo a se “correr o risco”, por inexistir efeito prático desfavorável. 10. O registro das candidaturas fraudulentas possibilitou maior número de homens na disputa, cuja soma de votos, por sua vez, contabilizou-se para as respectivas alianças, culminando em quociente partidário favorável a elas (art. 107 do Código Eleitoral), que puderam então registrar e eleger mais candidatos. 11. O círculo vicioso não se afasta com a glosa apenas parcial, pois a negativa dos registros após a data do pleito implica o aproveitamento dos votos em favor das legendas (art. 175, §§ 3º e 4º, do Código Eleitoral), evidenciando-se, mais uma vez, o inquestionável benefício auferido com a fraude. 12. A adoção de critérios diversos ocasionaria casuísmo incompatível com o regime democrático. 13. Embora o objetivo prático do art. 10, § 3º, da Lei 9.504/97 seja incentivar a presença feminina na política, a cota de 30% é de gênero. Manter o registro apenas das candidatas também afrontaria a norma, em sentido contrário ao que usualmente ocorre. (Recurso Especial Eleitoral nº 19392, Acórdão, Relator(a) Min. Jorge Mussi, Publicação: DJE – Diário da justiça eletrônica, Tomo 193, Data 04/10/2019, Página 105/107)
3. Do estudo de caso: AIJE Nº 0600271-51.2020
Extrai-se do feito em referência que foi ajuizada ação de investigação judicial eleitoral pelo Diretório Municipal do Partido Socialismo e Liberdade de Goiás (PSOL-GO) em desfavor do Partido Social Cristão (PSC-GO) e seus candidatos, por suposta ofensa ao disposto no art. 10, § 3º, da Lei nº 9.504/97.
Nas razões iniciais, foi alegado que o partido recorrido apresentou seu DRAP “com supostas candidatas mulheres no limite legal”, mas, a partir de 21.10.2020, “a cota mínima da agremiação recorrida ficou numericamente violada, passando a ser então de 29,27% a proporção de mulheres”, devido ao indeferimento do RRC de Ranykelle Martins dos Santos “em razão de flagrante ocorrência de inelegibilidade decorrente de condenação criminal transitada em julgado”.
Ainda foi sustentado que, em 21.10.2020, ou seja, 06 (seis) dias antes do prazo legal para as substituições e quase um mês antes das eleições, a agremiação recorrida restou formalmente cientificada pela Justiça Eleitoral da queda do número de candidatas mulheres quando do indeferimento da suposta candidata e nada fez de maneira a buscar o ajuste legal mínimo.
Ao final, foi requerida a procedência dos pedidos da ação para declarar a nulidade de todos os votos recebidos pelo Partido Social Cristão de Goiânia/GO nas Eleições 2.020, no sistema proporcional, e a consequente recontagem/nova totalização dos votos, inclusive do quociente partidário e das sobras eleitorais.
Após regular processamento, sobreveio sentença julgando improcedente os pedidos, valendo-se por fundamento quanto ao ponto nodal, isto é, o indeferimento do registro de candidatura da candidata Ranykelle Martins, o que segue:
Quando do indeferimento do registro da candidata Ranykelle Martins dos Santos, intimação do partido para regularização com vistas a substituição por outra em que ele quedou-se inerte, se apresentam duas questões: os possíveis efeitos na chapa, como a declaração de irregularidade com consequente indeferimento, que ensejaria a eliminação de todos os candidatos do sexo masculino e principalmente quem a Lei quer proteger, as candidaturas femininas, das eleições, ou seja, com todo respeito à legislação que se impõe a reserva de cota de gênero feminino no processo eleitoral democrático, além de necessária tem natureza de resgate histórico na equidade representativa, faz-se necessário questionarmos a proporção dos “estragos” que ela pode ensejar diante de sua aplicação literal, sem observarmos o contexto de forma ampla.
