TSE cria comissão da transparência e observatório das eleições
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13/09/2021O Código Eleitoral, em vias de aprovação, trouxe mil artigos para apreciação, em tempo recorde, adotado o fast track legislativo, um pedágio sem as cancelas institucionais do tempo e comissões [1]. A compilação da legislação foi de fôlego e devo elogiar o trabalho da deputada Margareth Coelho e dos amigos da Abradep. A sistematização da babel legislativa do Direito Eleitoral merece aplauso, por si só.
Quero me contrapor ao artigo de Walber Agra sobre o mesmo tema [2]. Walber Agra, na sua rara inteligência, teria me convencido e, a bem da verdade, concordamos em quase tudo senão na premissa ao tratar da chamada “emenda Moro” [3]. Nada obstante a Câmara dos Deputados tenha sepultado a quarentena no último dia 9, essa restrição indevida aos direitos políticos merece debate.
Esse dispositivo ceifa, além de juízes e promotores, a safra dos militares candidatos, esteio do bolsonarismo, estatuindo a incompatibilidade de cinco anos antes da candidatura. Possui direção inequívoca de impedir a expansão de um movimento político e outros atores. Proponho um bosquejo histórico revolvendo uma visão da restrição dos direitos políticos [4].
A história constitucional
A Constituição de 1824 impôs limitações ao sufrágio, à elegibilidade nas assembleias. Foram excluídos os menores de 25 anos, com exceção dos solteiros e oficiais militares maiores de 21 e menores, os bacharéis e os clérigos, entre outros. Eram inalistáveis e inelegíveis os mendigos, analfabetos, os praças de pret [5], excetuados os alunos das escolas militares e religiosos sujeitos a voto de obediência que importasse em renúncia da liberdade individual.
No Império a elegibilidade foi objeto de manipulação da chamada Conciliação (1835-1857). A participação das minorias tinha como objetivo central pelo Marquês de Paraná a diluição do poder dos conservadores e predomínio dos liberais, por meio de uma reforma eleitoral sobre as incompatibilidades e o voto distrital.
Sobreveio a eleição e a alteração significativa na Câmara, em 1857. Cresceu o número de padres e médicos, lideranças locais e até coronéis da Guarda Nacional. O próprio filho do Marquês do Paraná foi derrotado por um padre. O impacto foi tão relevante que em 1860 houve nova alteração para que fossem eleitos três, ao invés de um deputado por distrito.
Foram criadas as incompatibilidades para diminuir o peso do governo na eleição, numa tentativa de equilíbrio das forças. A resposta veio com a Lei dos Círculos (1855) e com a introdução de restrições para os funcionários públicos nos distritos em que ocupassem suas funções como juízes de Direito, delegados etc [6].
Em 1875, vigários e bispos, funcionários públicos no Império, foram impedidos de se candidatar em suas paróquias. Pela lei de 1881, funcionário público que se elegesse fora de sua jurisdição não poderia exercer seu cargo, receber salário e ser promovido. Houve diminuição da influência do Executivo e a presença de funcionários públicos na Câmara, que em 1850 era de 48%, em 1875 reduzira-se para 8%.
Na Constituição de 1891 eram elegíveis os maiores de 21 anos que se alistassem, sendo vedado o alistamento aos mendigos, analfabetos e aos praças de pret.
Rui Barbosa professava a incompatibilidade eleitoral dos militares como indispensável, porquanto a “elegibilidade pode substituir, aos olhos do militar, o ideal da pátria pelo de um interesse, de uma ambição, ou de um partido. Nunca se estabelecerá nas fileiras a imparcialidade política, a obediência militar, a religião cívica da disciplina, enquanto os governos, com a sedução das altas posições eletivas, puderem atuar sobre o espírito da oficialidade, fasciná-la com promessas, iludi-la com engodos, corrompê-la com esperanças brilhantes, a que tão predisposto se acha sempre, pela ardência de seus impulsos, o coração do soldado” [7].
