As propostas do “emendão” da PEC 125/11 e as ameaças à participação de mulheres
05/07/2021Princípios que Norteiam as Condutas Vedadas
05/07/2021Por Fernando Neisser e Rafael Morgental Soares
Poucas coisas soam tão ofensivas à memória das milhares de pessoas que já morreram em decorrência da pandemia de Covid-19, aos seus familiares e amigos, quanto o discurso de que sempre há um lado bom nas tragédias.
Não há. Por mais que as redes sociais tenham sido inundadas por mensagens que atribuem à crise que se abate o “mérito” de termos aprendido a usar a máquina de lavar roupa ou a limpar o próprio banheiro, qualquer um de nós estaria vivendo muito melhor sem esses “ganhos”, diante das perdas devastadoras que a doença ocasionou.
Deixada clara esta posição, parece óbvio que o mundo que encontraremos adiante será, em muitas questões, diferente daquele em que vivemos até o início de 2020. E algumas experiências que estão sendo conduzidas por necessidade podem e devem ser mantidas, independentemente de sua relação com a pandemia.
Tratamos aqui de uma questão bastante específica, mas com enorme repercussão sobre a vida de milhares de pessoas: a possibilidade de que advogados participem de julgamentos realizados nos tribunais por meios virtuais. Explicando melhor, mesmo que alguns tribunais já transmitissem suas sessões pela internet ou televisão, como é o caso do STF, raras eram as cortes que permitiam aos advogados participarem efetivamente à distância.
Em muitos tipos de recursos – julgados pelos tribunais – é possível ao advogado ocupar a tribuna por alguns minutos, explicando as razões pelas quais acredita que seu pedido deve ser atendido. A sustentação oral é uma das raras ocasiões para atrair a atenção dos julgadores aos detalhes do caso.
Com a massificação das demandas, que hoje somam dezenas de milhões, é cada vez mais difícil aos juízes, desembargadores e ministros atentar para os contornos específicos daquilo que precisam julgar. E é exatamente com a sustentação oral que, muitas vezes, consegue-se fazer notar um ponto específico, levando o julgamento a um deslinde diferente.
O problema é que os tribunais se concentram em poucas cidades. Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Eleitorais nas capitais dos Estados. Tribunais Regionais Federais e Tribunais Regionais do Trabalho nas cidades sede de suas regiões. E os tribunais superiores – STF, STJ, TST, TSE e STM, todos em Brasília.
Isso faz com que o cidadão que mora no interior e busca exercer seu direito da melhor forma possível precise pagar as viagens de seu advogado à capital do Estado e, posteriormente, à Brasília, cada vez que seu caso é pautado para julgamento. Pior, por diversas questões internas dos tribunais, não é incomum que no último momento o julgamento seja adiado, tornando inútil o gasto feito naquela ocasião e obrigando o cidadão a arcar com nova viagem quando o processo voltar para julgamento. Para lamento também do advogado, que acaba perdendo dois ou até três dias de trabalho longe de sua praça.
Com os preços das passagens aéreas nas alturas, especialmente para as poucas rotas que levam do interior às capitais e destas para Brasília (pois são raros os voos do interior diretos para a capital federal), cada viagem pode custar alguns milhares de reais, contando hospedagem, alimentação, deslocamento urbano e outras despesas que aumentam o custo da defesa e da promoção de direitos.
Se para um processo for necessário ao advogado realizar três ou quatro viagens a fim de expor adequadamente as sutilezas da causa, impõe-se ao cidadão um investimento elevado e quase sempre impreciso, pois assim como a agenda de julgamentos do poder judiciário, a precificação das tarifas aéreas e da hotelaria são dinâmicas.
Tal circunstância, aliás, impacta inclusive na negociação dos honorários, pois é compreensível que o cliente espere do advogado a maior acurácia possível no cálculo dos custos do processo, para decidir se a via judicial realmente é o caminho adequado para a satisfação de suas pretensões.
Em causas de baixa expressão econômica, o custo da sustentação oral pode até mesmo inviabilizar sua realização, ou então determinar soluções alternativas, que passam pelo sacrifício econômico do próprio advogado ou pelo repasse do caso a um profissional geograficamente mais próximo do tribunal.