O caminho mais viável e democrático não reside na eliminação de todos os demais candidatos, principalmente das candidatas. Ou seja, a aplicação literal da lei resulta numa anomalia pior do que, em não levar ao pé da letra a reserva da cota de gênero. Acresça-se a isso o fato evidenciado nos presentes autos em que o partido Investigado promoveu diversas ações no sentido de manter a candidatura feminina indeferida, como Recurso Eleitoral, que foi conhecido e desprovido em 25/11/2020, fls 19, ao teor da documentação apresentada pelo Investigado, ID 43673335.
Irresignado, apresentou recurso perante o Tribunal Regional Eleitoral de Goiás, o qual, por maioria, manteve a sentença de improcedência, sob a seguinte ementa:
RECURSOS ELEITORAIS. ELEIÇÕES 2020. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL (AIJE). CANDIDATURAS AO CARGO DE VEREADOR. ALEGAÇÃO DE FRAUDE &Aagrave; PROPORCIONALIDADE DE GÊNERO (ART. 10, § 3º, DA LEI 9.504/97). SUPOSTA CANDIDATURA FICTÍCIA DE MULHER. MEROS INDÍCIOS EXTRAÍDOS DE CONTINGÊNCIAS NORMAIS AOS PROCESSOS ELEITORAIS. PREMEDITAÇÃO NÃO COMPROVADA. INEXISTÊNCIA DE DOLO OU MÁ-FÉ. FRAUDE REPELIDA. IMPROCEDÊNCIA MANTIDA. RECURSOS DESPROVIDOS. 1. Em matéria de inobservância à proporcionalidade fixada no art. 10, § 3º, da Lei nº 9.504/1997, o cabimento de Ação de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE) e de Ação de Impugnação de Mandato Eletivo (AIME) restringe-se às causas de pedir que afirmem fraude, não comportando alegações de simples descumprimento aritmético à indigitada regra. 2. Na espécie, a configuração de fraude exige provas robustas de fatos/circunstâncias do caso concreto que se somam denotando segura convicção sobre premeditado objetivo (má-fé ou dolo) de burlar a proporcionalidade mínima entre homens e mulheres que o legislador estabeleceu no art. 10, § 3º, da Lei 9.504/97; 3. No caso sob exame, alegou-se como indício de fraude tão-só a não substituição de uma candidata cujo RRC foi indeferido. Porém, não se comprovou qualquer fato/circunstância peculiar ao caso e que estivesse em direta convergência com os apontamentos indiciários, ilidindo-se suposta premeditação ou má-fé por parte da candidata ou de sua sigla partidária. 4. O art. 36 da Resolução TSE nº 23.609/2019 previu intimação específica para impor aos entes partidários o ônus de eventual readequação de suas chapas proporcionais durante a tramitação do DRAP, mesmo após o trânsito em julgado do seu deferimento. No caso em testilha, a falta de intimação específica ao partido investigado repele o pretenso indício de fraude quanto a sua inércia em não substituir a candidata cujo RRC fora indeferido; conduta (omissiva) que, isoladamente, poderia configurar apenas negligência ou incúria da agremiação. 5. Recursos Eleitorais desprovidos.
Cabe a ressalva que o mencionado feito ainda se encontra em curso perante Egrégio Tribunal Superior Eleitoral por força de agravo, contudo, para fins a que se presta o presente trabalho, merecem destaques alguns pontos debatidos no julgamento dessa demanda.
Diferentemente dos demais feitos submetidos a julgamento no Regional – bem como nos demais –, esse caso evidenciou a presença de um elemento objetivo de inelegibilidade, qual seja, uma condenação criminal transitada em julgado em desfavor da candidata Ranykelle Martins, cuja extinção de punibilidade se deu em julho de 2015.
Sobre o tema, o Tribunal Superior Eleitoral, com base na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, afirma que
Não se podem confundir os efeitos penais e extrapenais decorrentes de eventual condenação criminal transitada em julgado, os quais se encerram com o cumprimento da pena, com a inelegibilidade prevista na alínea e do inciso 1 do art. 11 da LC 64/90, a qual incide desde a condenação transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado até o transcurso do prazo de 8 anos após o cumprimento da pena para os crimes nela elencados (Ag-Respe nº 52-17, rel. Min. Napoleão Nunes Maia).
