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25/08/2021Nos últimos tempos, os episódios de violência política de gênero têm ganhado destaque na mídia. Apesar de apresentarem algumas variantes (diferentes partidos políticos, ideologias, esferas de atuação etc.), a semelhança dos casos se dá quanto ao seu alvo: as mulheres na política. Longe de se tratar novidade, a hostilidade à participação feminina na política se faz presente desde a conquista do direito ao voto feminino, como narra Diva Nazário [1].
Nesse sentido, diante desse histórico depreciativo à participação das mulheres na política, somado ao reduzido número de eleitas até hoje — não obstante as ações afirmativas existentes [2] —, fato é que, por muito tempo, os episódios que envolviam violência política de gênero não eram sequer notados. Tratava-se de condutas desrespeitosas, porém, naturalizadas dentro desse ambiente político avesso às mulheres. A título ilustrativo, vale lembrar que apenas em 2016 o Senado Federal passou a ter um banheiro feminino para suas parlamentares.
Com os olhos voltados à participação feminina na política, passou-se, então, a se notar situações que implicam violência de gênero.
De fato, a violência política de gênero pode ser descrita por comportamentos dirigidos especificamente contra as mulheres que visam a desestimular, impedir ou restringir seu acesso ao espaço da política institucional, tanto no contexto do processo eleitoral quanto no período de seus mandatos. Esse tipo de violência de gênero é cada vez mais reconhecida ao redor do mundo, especialmente na América Latina, e ocorre em diversos espectros ideológico-partidários e cenários políticos.
Alguns países latino-americanos como Bolívia, Argentina, Equador e México possuem legislações que visam ao combate à violência política de gênero [3]. Ressalte-se que a Bolívia foi um dos países pioneiros a ter uma legislação sobre o tema, tendo aprovado, em 2012, norma que tipificou como crime o assédio e a violência política contra a mulher, como estratégia de tentar combater o fenômeno que era crescente no país (Lei nº 243/2012).
O conceito do que consiste violência política de gênero é amplo e inclui tipos de violência física, econômica, psicológica e simbólica, além de práticas adicionais, como cerceamento da liberdade de expressão, intimidação na participação de espaços públicos e na atuação política, além da disseminação de fake news. Dessa forma, a violência política tem semelhanças com os discursos de ódio, já que usa mecanismos de poder e opressão contra pessoas com determinada identidade, como forma de reafirmar ameaças contra hierarquias tradicionais.
Além disso, é considerada como uma possível forma de impedir ou diminuir a participação das mulheres como candidatas e, posteriormente, a atuação em seus mandatos, retirando-as do debate político, da disputa por posições, podendo até mesmo ensejar o abandono de seus mandatos. Assim, ainda que a violência possa ser pontualmente dirigida contra uma mulher em particular, tais ações tem por consequência atingir e intimidar a participação de outras mulheres na política, passando, ainda, uma mensagem social de que elas não deveriam participar de determinado espaço [4].
Como destacam Danielle Gruneich e Iara Cordeiro, a violência política de gênero é uma das causas da sub-representação no parlamento e nos espaços de poder e decisão, sendo que as mulheres sofrem violência “antes de concorrerem, quando concorrem e também quando são eleitas” [5].
No Brasil, importante passo se deu com a edição da Lei nº 14.192/2021, tendo-se, pela primeira vez no país, a regulamentação do tema. Ainda que o normativo possa, com o tempo e maior maturação a respeito, sofrer futuras alterações e adequações que possam se fazer necessárias, fato é que a questão passou a ter a atenção do legislador, mediante alterações promovidas no Código Eleitoral (Lei nº 4.737/1965); na Lei dos Partidos Políticos (Lei nº 9.096/1995); e na Lei da Eleições (Lei nº 9.504/1997).
Nesse sentido, a Lei nº 14.192/2021 trouxe a conceituação da violência política contra a mulher como “toda ação, conduta ou omissão com a finalidade de impedir, obstaculizar ou restringir os direitos políticos da mulher” (artigo 3º). A norma prevê ainda que constituem atos de violência política contra a mulher “qualquer distinção, exclusão ou restrição no reconhecimento, gozo ou exercício dos seus direitos e das suas liberdades políticas fundamentais, em virtude do sexo”, determinando que as autoridades competentes priorizarem o “imediato exercício do direito violado, conferindo especial importância às declarações da vítima e aos elementos indiciários”.
O aludido normativo possui como um dos objetivos punir práticas que reduzam a condição da mulher na política, que estimulem a discriminação em razão do sexo ou também em relação à raça e etnia. Ao acrescentar o artigo 326-B ao Código Eleitoral, tipificou como crime eleitoral “sediar, constranger, humilhar, perseguir ou ameaçar, por qualquer meio, candidata a cargo eletivo ou detentora de mandato eletivo, utilizando-se de menosprezo ou discriminação à condição de mulher ou à sua cor, raça ou etnia, com a finalidade de impedir ou de dificultar a sua campanha eleitoral ou o desempenho de seu mandato eletivo”, estabelecendo pena de reclusão de um a quatro anos e multa, além de trazer hipóteses de aumento de pena (mulher gestante, maior de 60 anos ou com deficiência).
