Rock in Rio, Lula e Bolsonaro: o que diz a lei eleitoral
02/09/2022Justiça eleitoral, propaganda e desinformação: um dilema cirúrgico?
05/09/2022Por Isabel Mota
Uma das questões iniciais a serem tratadas quando a gente trata de cotas é responder de modo direto e objetivo a quem elas se destinam. Pois bem! As cotas, enquanto políticas afirmativas, ao reconhecerem um déficit de representatividade de um grupo ou seguimento social, buscam artificialmente mudar essa realidade e se destinam, sim, a você que não pertence a esse grupo e/ou seguimento. Não se assuste.
O objetivo das cotas não é subverter a ordem social, mas pura e simplesmente tornar a sociedade mais justa. E essa justiça aproveita também a você e a/o coloca mais próxima ou próximo da felicidade. Isso porque, quando diminuímos um déficit, nós consequentemente reduzimos o clima de disputa desigual que só levou historicamente as sociedades à ruína.
Assim, quando a Lei 12.711/12 instituiu as cotas nas universidades públicas, não estava buscando privilegiar com circunstâncias benevolentes pessoas que não conseguiriam — sem elas — entrar na universidade, mas sim permitir que o reconhecimento da desigualdade de condições se tornasse elemento de uma disputa mais justa que, ao fim e ao cabo, iria beneficiar a todos, ao tornar a universidade tão plural quanto a sociedade brasileira que a financia.
As cotas estabelecidas para o ingresso nas universidades e no acesso ao serviço público, contudo, não são suficientes para tornar mais justa a sociedade. É por isso que é tão importante que no tocante à representatividade política tenhamos meios de também promover a inserção de grupos historicamente minorizados e que, em verdade, atualmente são maiorias invisibilizadas, como é o caso de mulheres, pretos e pardos.
Assim como ocorrera no ingresso às universidades públicas, no cenário da representatividade política, as cotas de gênero vêm passando por verdadeira e necessária transformação para deixarem de ser mera previsão e se constituírem numa realidade que impacta e define novos rumos para a política brasileira.
É nessa perspectiva que a cota de gênero para o registro de candidaturas e, mais recentemente, as cotas raciais se colocam como estratégia de inclusão e democratização do acesso à representação política. Essas cotas funcionam como um modo de minorar as distorções de representatividade quando olhamos para a nossa representação política e não identificamos a sociedade brasileira ali representada verdadeiramente.
Assim como as mulheres, a população preta e parda já esperou demais desde que políticas afirmativas começaram a ser implementas no mundo e a questão é que esse país já não pode se furtar ao seu objetivo de promover o que está tão lindamente previsto no texto constitucional.
A luta para conferir efetividade à cota de gênero presente na legislação eleitoral trouxe um aprendizado muito importante para o movimento negro de que já não era possível contar com a iniciativa do Congresso Nacional, a quem cabe legislar e buscar apenas por essa via uma fórmula de incentivo à apresentação de candidaturas de pessoas negras e pardas.
A destinação efetiva de recursos financeiros e de tempo de propaganda para as candidaturas de mulheres constituiu marco necessário e fundamental para que as mulheres passassem a ter mais viabilidade na disputa eleitoral e nessa luta.
Nessa perspectiva, considerando a mora do Congresso Nacional quanto à temática, foi necessário ir ao Judiciário e sugerir na forma de consulta uma proposta que destinasse recursos financeiros e tempo de propaganda proporcional para as pessoas negras e pardas vinculadas às agremiações partidárias. Tal feito representa um grande salto para tentar diminuir a baixa representatividade desse grupo.
Importante consignar que, para uma candidatura ser viável, ela necessita não só ser apoiada pelo partido político, mas ser viabilizada para se tornar competitiva e isso passa necessariamente pelo investimento de capital financeiro e, também, pela visibilidade dessa postulação eletiva através da propaganda política.