Nessas Constituições de 1824 e de 1891 o lugar de padre era na missa, porque talvez se entendesse que a missão divina e conversão da fé não eram compatíveis com a vulgaridade do poder político terreno… Na Constituição de 1934 vieram as inelegibilidades por vínculo de parentesco e o prazo de um ano para aqueles exercentes das específicas funções públicas ali declinadas.
A Constituição de 1946 vedou o alistamento de analfabetos, os que não saibam exprimir-se na língua nacional e os praças.
A ditadura e as inelegibilidades
De 1964 a 1977, 173 mandatos de deputados federais eleitos foram cassados, em sua maior parte, pelos chamados atos institucionais, uma ninharia no confronto com os números atuais de cassações de mandatos.
Posteriormente, plantaram inelegibilidades pensadas para o atingimento de pessoas específicas. A EC 14/65 e a lei tornavam inelegíveis até 1965 os ministros que serviram em qualquer período compreendido entre 23/1/63 e 31/3/64. Ao exigirem domicílio eleitoral de quatro anos para os candidatos estaduais, atingiramos oficiais superiores das Forças Armadas, cuja natural movimentação na carreira tornava-os inelegíveis [8].
A Constituição de 1967 trouxe disciplina mais farta das inelegibilidades em toda a história constitucional brasileira: 1) pela possibilidade de lei tratar da perda e suspensão dos direitos políticos; 2) pelos contornos dados à inelegibilidade como a moralidade, a probidade, a vida pregressa…
Observa-se o fato da ampliação das inelegibilidades se dar no regime ditatorial, o que demonstra uma clara relação entre o regime de força e a limitação dos direitos políticos. Não pode ser por coincidência, mas, pelo contrário, tal limitação assume função nesses regimes importando na possibilidade de afastamento, por motivos, aparentemente nobres, de candidatos não desejados pelo establishment.
Em 1974, chega o Pacote de Abril para interromper o avanço significativo do MDB nas eleições com a conquista de 16 das 22 vagas para o Senado e 161 das 344 vagas na Câmara. O Congresso é fechado por 15 dias para se aprovar o pacote e garantir a continuidade da “democracia à brasileira”, a “democracia possível” daqueles tempos. O mandato do presidente da República é ampliado para seis anos, Mato Grosso é dividido, surgem os biônicos e a Lei Falcão, terrível símbolo da restrição da antipropaganda eleitoral, passa a valer para as eleições gerais.
A criminalização da política
O ano de 1988 rompe com esse entulho autoritário para depositar nas liberdades as suas esperanças. Rompe ela com as inelegibilidades com fundamento moral, com a ideia da via pregressa, com as excessivas incompatibilidades desde o Império. Na sua redação original, em repúdio ao regime de 1964, optou por afastar a moralidade, a probidade e a vida pregressa como empeços à elegibilidade, depois ressuscitados por meio do poder de reforma constitucional (EC 4/94).
A partir dessa traição a 1988, sob roupagem nobre, vem a famigerada Lei da Ficha Limpa (LFL) na condição de mais violento atentado aos direitos políticos, desde a ditadura, para colher candidaturas, proibindo o povo de escolher seus candidatos, agora escrutinados por critérios morais e sujeitos à conformação política dos estamentos de Tribunais de Contas e Câmara de Vereadores. A criminalização da política se arma com a inelegibilidade.
Walber Agra acerta ao descrever a judicatura e o Ministério Público e sua influência no processo eleitoral. Todavia, essa influência é compartilhada com outros agentes públicos e com o poder econômico sobre os quais a desincompatibilização não foi instituída.
O Judiciário Eleitoral, por imposição do Parlamento, passa a ter o poder de decidir quem o povo irá escolher. Agiganta-se o Judiciário Eleitoral [9] para se apresentar como um poder moderador, a despeito dos limites da Constituição, impondo-se como um ator político capaz até de salvar a República daqueles escolhidos por ela.