Como se observa, as alterações promovidas pela Lei nº 14.192/2021 ampliam os instrumentos para combate à violência de gênero e à discriminação político-eleitoral contra as mulheres em todos os momentos relacionados ao exercício dos direitos políticos (não apenas durante a campanha eleitoral), tornando, ainda, crime a divulgação de notícias falsas, com conteúdos inverídicos sobre os partidos políticos e as candidatas.
Acreditamos que com a criação da norma se faça possível buscar novos modelos para solução do problema, tratando-se de um pontapé inicial para que os atores políticos passem a se debruçar sobre a questão, evitando-se, ainda, os casos mais graves de violência política de gênero até então verificados no país, sem correspondente punição.
Em debate sobre o tema promovido, em 2020, pela Câmara dos Deputados, foram trazidos dados da ONU Mulheres sobre a questão: “82 % das mulheres em espaços políticos já sofreram violência psicológica; 45% já sofreram ameaças; 25 % sofreram violência física no espaço parlamentar; 20%, assédio sexual; e 40% das mulheres afirmaram que a violência atrapalhou sua agenda legislativa” [6].
O respeito à participação feminina nos espaços de poder está intrinsecamente ligado ao regular exercício da cidadania, à democracia, ao olhar da sociedade como um todo, sendo esta composta por homens e mulheres, que devem ser tratados igualmente. Episódios de violência de gênero na política não devem ser mais admitidos.
Com efeito, os fatos que excluem as mulheres dos espaços públicos e de poder constituem violação aos seus direitos políticos. Ou seja, trata-se de violação a direito fundamental resguardado tanto pela Constituição Federal quanto por tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário [7]. Trata-se, assim, de afronta à compromissos nacionais e internacionais que afetam diretamente a própria democracia.
Dos diversos episódios de violência politica de gênero verificados por todo país, nos mais diferentes espaços, ideologias, partidos ou posição política, registre-se o da parlamentar Marielle Franco, eleita para o cargo de vereadora no Rio de Janeiro e assassinada no exercício de seu mandato por motivações políticas, como apontado nas investigações. Recentemente, a parlamentar Damiris Rinarlly, vereadora do município de Conselheiro Lafaiete (MG), denunciou ter sofrido ameaças de morte e perseguição em razão do exercício de seu mandato. A jovem vereadora é a única mulher entre os representantes da Câmara Municipal de Lafaiete, sendo bastante atuante na defesa de bandeiras políticas relacionadas justamente ao enfrentamento da violência doméstica e do feminicídio, bem como à defesa da comunidade LGBTQIA+, à luta antirracista e à preservação e efetivação de direitos humanos.
Dessa forma, como se vê, a maior participação feminina nos espaços de poder e a promoção da igualdade de gênero nesse ambiente político-eleitoral constituem elementos essenciais para que se mitigue a violência perpetrada contra as mulheres. Mais do que isso, a recente regulamentação a respeito da violência política de gênero corresponde a importante instrumento para incentivar a criação de uma nova cultura na qual não mais se admita a discriminação, a hostilidade, entre outras posturas depreciativas e violentas dirigidas às mulheres na política. A tipificação da conduta garante que sejam punidas as ações que constranjam as mulheres no exercício de suas funções públicas. Assim, a promoção de esforços coletivos na busca por ferramentas que impeçam a violência política de gênero implica evidente fortalecimento da própria democracia, tendo-se uma sociedade mais justa e igualitária, o que se transmuda em inequívocos benefícios para a coletividade como um todo.
NOTAS
[1] Durante o processo de busca das mulheres por se tornarem cidadãs em sua plenitude, participando da vida pública, os argumentos de alguns políticos, à época, contrários à medida, eram execráveis. A título exemplificativo, o então deputado Tito Lívio sustentava que as mulheres tinham “cérebros infantis”, sendo portadoras de “inferioridade mental” e “retardo evolutivo” (NAZÁRIO, Diva Nolf. Voto feminino e feminismo. Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009, pp. 199-201).
[2] Conforme Leis nºs. 9100/1995, 9.504/1997, 12.034/2009 e 13.165/2015.
[3] Dados obtidos no Portal eletrônico “Proyecto de Reformas Políticas en América Latina”. Recuperado de https://reformaspoliticas.org/violencia-politica-contra-las-mujeres-2/ . Em 16/07/2021.
[4] KROOK, Mona Lena y RESTREPO SANIN, Juliana. Género y violencia política en América Latina. Conceptos, debates y soluciones. Polít. gob [online]. 2016, vol.23, n.1 [citado 2021-07-18], pp.127-162. ISSN 1665-2037. Disponível em: http://www.scielo.org.mx/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1665-20372016000100127#B22.
[5] “Violência política de gênero: das violências invisíveis aos aspectos criminais”. Por Danielle Gruneich e Iara Cordeiro. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-nov-03/gruneich-cordeiro-violencia-politica-genero.
[6] Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/693968-violencia-na-politica-afasta-as-mulheres-diz-especialista/.
[7] Destaca-se aqui o Pacto de San José da Costa Rica.