Depois de mulita mobilização e expectativa, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) respondeu afirmativamente à maioria dos quesitos formulados na Consulta n.º 0600306-47.2019.6.00.0000[1], ajuizada pela Educafro e pela deputada Benedita da Silva. Apesar disso, instalou-se um clima de ameaça e boicote que poderia ser perpetrado pelas agremiações, o que findou por gerar impacto na aplicabilidade da regra já para as eleições de 2020.
Dessa forma, foi necessário ir também ao Supremo Tribunal Federal (STF) para que a deliberação constante da resposta do TSE fosse implementada em caráter imediato já no pleito eleitoral de 2020, considerando que se entendeu pela aplicabilidade da decisão apenas a partir das eleições de 2022.
O debate travado trouxe a face escancarada do medo revelado no racismo institucional que nega à população negra a mera concretização imediata de uma medida que já chega atrasada. O STF teve, assim, a oportunidade de analisar a liminar requerida na ADPF n.º 738[2], sob a relatoria do ministro Ricardo Lewandowski.
Foi uma grande vitória e um critério objetivo e bem definido para gerar proporcionalidade e garantia na destinação de recursos dos fundos eleitoral e partidário para as candidaturas de pessoas negras e pardas.
Veja-se que estamos tratando de verba pública e que é destinada aos partidos políticos para garantia do financiamento de suas atividades e da promoção de candidaturas, não atentando em absoluto contra a autonomia partidária.
Nessa esteira, os grupos de mulheres e negros passam a ter uma relevância até então não experimentada no cenário político, fator mobilizador de candidaturas que não pode ser tão bem mensurado nas eleições de 2020.
Nas eleições de 2022, para além das cotas raciais instituídas via decisão do TSE e do STF, teremos a oportunidade de testar esse modelo. A primeira mudança já chegou que foi o aumento no registro de candidaturas de pessoas negras e pardas.
O pleito de 2022 também contempla outro marco que é a aplicação da Emenda 111 que, entre outros temas relevantes, dispõe sobre a contagem em dobro dos votos conferidos a mulheres e pessoas negras e pardas para fins de cômputo e distribuição dos fundos eleitorais e partidários. Aqui, temos um elemento de grande relevo que para além do incentivo à apresentação de candidaturas de mulheres e pessoas pretas e pardas: temos uma política efetiva que visa o voto e a obtenção do mandato eletivo.
Não basta pura e simplesmente dar mínima condição de disputa a candidaturas antes não visualizadas. É preciso conferir efetividade a esse investimento e transformar candidatos e candidatas em mandatários, hábeis a gerar efeito multiplicador e estabelecer um locus de luta na arena onde o destino de todos e todas é decidido.
Esse modelo de política afirmativa não é pronto e acabado e, portanto, não prescinde de aperfeiçoamento. Em breve, poderemos ver num horizonte próximo a reserva de vagas, assim como também a adoção pela Justiça Eleitoral de comissão de heteroidentificação para prevenir o uso indevido das cotas, que é um argumento que sempre se levanta de forma rasa contra a sua instituição.
Com um outro cenário mais auspicioso que permitiu o aumento no número de candidaturas apresentadas a registro nas eleições de 2022, já vemos que caminhamos a passos largos rumo a uma sociedade mais justa e plural que aproveitará a todos e, por isso, é possível afirmar que as cotas se destinam a todos e a todas.
[1] Tribunal Superior Eleitoral TSE – Consulta: CtaEl 0600306-47.2019.6.00.0000 BRASÍLIA – DF.
[2] Supremo Tribunal Federal STF – REFERENDO NA MEDIDA CAUTELAR NA ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL: ADPF 738 DF 0102225-14.2020.1.00.0000.
Isabel Mota – Graduação em Direito e Pós-graduação em Direito Público pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Pós-graduação em Direito e Processo Eleitoral pela Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará; Advocacia militante desde 1999 com concentração em matérias ligadas a Direito Eleitoral, Cível, Administrativo e Municipal, Assessorias de Prefeituras e Câmaras Municipais nas áreas de Licitação, Contratos, Convênios e Defesas perante Tribunais de Contas.