Parte do Judiciário e do Ministério Público chamaram para si um protagonismo antagônico com a natureza de suas funções. Assumiram a condição de guias espirituais da República ao impor valores e um projeto político, por meio do uso de suas funções. São alguns órgãos engajados em pautas que vão do combate à corrupção às resoluções das mais intricadas questões morais da sociedade.
Com isso, não há dúvida de que politizaram a Justiça e judicializaram a política, em perversão ao modelo de produção legiferante fundado em uma democracia de partidos, em que os desacertos morais do povo são resolvidos no Parlamento
A profusão de inelegibilidades do ordenamento permitiu a decisão sobre o universo dos candidatos a serem apreciados pelo povo, em subversão autocrática da ideia do exercício da soberania popular, fundado nas terríveis hipóteses da LFL: a lei moralizou e criminalizou a política.
Walber Agra circunda a ideia da periculosidade e tem razão ele em questionar a indignação de juízes e promotores favoráveis à LFL com a incompatibilização que lhes toca. A premissa é a mesma: se aquele poder pode turbar a normalidade da eleição ele deve ser contido. Se há possibilidade de desvio de poder, em razão do passado, isso deve ser contido, em razão da sua potencialidade e não em face dos fatos em si [10]. Há uma presunção do desvio de poder, dada a importância dos cargos e da atuação parcial do ex-juiz Sergio Moro e da “lava jato”…
Não me parece proporcional o impedimento à elegibilidade desses agentes. Antônio Carlos Mendes fala da desincompatibilização como inelegibilidade, “visando à garantia da liberdade de voto, à lisura e à legitimidade das eleições” [11]. Imaginar-se que o afastamento dos direitos políticos desses agentes vem a garantir a lisura e legitimidade das eleições demonstra o desacerto do código e excessiva tutela estatal, em desafio à soberania popular
Aqueles a quem a Constituição defere as tarefas de decidir o patrimônio, a liberdade das pessoas, que tem a titularidade da ação penal e fazem a defesa armada do país, não merecem a restrição violenta de seus direitos políticos, sem um critério razoável.
Outra grave questão situa-se na violação do passado o projeto retoma a retroatividade da lei para atingir fatos pretéritos por meio de normação posterior ao impedir juiz, promotor e militar de concorrem desde que tenham exercido a função nos cinco anos anteriores à candidatura.
O Supremo Tribunal Federal valeu-se da tese da retroatividade inautêntica, da obra de Canotilho para fazer valer a lei nova sobre fatos passados e salvar a constitucionalidade da LFL.
Sabe-se que quando Canotilho menciona a retrospectividade cita, expressamente, os casos das normas modificadoras de uma profissão, normas que regulam relações jurídicas contratuais duradouras e normas dos regimes previdenciários. São casos em que preexiste uma relação jurídica e esta se prolonga no tempo, diferentemente dos direitos políticos [12].
Estamos presos a essa visão infantilizada, nessa tentativa de tutela estatal das opções das pessoas pela introdução de requisitos para a elegibilidade, de modo a proteger o povo das virtualidades, o que redunda em proteger o povo dele mesmo, para que possa escolher “livremente”, em uma visão idealizada e aristocrática da política. Ao fazermos isso nada se faz senão proibir a escolha livre do povo.
O projeto é chumbo trocado na nossa indigência civilizatória, trazendo instabilidade, com o uso das inelegibilidades contra adversários e faz renascer as experiências do Império e da ditadura na manipulação do universo dos candidatos.
As inelegibilidades são exceções aos direitos políticos nas democracias ocidentais, porque a experiência demonstra que servem para excluir adversários e impedir as pessoas de escolher seus candidatos. Nosso regime de inelegibilidade não seria admitido pela jurisprudência das cortes na Europa, na América Latina e nos Estados Unidos, todos sob a proteção da Comissão de Veneza, Convenção Americana e Pacto dos Direitos Civis e Políticos.
