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20/06/2022Por Guilherme Barcelos
A Lei n° 14.230/2021 trouxe várias alterações no bojo da chamada Lei de Improbidade Administrativa (Lei n° 8.492/92), tanto que passou a ser chamada de “nova LIA”. As alterações realmente não foram poucas, por exemplo, dentre outras: a) dolo como elemento subjetivo apto ao reconhecimento de um ato ímprobo; b) definição do dolo como sendo a vontade livre e consciente do agente público de alcançar um dos ilícitos tipificados nos artigos 9° a 11 da lei; c) consagração da aplicação dos princípios de direito sancionador às ações de improbidade; d) extinção da antiga manifestação preliminar; e) resguardo (tardio) do contraditório substancial quanto aos tipos ilícitos previstos na lei, de modo que ninguém seja condenado por tipo diverso daquele pelo qual foi denunciado; f) alteração dos prazos e marcos de contagem do prazo prescricional e; g) regulamentação do acordo de não persecução civil.
Não obstante as várias alterações legais, assim como as múltiplas abordagens acerca delas, muitas das quais já foram feitas, inclusive aqui na ConJur, o texto que apresentamos hoje procurará falar de uma, mas não menos relevante: o interrogatório na Nova Lei de Improbidade. Pergunta-se, pois: considerado o caráter acusatório da ação de improbidade, a absorção taxativa pelo texto da lei de princípios caros de direito sancionador e a própria nomenclatura dada pela regra à defesa pessoal do acusado, em que momento da marcha processual deverá se dar o interrogatório nestes feitos, no início da instrução, tal como o depoimento pessoal nas ações civis comuns, ou ao término da instrução, como ato último dela?
Da aparente antinomia na qual incorreu o legislador infraconstitucional
A questão posta acima não é desarrazoada. E eu explico.
Com efeito, desde o nascedouro da LIA, há exatos trinta anos, a oitiva do réu foi encarada como mero depoimento pessoal que, destinado a “obter a confissão da parte” (sic) e não como defesa pessoal, sempre se dava ao início da instrução, isto é, como ato primeiro ou inaugurador da instrução processual. Confesso que isso sempre me trouxe inquietação, afinal, o acusado era chamado a falar mesmo ter conhecimento acerca do todo da acusação e das provas produzidas em contraditório. Em defesas que patrocinamos no exercício da advocacia chegamos a questionar a prática, inclusive sob o prisma constitucional, sem obtenção de sucesso, contudo.
Veio agora a nova LIA. E ela fez consignar no texto da Lei nº 8.492/90, notadamente no §18 do artigo 17, que “ao réu será assegurado o direito de ser interrogado sobre os fatos de que trata a ação, e a sua recusa ou o seu silêncio não implicarão confissão”.
A carga de significados proveniente do texto é profunda. De início, a lei trata aquele contra o qual é proposta uma ação de improbidade como “réu”, consagrando, pois, um viés nitidamente acusatório. De igual modo, o mesmo texto legal consagra o “direito de o réu não produzir provas contra si” (nemo tenetur se detegere), o que apenas reforça o matiz acusatório que — tardiamente — passou a permear a ação a partir da inovação legislativa. Já o §19 do mesmo artigo 17, seguindo o passo, traz ressalvas concretas em sua redação, no sentido de que não se aplicam na ação de improbidade administrativa “a presunção de veracidade dos fatos alegados pelo autor em caso de revelia” e a “imposição de ônus da prova ao réu”, nada referindo, todavia, quanto ao interrogatório do acusado.
Vale dizer: a prova é de quem acusa, presume-se a inocência do acusado, o acusado tem o direito de não produzir provas contra si, não há falar em inversão do ônus da prova e, por fim, o réu tem o direito — vejam bem, o direito — de ser interrogado acerca dos fatos que lhe são imputados por meio da peça acusatória. A lei afirma que se aplica ao sistema da improbidade, os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador. E ela condensa, assim sendo, dispositivos vários a fazer valer a ótica acusatória-sancionatória que permeia a ação.
Qual seria o problema, então?
O problema reside na redação constante do caput do artigo 17, segundo a qual “A ação para a aplicação das sanções de que trata esta Lei será proposta pelo Ministério Público e seguirá o procedimento comum previsto na Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), salvo o disposto nesta Lei”.
Note-se que o rito aplicado à ação de improbidade será o procedimento comum previsto no CPC, ressalvadas as exceções previstas na LIA. O rito comum do CPC prevê, a seu turno, à título de oitiva do réu, que “Cabe à parte requerer o depoimento pessoal da outra parte, a fim de que esta seja interrogada na audiência de instrução e julgamento, sem prejuízo do poder do juiz de ordená-lo de ofício” (CPC, art. 385).