Na prática, a última solução vem prevalecendo, o que sem dúvida pode até aumentar as chances de vitória, já que a expertise e a respeitabilidade angariadas pelos profissionais mais assíduos na tribuna contam a favor do cliente. É importante lembrar que a boa atuação perante um tribunal não envolve somente os poucos minutos de sustentação oral, mas também a distribuição de memoriais (o “resumo” da causa e seus pontos principais), o debate do caso com o julgador e sua assessoria, quando há possibilidade, e principalmente o conhecimento profundo da orientação de cada julgador e da jurisprudência do tribunal como um todo.
No entanto, é desejável que a parceria com os colegas das capitais seja adotada voluntariamente, como uma opção estratégica definida pelo advogado e seu cliente a fim de maximizar as probabilidades de êxito, e não como uma solução sem a qual o exercício do direito de apresentar razões orais restaria inviabilizado.
Para ver seus direitos prevalecerem, os jurisdicionados devem ter a possibilidade de escolher a melhor defesa para si, o que tanto pode ser a manutenção de seu advogado original até o final quanto, muitas vezes por orientação desse próprio advogado, a contratação de um colega habituado à tribuna a ser ocupada. Tal alternativa, aliás, é rotineiramente utilizada e recomendada pelos subscritores deste artigo, mesmo quando se trata de julgamento virtual.
A universalização do acesso à justiça, impulsionada com a Emenda Constitucional n. 45/2004, que criou o Conselho Nacional de Justiça e reforçou o compromisso de uma prestação jurisdicional mais ampla, abrangente e igualitária, pode agora ganhar novos contornos, graças à experiência tecnológica realizada durante a emergência sanitária.
Com a pandemia os tribunais descobriram que é plenamente possível franquear aos advogados a possibilidade de representar seus clientes de qualquer lugar. Controlada a circulação da covid-19, nada impede a adoção de um regime híbrido nas sessões de julgamento, disponibilizando-se um telão para que a sustentação oral possa ser realizada remotamente.
O que a justiça brasileira está conseguindo realizar neste período de luto e isolamento não é pouco. Pela mais absoluta necessidade – pois a justiça não pode parar -, rompeu-se o paradigma da “presença física” das partes ou de seus procuradores perante o juiz; e até do próprio juiz no ato de julgamento, pois o que vale para a advocacia vale também para os outros atores do sistema de justiça, cujas atribuições podem ser realizadas à distância com a mesma seriedade e qualidade técnica da “era presencial”, como a prática está a demonstrar – e talvez até com ganho de produtividade.
De fato, não apenas julgamentos, mas inquirições e testemunhos estão ocorrendo por meio virtual. E as coisas estão funcionando! Cada tribunal a seu tempo e modo, com maior ou menor sucesso, teve de responder às limitações impostas pela covid com soluções de tecnologia.
Obviamente a evolução exigirá adaptações operacionais e regimentais. E provavelmente emergirão novos problemas, que deverão ser contornados na prática cotidiana. Mas também surgirão novas oportunidades e competências, pois hoje já se nota, por exemplo, que nem sempre os melhores oradores da tribuna presencial serão os modelos de atuação nas telas.
No campo da justiça, o legado desta catástrofe de proporções globais foi abreviar uma evolução já em curso, e o resultado previsível é um processo judicial misto, híbrido, semipresencial, que franqueia a seus operadores a realização de atos processuais nas dependências judiciárias ou pela internet, dentro de certas regras a serem estabelecidas.
Na verdade, o alcance das mudanças pode ser ainda mais amplo. A pandemia tem demonstrado que espaços de trabalho podem ser menores, que reuniões presenciais com deslocamento podem ser substituídas sem grande prejuízo e que viagens, a não ser quando essenciais, geram custos desnecessários, não só financeiros, mas de tempo.
A justiça e a advocacia do futuro provavelmente não se esgotarão num mosaico de telas; o olho no olho sempre terá sua importância e seu lugar; mas com o aprendizado dos tempos de pandemia, os julgamentos e atos processuais poderão ser realizados com mais publicidade, pontualidade, eficiência e, junto a tudo isso, menores custos para o cidadão-contribuinte-jurisdicionado.
Parece mais do que acertado, portanto, que os tribunais contribuam com a democratização do acesso à Justiça, tornando permanente a possibilidade de participação remota dos advogados nas sessões de julgamento. E que, passada a pandemia, estreitem ainda mais esse virtuoso diálogo entre direito processual e ferramentas de tecnologia.