Desse modo, dúvidas não há de que a candidata se encontrava inelegível durante o período de cumprimento de pena e, de acordo com a Lei Complementar nº 64/90, pelo período de 08 (oito) anos, após a extinção de sua punibilidade, conforme entendimento pacífico da Corte Superior, sedimentada por sua Súmula nº 61. No caso em testilha, a extinção da punibilidade se deu em 01/07/2015, portanto, a inelegibilidade se estenderá até o julho de 2023.
Trata-se, desse modo, de elemento objetivo negativo de condição de elegibilidade, que não possui previsão de aumento ou de diminuição de seu período de incidência; nem causas de suspensão ou interrupção de sua contagem. Com isso, encerrada a punibilidade, começa, a partir de então e de forma fluída, contínua e irremediável, o prazo da restrição à capacidade eleitoral passiva por 08 (oito) anos.
Posto esse cenário, mister verificar a existência ou não de dolo por parte da agremiação partidária, para fins de configuração de fraude à norma.
Consta da documentação acostada nos autos em estudo, a íntegra do requerimento de registro de candidatura da já citada candidata (autos nº 0600085-25.2020), cujo pedido restou indeferido justamente em razão dos efeitos da condenação criminal apontada. Neste feito, extrai-se que no dia 10 de outubro de 2020 a candidata fora intimada para sanar a irregularidade de inexistência de inelegibilidade, tendo o seu partido (PSC), assistido por corpo jurídico, apresentado petição contestando qualquer defeito a ser corrigido, em 12 de outubro daquele ano.
Após manifestação ministerial, sobreveio sentença de indeferimento do registro de candidatura em 21 de outubro, a qual fora desafiada por recurso manejado pela agremiação, não obtendo, contudo, provimento. Não houve pleito recursal para o TSE.
Por essa linha de tempo, tem-se que o partido tomou ciência inequívoca da impossibilidade objetiva do exercício da capacidade eleitoral passiva da candidata no dia 12 de outubro, faltando 14 (quatorze) dias para o prazo final de substituição. Posteriormente, faltando agora 05 (cinco) dias para o marco fatal, recebeu a confirmação judicial (sentença) do indeferimento do registro em razão da multimencionada inelegibilidade, a qual, reitera-se é objetiva e ininterrupta.
Isso demonstra, em princípio, que a organização partidária assumiu dolosa e conscientemente o risco (teoria do dolo eventual) quanto ao futuro indeferimento do pedido de registro de candidatura da Sra. Ranykelle Martins, candidata esta manifestamente inelegível até julho de 2023, cuja condição de impedimento lhe era conhecida – uma vez que participou ativamente no enfrentamento desse questionamento pelos meios de defesa à sua disposição –, e a substituição era exigida, caso desejasse se manter na disputa eleitoral de forma idônea.
Como visto, a lei que estabelece a cota de gêneros visa a proteção de uma maior equivalência de candidaturas de homens e mulheres, todavia, que essas candidaturas ocorram de forma legal, de forma legítima. A inclusão de pessoa – no caso, de uma mulher – manifesta e inquestionavelmente inelegível, acaba por impedir que outra mulher, porém elegível, possa compor às fileiras partidárias e apresentar, legitimamente, seu nome ao sufrágio popular.
Admitir que os partidos possam apresentar nomes de candidatas sem qualquer possibilidade de serem consideradas elegíveis tão somente para alcançar “a quota feminina” e que isso já seria o suficiente para se considerar que o objetivo da norma fora atingido, é o mesmo que fazer tábula rasa de seu verdadeiro conteúdo normativo.
Nesse sentido, entendemos merecer críticas o entendimento majoritário condutor do julgamento em questão, tendo em vista que evidenciada a ciência, defesa e conduta dolosa da organização partidária na manutenção de uma candidatura sob a qual incidia inafastável inelegibilidade objetiva.
Conclusão
A moralidade eleitoral, a qual possui por alicerce a exigibilidade de um padrão ético-moral mais elevado por parte de instituições partidárias, encontra amparo constitucional no art. 14, § 9º da Lei da República. Ela visa, segundo Pinto (2006, p. 25)Nota 14, proteger “a lisura do processo para a escolha dos representantes do povo. Não é o interesse específico dos participantes das disputas eleitorais, mas, exclusivamente, a interesse superior da coletividade em realizar eleições limpas”.
