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18/04/2022Por Luiz Viana Queiroz
Às vésperas da páscoa, sou chamado por Kenarik Boujikian e Carol Proner a esclarecer em artigo jurídico, minha posição de que o semipresidencialismo é inconstitucional e, em consequência, de que a proposta de emenda constitucional em estudo na Câmara dos Deputados não pode sequer tramitar.
A questão não é simples, pois exige análise jurídica dos limites do poder de reforma do Congresso Nacional, que, em princípio, como representante do povo, estaria apto a emendar a Constituição.
O ponto de partida deve ser o texto da CF/88, que na qualidade de constituição rígida estabeleceu as formas de sua própria alteração: revisão constitucional e emenda constitucional.
Para simplificar sua reforma, depois de 5 anos de sua promulgação, a CF/88 previu um processo legislativo de revisão, com quórum menor, por maioria absoluta do congresso nacional, em sessão unicameral (art.3º do ato das disposições constitucionais transitórias). Em 1994, foram aprovadas seis emendas de revisão.
Vencida a fase da revisão, a assembleia constituinte previu a possibilidade de mudança da constituição no futuro, através de emenda constitucional pelo Congresso Nacional, detentor do poder constituinte derivado, através de processo legislativo típico com inúmeros requisitos formais, que o tornam mais difícil que as demais hipóteses de criação de normas através do processo legislativo: leis complementares, leis ordinárias, leis delegadas, medidas provisórias, decretos legislativos e resoluções (art.59 da CF/88).
A proposta de emenda constitucional só pode ser apresentada: a) por um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal; b) pelo presidente da República; c) por mais da metade das Assembleias Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros (art. 60, da CF/88). Além disso, a proposta de emenda será discutida e votada em cada casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros (art. 60, §2º da CF/88).
Por outro lado, o texto originário da CF/88 impede que seja ela emendada na vigência de intervenção federal, de estado de defesa ou de estado de sítio (art.60, §1º da CF/88).
Além de estabelecer exigências formais, a assembleia constituinte também fixou limites materiais, excluindo do poder reformador a possibilidade de emendar a constituição em certas matérias: a forma federativa de estado; o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos poderes; e os direitos e garantias individuais. Nesses casos, a proposta de emenda constitucional sequer pode tramitar (art. 60, §4º da CF/88). São as denominadas cláusulas pétreas, insuscetíveis de modificação pelo poder reformador, petrificadas pelo poder constituinte originário.
Não estando o presidencialismo, sistema de governo, previsto no artigo 60 da constituição, como defender que estaria petrificado, excluído do poder constituinte derivado de o alterar por meio de emenda constitucional?
Defendo que se trata de cláusula pétrea implícita.
Depois de aprovar a forma de governo republicano e o sistema de governo presidencialista, a assembleia constituinte submeteu-os a consulta direto do povo, por meio de plebiscito, no dia 7/10/93 (art.2º do ato das disposições constitucionais transitórias), posteriormente transferido para o dia 21/4/93, com vigência em 1º de janeiro de 1995 (art. único da EC 2/92).
Como se sabe, todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente (art.1º, parágrafo único da CF/88), como é o caso do plebiscito (art. 14, inciso I da CF/88).
Penso que é preciso extrair consequências jurídicas da opção da assembleia constituinte, detentora do poder constituinte originário, ao remeter a República e o presidencialismo à deliberação popular pelo voto direto, por meio de plebiscito, que, em 21/4/93, os ratificou.
A assembleia constituinte poderia não ter feito isso, poderia não ter chamado o povo a deliberar sobre a República e o presidencialismo, até porque era detentora do poder constituinte originário e não chamou o povo para deliberar sobre tudo o mais da Constituição, atuando em seu nome. Poderia tê-lo feito, convocando um referendo para a Constituição, por exemplo. Não o fez. Mas preferiu, mesmo senhora do poder constituinte originário, chamar o povo para deliberar sobre esses dois temas, exclusivamente, em uma única vez, em data marcada.
Tendo o povo se manifestado de maneira majoritária, em 21/4/93, a favor da República e do presidencialismo, podem eles ser alvo de emenda constitucional a fim de implantar a monarquia e o parlamentarismo?
Inicialmente, abrem-se três hipótese interpretativas: 1 – sim, pode haver emenda constitucional, porque não há cláusula pétrea no artigo 60, §4º, da Constituição federal; 2 – sim, pode haver EC, porque não há cláusula pétrea no art. 60, §4º, da Constituição federal, mas desde que referendada pelo povo, através de consulta direta, tal qual foi feito em 21/4/93, repetindo a regra do art.2º do ato das disposições constitucionais transitórias; ou 3 – não é possível porque haveria uma cláusula pétrea implícita.
Filio-me à terceira resposta porque é preciso dar consequência jurídica à vontade da assembleia nacional constituinte no pleno exercício do poder constituinte originário. É relevante que aquela ordem para a consulta popular esteja situada no ato das disposições constitucionais provisórias e não no corpo permanente da constituição, inclusive com data marcada. Disso resulta que a opção pelo presidencialismo não é algo que se possa consultar o povo, sempre que a maioria congressual assim o entender conveniente. Fazê-lo não seria apenas inconstitucional, mas sim inconstitucionalidade qualificada por ofensa direta à vontade manifestada pelo poder constituinte originário.