Há uma inequívoca ab-rogação do direito fundamental de participação política, retirando-se do sufrágio universal a prerrogativa de escolha de seus candidatos, em clara subversão ao funcionamento da democracia, cuja equação erro/acerto integra o aprendizado e a depuração do sistema.
Finalmente, o maior pecado foi a ignorância da incidência do Direito Internacional público sobre o Direito Eleitoral nacional, viga sobre a qual poderia se estruturar um Direito Eleitoral democrático a luz dos avanços civilizatórios da jurisprudência da Corte Interamericana, da Convenção Americana Sobre Direitos Humanos, do Pacto dos Direitos Civis e Políticos.
A desobediência e alheamento desses parâmetros mínimos de proteção aos direitos políticos no Brasil vai continuar permitindo construções tais, de modo a tolher os adversários do poder eventual como a presente criminalização da atividade dos juízes, dos membros do Ministério Público e dos militares.
NOTAS
[1] CONAMP – Associação Nacional dos Membros do Ministério Público – Reforma Eleitoral: CONAMP publica folheto com 18 principais retrocessos existentes no PLC 112/21 Acesso em: 05.set.2021.
[2] ConJur – A quarentena de juízes e promotores no novo Código Eleitoral Acesso em: 06.set.2021.
[3] Projeto que prevê novo Código Eleitoral impede Moro de ser candidato em 2022 | CNN Brasil Acesso em: 05.set.2021.
[4] Vali-me de partes do texto original das seguintes obras: FERREIRA, Marcelo Ramos Peregrino Ferreira. O Controle de Convencionalidade da Lei da Ficha Limpa: direitos políticos e inelegibilidade. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2020, 3º edição; FERREIRA, Marcelo Ramos Peregrino. Da Democracia de Partidos à Autocracia Judicial: o caso brasileiro no divã. Florianópolis : Habitus. 2020.
[5] Os praças de pret são militares de inferior hierarquia na corporação.
[6] CARVALHO, José Murilo de. Sistemas Eleitorais e Partidos do Império. In: LIMA JR., Olavo Brasil de (org.). O Balanço do poder: Forma de Dominação e Representação. Rio de Janeiro: Rio Fundo: IUPERJ, 1990. p. 23.
[7] Obras Completas de Ruy Barbosa, Vol. XX, 1893, T. II, A Ditadura de 1893, Jornal do Brasil. As Incompatibilidades Militares. Ministério da Educação, RJ, 1949, p. 250.
[8] AZEVEDO, Débora Bithiah de e RABAT, Márcio Nuno. Parlamento Mutilado: Deputados Federais Cassados Pela Ditadura De 1964. Biblioteca Digital da Câmara dos Deputados. 2012, p. 38. Disponível em:<http://bd.camara.gov.br/bd/bitstream/handle/bdcamara/11574/parlamento_mutilado_bithiah%26rabat.pdf?sequence=1>. Acesso em: 04.set.2021.
[9] FERREIRA, Marcelo Ramos Peregrino. Da Democracia de Partidos à Autocracia Judicial: o caso brasileiro no divã. Florianópolis: Habitus. 2020.
[10] “A noção de periculosidade significa que o indivíduo deve ser considerado pela sociedade ao nível de suas virtualidades e não ao nível de seus atos; não ao nível das infrações efetivas a uma lei efetiva, mas das virtualidades de comportamento que elas representam”. FOUCAULT, Michel. A Verdade e as Formas Jurídicas. Rio de Janeiro: Nau edit., 1996, p .85.
[11] MENDES, Antônio Carlos. Introdução à Teoria das Inelegibilidades. São Paulo: Malheiros, 1994, p. 108.
[12] CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional. 5. ed. Coimbra: Almedina, 1991, p. 255.