Certo é que a moralidade repele a má-fé, a fraude e o desvio de finalidade, exigindo que os atores eleitorais demonstrem boa conduta, como possíveis lideranças políticas.
Assim, merece repreensão as condutas dolosas das organizações partidárias que, de forma livre e consciente, inclui em suas fileiras de candidatos, mulheres que se mostram objetivamente impossibilitadas de concorrer ao pleito eleitoral, com a finalidade única de atender, formalmente, a exigência legal de percentual de gênero.
Ressalte-se que a finalidade da quota é de se constituir como meio de incentivo à promoção da participação feminina para que, paulatinamente, se alcance uma realidade mais igualitária e se atinja o objetivo real, qual seja, a redução da desigualdade de gênero da esfera pública política, com a consequente promoção de um ambiente eleitoral e político mais diversificado e democrático.
Publicada na revista Verba Legis.
Referências
Nota 01 Juiz membro titular do Tribunal Regional Eleitoral de Goiás, Ouvidor Regional Eleitoral de Goiás, Mestrando em Ciência Política pela Universidade Federal de Goiás e Especialista em Direito Público pela Universidade Cândido Mendes/RJ. E-mail:marcio.moraes@tre-go.jus.br
Nota 02 UNION, Inter-Parliamentary. Monthly ranking of women in national parliaments. Disponível em https://data.ipu.org/women-ranking?month=3&year=2022. Acesso em 17 de abril de 2022.
Nota 03 GOMES, José Jairo. Direito eleitoral. 16ª ed., Atlas, 2020
Nota 04 UNION, Inter-Parliamentary. Monthly ranking of women in national parliaments. Disponível em https://data.ipu.org/women-ranking?month=3&year=2022. Acesso em 17 de abril de 2022.
Nota 05 BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Estatísticas eleitorais. Disponível em https://www.tse.jus.br/eleicoes/estatisticas/estatisticas-eleitorais. Acesso em 17 de abril de 2022.
Nota 06 ARAÚJO, Clara e ALVES, José Eustáquio Diniz. Impactos de indicadores sociais e do sistema eleitoral sobre as chances das mulheres nas eleições e suas interações com as cotas. Disponível em https://www.scielo.br/j/dados/a/b7x7pwPWdRPcsXd7hPmTghB/?lang=pt. Acesso em 17 de abril de 2022.
Nota 07 NORRIS, Pippa e LOVENDUSKU, Joni. Political Recruitment. Gender, Race and Class in the British Parliament. Cambridge. 1995.
Nota 08 BOLOGNESI. Bruno. A cota eleitoral de gênero: política pública ou engenharia eleitoral?. Revista Paraná Eleitoral. v. 1, n. 2, 2012, p. 113/129.
Nota 09 PANKE, Luciana. Campanhas eleitorais para mulheres: desafios e tendências. Curitiba: UFPR, 2016.
Nota 10 DAHL, Robert. Sobre a democracia. Editora Universidade de Brasília, 2001.
Nota 11 NETO, João Andrade; GRESTA, Roberta Maia; SANTOS, Polianna Pereira dos. Fraude à cota de gênero como fraude à lei: os problemas conceituais e procedimentais decorrentes do combate às candidaturas femininas fictícias. In: FUX, Luiz; PEREIRA, Luiz Fernando Casagrande;
Nota 12 CRIVELLARI, Júlio César Teixeira. Impugnação de mandato eletivo sob a ótica dos direitos e garantias fundamentais e dos objetivos primordiais do Estado Democrático de Direito brasileiro. Revista JUS, v. 44, n. 29, p. jul./dez. 2013.
Nota 13 COSTA, Adriano Soares da. Instituições de direito eleitoral. 8. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.
Nota 14 PINTO, Djalma. Direito eleitoral: improbidade administrativa e responsabilidade fiscal – noções gerais. 3ª ed., Atlas. 2006.