Mais ainda. República e presidencialismo não estão expressos como cláusulas pétreas, no art. 60, §4º, da CF/88, porque seria manifestamente contraditório petrificá-los e, ao mesmo, tempo, remetê-los à consulta popular. Mas o procedimento único adotado pela assembleia constituinte com deliberação sua submetida ao voto direto do povo, tornou-os implicitamente cláusulas pétreas.
Isso, no entanto, não resolve completamente a questão jurídica, porque, como se sabe, pretende-se apresentar ao Congresso Nacional uma proposta de emenda para instituir o semipresidencialismo e não para acabar com o presidencialismo, substituindo-o pelo parlamentarismo.
Penso, no entanto, que no mundo do direito a natureza jurídica dos conceitos não se determina pela denominação e demais características formais adotadas pelo texto normativo.
Se está vedada emenda constitucional que extinga o presidencialismo, também está vedada reforma constitucional que o desnature sem o extinguir.
É dizer, se a emenda constitucional retirar do texto constitucional elementos essenciais do presidencialismo, será ela inconstitucional e sequer poderá tramitar.
Novamente precisamos voltar ao texto constitucional para dele extrair os elementos essenciais do presidencialismo no Brasil.
A CF/88 garante a independência e a harmonia entre três poderes: o legislativo, o executivo e o judiciário (art.2º da CF/88) e essa separação é cláusula pétrea expressa (art. 60, §4º da CF/88). Ao organizar esses poderes, a Constituição estabelece que o poder legislativo é exercido pelo Congresso Nacional, que se compõe da Câmara dos Deputados e do Senado Federal (art. 44 da CF/88), e lhes atribui competências (arts. 48, 51 e 52). Fixa igualmente que o poder executivo é exercido pelo presidente da república, auxiliado pelos ministros de estado (art. 76 da CF/88), e que são órgãos do poder judiciário os órgãos que especifica, entre os quais, o STF, o CNJ, o STJ, o TST, os tribunais regionais federais e os juízes federais, os tribunais e juízes do trabalho, os tribunais e juízes eleitorais, os tribunais e juízes militares e os tribunais e juízes dos estados e do distrito federal (art.92).
O cargo de presidente da república será exercido por brasileiro nato (art.12, §3º, I da CF/88), eleito juntamente com o vice-presidente, pelo voto direto dos eleitores brasileiros (art.77 da CF) para mandato de quatro anos (art.82 da CF/88).
As atribuições do presidente da república estão elencadas, de forma ampla, no art. 84 da Constituição que possui nada menos que vinte e oito incisos, inclusive um com cláusula aberta que reenvia para outras atribuições previstas na constituição (inciso XXVII), e vão, desde a nomeação e exoneração de ministros de estado e o exercício da direção superior da administração federal, inclusive exercer o comando supremo das forças armadas, até manter relações com estados estrangeiros, passando por competências no processo legislativo (iniciativa de leis, sancionar, promulgar e publicar as leis, vetar projetos de lei, editar medidas provisórias), e, ainda, decretar o estado de defesa, o estado de sítio, o estado de calamidade e a intervenção federal. Vale a pena a leitura de todos, que não vão aqui transcritos apenas por economia.
Nesse extenso rol, encontram-se funções de estado, que no parlamentarismo são exercidas pelo chefe de estado, – manter relações com estados estrangeiros e celebrar tratados, por exemplo, – e funções de governo, exercitáveis pelo chefe de governo, como é o caso de dirigir a administração pública, incluindo a gestão dos serviços, dos bens e dos servidores públicos.
No presidencialismo brasileiro, portanto, as funções de chefe de estado e aquelas de chefe de governo são exercidas, todas elas, pelo presidente da república, e apenas as previstas nos incisos VI, XII e XXV podem ser delegadas (dispor mediante decreto da organização e funcionamento da administração federal e extinção de funções ou cargos vagos; conceder indulto e comutar penas; e prover e extinguir os cargos públicos federais), ou seja, por ordem expressa da Constituição, todas as outras funções são indelegáveis, tal a importância do exercício do cargo de presidente da república.
A esse grande poder, a Constituição corresponde a atribuição de grandes deveres, cujo descumprimento gera crimes de responsabilidade (art.85 da CF/88).
Muitas daquelas atribuições ao presidente da república, previstas no art. 84 da Constituição, não parecem ser essenciais nem à chefia do estado, nem à chefia do governo, a exemplo da competência para conferir condecorações e distinções honoríficas (inciso XXI), mas o fato relevante é que foram todas fixadas pela assembleia nacional constituinte, à exceção do poder de decretar estado de calamidade pública, incluído pela emenda constitucional 109, de 2021 (inciso XXVIII) e duas sofreram alteração de redação: incisos VI e XIII , através da EC 32/01.
Assim, o texto constitucional nos aponta de maneira expressa e analítica o que significa o presidencialismo no Brasil. Retirar uma ou outra dessas atribuições do presidente da república, pode até ser mais conveniente para este ou aquele momento do nosso país, mas não tenho dúvida que significará uma ofensa à vontade constituinte originária.
Assim, estando o presidencialismo incluído implicitamente entre as cláusulas pétreas, proposta de instituição de semipresidencialismo é inconstitucional e sequer pode ser objeto de deliberação no Congresso Nacional, segundo a regra do art.60, §2º, da CF/88.