Já o texto da nova LIA não ressalva o ato do interrogatório, tampouco prevê o momento de sua realização considerada a marcha processual, bastando atentar para o aludido §19. Faltou ali a referência ao interrogatório do réu.
Logo, em que momento deverá se dar a oitiva do réu/acusado, ao início da instrução, como prevê o rito comum previsto no CPC, ou ao fim da instrução, como deve ser em um processo acusatório, tal como o é a ação de improbidade administrativa, assim devendo ser encarada, sobretudo agora? Mais: se há aparente antinomia no texto da nova LIA, como resolvê-la? Qual seria a “resposta constitucionalmente adequada” (Streck) [1]?
O interrogatório na nova LIA — em busca da interpretação adequada à Constituição:
A ação de improbidade administrativa, a mesma que não se confunde com ação civil pública ou com ação de ressarcimento, tem feição acusatória e sancionatória, aplicando-se, na espécie, todos os princípios de direito sancionador. A ação de improbidade administrativa não é um processo civil comum, portanto, sendo que o seu caráter acusatório e sancionador traz à tona uma série de garantias tipicamente processuais penais, como, dentre outras, a ampla defesa e o contraditório, a vedação à inversão do ônus da prova e o direito ao silêncio. Já escrevemos sobre isso aqui neste mesmo espaço (ver aqui). Assim também deve ser com relação ao interrogatório do réu e, sobretudo, quanto ao momento de sua realização.
A esse respeito, é preciso dar razão a Tiago Ayres e Karina de Mattos quando escrevem acerca das ações de improbidade e do compromisso constitucional que deve norteá-las. Para os autores, assim como o Direito Penal, “o Direito Administrativo integra o Direito Sancionador do Estado, que visa a garantir a efetivação dos valores mais caros à sociedade, em prol da contenção do poder punitivo estatal” [2]. Logo, seguem ambos, se “em relação ao processo administrativo disciplinar […] reconhece o STJ a imperativa observância às garantias fundamentais, inclusive àquelas de natureza penal, com ainda mais razão devem a elas submeter-se as ações por ato de improbidade administrativa, eis que ensejam sanções de maior gravidade” [3]. Eles acertam.
A própria Lei de Improbidade condensa hoje robusto arcabouço principiológico a dar-lhe sustentáculo, que se resume à adoção de princípios de direito sancionador, os quais, evidentemente, deverão nortear a aplicação das regras correspondentes, tudo a partir daquilo que Lenio Streck chama de “condicionamento recíproco existente entre regras e princípios” [4]. Assim o é com o artigo 1º, §4º, da LIA, segundo o qual “Aplicam-se ao sistema da improbidade disciplinado nesta Lei os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador”. E com o artigo 17-D da mesma LIA, através do qual “A ação por improbidade administrativa é repressiva, de caráter sancionatório, destinada à aplicação de sanções de caráter pessoal […]”.
Já o interrogatório do acusado, trazendo à tona bem lançado voto proferido pelo ministro Ricardo Lewandowski no bojo da AP nº 528, é instrumento de defesa pessoal do acusado, segundo que “[…] a realização do interrogatório do acusado como ato final da fase instrutória permitirá a ele ter, digamos, um panorama geral, uma visão global de todas as provas até então produzidas nos autos, quer aquelas que o favoreçam, quer aquelas que o incriminem”. Um interrogatório que precede a própria instrução “[…] não permite ao réu que apresente elementos de defesa que possam suportar aquela versão que ele pretende transmitir ao juízo processante”.
Logo, se a LIA de hoje consagra, a mais não poder, a sua própria regência à luz dos princípios de direito sancionador, é indispensável que se congregue as respectivas regras ao parâmetro acusatório-sancionatório principiologicamente consagrado. E o interrogatório, que não é depoimento pessoal, mas instrumento de defesa pessoal do acusado, deverá ser realizado ao término da instrução, como ato último dela, tutelando-se, dessa forma, o contraditório e a ampla defesa, de acordo com o sistema acusatório previsto a partir da Constituição.
Embora o caput do artigo 17 remeta ao rito processual comum do CPC, e que o §19 do artigo 17 não ressalve expressamente a aplicação do rito ao interrogatório, parece-nos existir um rol de fundamentos a respaldar a realização do ato ao final da instrução, a começar pela própria nomenclatura atribuída pela lei (interrogatório do réu). Além disso, há, por oportuno, a principiologia de direito sancionador a nortear a interpretação-aplicação da LIA. Eis a resposta adequada.
