Cotas raciais para quem?
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08/09/2022Por Volgane Oliveira Carvalho
A ministra Maria Cláudia Bucchianeri concedeu liminar na Representação 0600859-89.2022.6.00.0000 determinando a remoção de conteúdos publicados na internet que traziam conteúdo pleno de desinformação.
O apuro argumentativo da decisão mostra um trabalho cuidadoso, quase artesanal de construção e organização das ideias. No árido campo das questões referentes à liberdade de expressão o magistrado age como um médico que atende um paciente fragilíssimo. É preciso avaliar cuidadosamente a necessidade de qualquer intromissão, invasão ou mediação, ponderando benefícios e contraindicações e realizando apenas as intervenções mais delicadas e indispensáveis, que produzam as cicatrizes mais imperceptíveis e os resultados proveitosos.
Contudo, mesmo o mais conservador dos cirurgiões não pode ignorar a agressividade e os riscos de um câncer. Nesse caso, cada dia de hesitação e cuidado pode representar um avanço maior do mal. Contra aquilo que se reproduz e se espalha sem controle gerando malefícios incomensuráveis não cabe esperar. Ainda assim, é necessário que se estabeleça um protocolo para que o bisturi não corte além do necessário, nem decepe o algo útil, um caminho de precisão para extirpar apenas aquilo que realmente é indesejado.
A realidade é que a profusão de redes sociais e a facilidade do acesso ao conteúdo que nelas circula livremente acabaram transformando a Justiça Eleitoral em um verdadeiro centro cirúrgico que permanece de plantão em tempo integral, sempre à espera de novos pacientes e, frequentemente, confrontada com os dilemas típicos do cirurgião.
Atuação da Justiça Eleitoral frente à desinformação
Um dos temas candentes do momento diz respeito ao estabelecimento de paradigmas de atuação da Justiça Eleitoral na análise de casos referentes à propaganda que envolvam episódios de desinformação. O livre mercado de ideias políticas certamente se funda na ampla circulação de opiniões, exigindo que toda intervenção seja pontual e circunstancial. Por outro lado, é certo que qualquer mercado, mesmo os mais avessos a amarras, demanda o estabelecimento de regras mínimas de funcionamento, sob pena de colapso.
Quando se fala do processo de difusão de informações no ambiente eleitoral, na tábua de regras essenciais certamente haverá inscrita, como norma matriz, a vedação do induzimento do eleitor ao erro no momento da formação do seu processo de escolha política.
Nesse cenário, é importante balizar nitidamente os espaços que competem aos direitos fundamentais, uma vez que em qualquer regime constitucional maduro inexistem direitos absolutos ou infensos a restrições. Limitações, aliás, que quase sempre emanam da própria Constituição e servem para apascentar conflitos e dificultar o indesejado abuso de direito, seja pelo Estado, seja pelos próprios particulares.
No campo da liberdade de pensamento, ainda que todas as forças devam ser empreendidas para garantir a livre circulação de ideias, esse processo não pode ocorrer de forma desregrada, pois em todas as circunstâncias há que se preservar a integridade do ambiente informativo. Afinal, direitos fundamentais não podem servir de escudo para a ofensa a outros direitos de igual matriz.
Desse modo, informações inverídicas, falseadas, descontextualizadas, enviesadas, manipuladas, recortadas e adulteradas não podem ser compreendidas como parcela da liberdade de expressão, do livre pensamento, da manifestação sem amarras ou do direito à galhofa. A repetição frequente de um conteúdo inverídico não possui o poder de transformá-lo miraculosamente em verdade inconteste digno de defesa jurídica, na realidade, o ato servirá apenas para torná-lo mais nocivo, dada a sua amplitude e capacidade de induzir pessoas ao erro.
O papel que compete à Justiça Eleitoral quando confrontada com o manejo de mecanismos de desinformação no corpo da propaganda, ainda que pontual, será de buscar preservar a liberdade de formação das escolhas pelos eleitores, sem que haja o uso de meios que possam induzi-los ao erro. Essa constatação, por si só, não torna a tarefa mais fácil de ser executada, pois são muitos os conceitos indeterminados que precisam ser manejados.
É certo, entretanto, que os limites para a propaganda eleitoral vêm sendo cuidadosamente desenhados pela jurisprudência das cortes eleitorais e pelo trabalho dos estudiosos da matéria. Dessa maneira, é possível afiançar que a Justiça Eleitoral deve efetivamente agir quando deparar com algumas das seguintes situações: difusão de fatos sabidamente inverídicos, indevidamente recortados ou gravemente descontextualizados, desvirtuamento de conteúdos e falas, criação de discursos e manifestações jamais realizadas e alteração deliberada do que foi efetivamente manifestado.
Todas as situações narradas, não raro, são incrementadas com o uso de aparatos tecnológicos como a trucagem de vídeos, a manipulação de áudios e a edição de imagens, o que potencializa o efeito e a gravidade do ato. Ademais, os objetivos podem ser variados, contudo, mas comumente tais posturas visam a desconstrução deliberada de figuras públicas e a formulação de propaganda negativa. Não se trata, portanto, de um processo de conquista de corações, mas uma atuação deliberada para destruição de reputações.
A ação, nessas situações, não representa uma afronta ao direito à livre manifestação do pensamento, ao inverso, nesses casos, busca-se assegurar que os eleitores tendo a acesso a informações com um padrão mínimo de qualidade e veracidade possam usufruir livremente do seu direito de escolha política. A desinformação corrompe a capacidade de escolha do cidadão, uma vez que cria realidades paralelas que podem modificar a sua compreensão dos fatos. Só haverá escolha verdadeiramente livre em ambiente imune à desinformação.
À guisa de conclusão
O direito à liberdade de expressão e manifestação de pensamento é uma pedra preciosa de maior valor na Constituição Federal de 1988, contudo, isso não o torna imune a limites. Não há direito absoluto. É impossível o cometimento de ilícitos utilizando como manto protetor direito fundamental. Alguns cânceres resultam em uma grave perda de peso, mas isso não os transforma em fármaco contra a obesidade.
A Justiça Eleitoral seguirá em seu plantão de defesa da liberdade de pensamento na propaganda atuando sempre de forma pontual, mas com olhos atentos à veracidade da informação ofertada aos eleitores e ciente da necessidade de proteção da honra daqueles que se apresentam como candidatos.