Trata-se de promover a adequação da LIA ao sistema acusatório, de feição democrática, proveniente da nossa Constituição, dando-se, na interpretação das regras aparentemente antinômicas, a máxima efetividade aos direitos fundamentais do contraditório e da ampla defesa (artigo 5º, inciso LV, da CF), congregando, então, a interpretação-aplicação do texto, aos princípios de direito sancionador em geral e, por via de consequência, ao sistema acusatório constitucionalmente assegurado.
Post-scriptum
Aproveitando o mesmo gancho, é hora de começarmos a discutir a juntada aos autos de uma ação de improbidade da íntegra de inquéritos civis instaurados previamente para subsidiar a sua futura propositura. A questão é de preservação do contraditório no âmbito judicial.
Os procedimentos de investigação assim são instaurados para investigar determinados fatos e, a depender do conteúdo obtido, propor demandas contra possíveis dilapidadores da coisa pública. Assim o é na esfera penal. E assim o é na esfera da improbidade administrativa.
Ressalvadas, então, as provas não repetíveis, não há sustentação para que provas repetíveis em juízo, como testemunhos, colhidas na fase de investigação sem qualquer contraditório, sejam aportadas aos autos do processo judicial como “prova documental”. Elas serão usadas, direta ou indiretamente, até mesmo para “cotejar” o que foi dito na seara extrajudicial com o testemunho judicial, como se este se devesse à simples ratificação. E isso fere o contraditório.
Cumprida a função do inquérito, qual seja a propositura de ação ou arquivamento, descartem-se as provas repetíveis. Na esfera do processo penal, Aury Lopes Jr. é o precursor da crítica, ocasião na qual sustenta a exclusão física das peças do inquérito do bojo das ações penais, justamente para resguardar a garantia da jurisdição e o contraditório, evitando-se a contaminação consciente ou inconsciente do destinatário (LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 16ª ed. São Paulo: Saraiva. 2019, p. 167 ss.).
Devemos, necessariamente, aproximar o raciocínio da esfera da improbidade administrativa. Reitere-se: é uma questão de preservação do contraditório ou, noutras palavras, da produção da prova em contraditório, garantindo-se, com isso, a paridade de armas.
[1] Lenio Streck, com a sua “Crítica Hermenêutica do Direito”, aponta que a “resposta constitucionalmente adequada” é um direito fundamental de todo e qualquer jurisdicionado. Mais do que isso, “trata-se de um direito fundamental a uma resposta adequada à Constituição ou, se assim se quiser, uma resposta constitucionalmente adequada (ou, ainda, uma resposta hermeneuticamente correta em relação à Constituição). Antes de qualquer outra análise, deve-se sempre perquirir a compatibilidade constitucional da norma jurídica com a Constituição e a existência de eventual contradição. Deve-se sempre perguntar se, à luz dos princípios e dos preceitos constitucionais, a norma é aplicável ao caso”. (STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e decisão jurídica. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014).
[2] AYRES, Tiago; MATTOS, Karina Calixto de. A Nova Lei de Improbidade Administrativa: o compromisso constitucional como única alternativa. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/356158/nova-lei-de-improbidade-administrativa-o-compromisso-constitucional. Acesso em: 7 jun. 2022.
[3] Ibid.
[4] Para Lenio a diferença entre regra é princípio é de caráter ontológico, representando o resgate do mundo prático no Direito. Normas serão, assim, “o produto de uma distinção deontológica própria do direito, já que ele se articula a partir de regras e princípios. Princípios, nesse sentido, são o modo pelo qual toda essa normatividade adquire força normativa para além da suficiência das regras. Os princípios são o marco de institucionalização da autonomia do direito. As regras não acontecem sem os princípios. Os princípios sempre atuam como determinantes para concretização do direito e, em todo caso concreto, eles devem conduzir para determinação da resposta adequada. Nas regras, não existe uma força de capilarização. As regras constituem modalidades objetivas de solução de conflitos. Elas ‘regram’ o caso, determinando o que deve ou não ser feito. Os princípios autorizam esta determinação; eles fazem com que o caso decidido seja dotado de autoridade que — hermeneuticamente — vem do reconhecimento da legitimidade. O problema da resposta adequada/correta, neste caso, só é resolvido na medida em que seja descoberto o princípio que institui (legitimamente) a regra do caso. De todo modo, os princípios não resolvem — em termos lógico-objetivos — o caso, mas constituem a legitimidade da solução, fazendo com que a decisão seja incorporada ao todo da história institucional do direito” (grifamos). (STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 560).