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Há tempos tem sido dito que a Justiça Eleitoral se tornou protagonista das eleições. No mais das vezes, o comentário vem em tom de crítica. Para usar uma metáfora do futebol, apropriada em ano de Copa do Mundo, é como se o árbitro quisesse aparecer mais do que os jogadores.
No ano que passou tivemos eleições gerais no Brasil, renovando-se a Câmara dos Deputados, as Assembleias Legislativas nos estados e a Câmara Legislativa do Distrito Federal, um terço do Senado Federal e elegendo governadores e Presidente da República. O alegado protagonismo do TSE, leitura um tanto exagerada em relação a eleições passadas, foi indiscutível em 2022.
E apenas em razão disso seguimos vivendo em uma democracia.
A afirmação parece forte, mas os fatos lhe dão razão. O candidato que buscava seguir no Planalto tudo fez para testar os limites do Direito Eleitoral e da Constituição da República. Com a poderosa caneta presidencial em mãos e sem pudores de usá-la em seu projeto político; cercado de empresários igualmente desinibidos em se valer do poder econômico em prol de seu candidato; e liderando um exército de seguidores nas redes sociais, com técnicas muitas vezes ilícitas de atuação na divulgação de desinformação, Bolsonaro mostrou a razão pela qual o processo eleitoral brasileiro foi e segue sendo respeitado dentre as democracias.
Foi apenas graças à intensa atividade da Justiça Eleitoral, liderada nos momentos mais críticos pelo Ministro Alexandre de Moraes, que foi possível preservar o respeito à lei e garantir que a vontade popular pudesse ser expressa nas urnas de forma legítima.
Resta entender, portanto, a título de balanço do Direito Eleitoral em 2022, o que foi feito pela Justiça Eleitoral para que pudéssemos passar para 2023 ainda como uma democracia.
Muito se questionou, inclusive entre pessoas de boa-fé, sobre os limites da atuação do TSE. Não estaríamos exagerando no remédio e, com isso, correndo o risco de mergulhar em outra enfermidade, igualmente negativa para o corpo democrático?
A resposta, ao menos em nossa leitura, é negativa.
Ainda que o TSE tenha atuado com especial rigidez e celeridade, agiu sempre dentro dos limites daquilo que prevê a lei e a Constituição da República e, tão importante quanto, o fez de forma isonômica, tratando igualmente as chapas que se enfrentaram na eleição presidencial.
As críticas ou dúvidas levantadas ao longo dos últimos meses centram-se, fundamentalmente, em três pilares: subjetivismo da Justiça Eleitoral ao considerar ilegais propagandas eleitorais que descontextualizaram informações; quebra da isonomia em razão das tutelas concedidas contra Bolsonaro, impedindo que seguisse praticando determinados atos; e excessos no exercício do poder de polícia eleitoral, com a determinação de derrubada de conteúdos, perfis e páginas em redes sociais.
A primeira crítica parte da ideia de que a Justiça Eleitoral somente deveria considerar ilegal uma propaganda eleitoral se seu conteúdo fosse chapadamente falso. Em outras palavras, se divulgasse fatos indiscutivelmente mentirosos. Ao analisar a informação trazida em seu contexto, estaria sendo aberta uma porta ao subjetivismo, que poderia desequilibrar a disputa.
Essa atuação mecanicista da Justiça Eleitoral nunca existiu e, se pensarmos bem, não deveria jamais existir. Desde sempre os tribunais eleitorais analisam a mensagem trazida ao seu conhecimento não apenas em seus aspectos gramatical e semântico – quais são as palavras e qual o seu sentido -, mas também na faceta pragmática, ou seja, como ela se coloca em seu contexto.
Basta lembrar, nos idos de 2008, da propaganda que colocava em dúvida a orientação sexual de um candidato a prefeito de São Paulo. Textualmente, apenas perguntava-se se o eleitorado o conhecia e se sabia se era casado e tinha filhos. Em seu contexto, contudo, tratava-se indubitavelmente de uma peça homofóbica e assim foi reconhecida pela Justiça Eleitoral.
Nada de novo ou de indesejável, portanto, na análise contextual daquilo que candidatos e demais atores do jogo eleitoral dizem. Tudo o que não se quer é uma Justiça Eleitoral ingênua, amarrada a supostos e fictícios limites de objetividade, pelos quais escorram pelos lados o discurso de ódio e a desinformação.
A questão amarra-se, inclusive, ao segundo grupo de críticas, relativo à suposta quebra de isonomia. Diz-se que, por exemplo, Bolsonaro não pôde acusar Lula de corrupto, o que teria levado a um desequilíbrio na disputa.
Entende-se equivocada essa leitura. É normal que os tribunais eleitorais fixem uma baliza de tolerância para o nível do debate eleitoral em determinado pleito. Essa baliza pode ser mais alta ou mais baixa, o que importa é que seja igual para todas as candidaturas.
Idealmente, o melhor seria sempre termos uma Justiça Eleitoral minimalista, que permitisse o mais amplo fluxo de informações, ainda que isso significasse a veiculação de ataques grosseiros e, quiçá, falsos. Ainda no campo ideal, melhor que o eleitorado faça a clivagem da verdade e da mentira, amadurecendo inclusive nesse processo.
Infelizmente, o Brasil de 2022 está longe desse mundo ideal, em que o livre mercado das ideias rejeita os discursos de ódio, prevalecendo a via da democracia. As ferramentas à disposição dos que – no Brasil e em outras democracias ocidentais – atacam o sistema democrático e buscam solapá-lo são poderosas e impedem que o propalado livre mercado de ideias atinja sua finalidade.
Microssegmentação do eleitorado; uso abusivo de bancos de dados ilegais; perfilamento psicológico do eleitorado; criação artificial de bolhas em que se retroalimenta o discurso de ódio; violação das regras de uso das plataformas, disseminando indiscriminadamente e de forma anônima mensagens fraudulentas, são todas ferramentas que nem o mais imaginativo filósofo político do liberalismo poderia cogitar até pouco tempo atrás.
Contra esse arsenal, ao menos até que se encontrem formas de regulação adequadas desse novo mundo digital, infelizmente é necessário que a baliza de tolerância da Justiça Eleitoral seja mais baixa. Vale repetir que, com isso, o mais relevante é que o controle tenha a mesma intensidade em todos os lados da disputa.
E foi o que fez o Tribunal Superior Eleitoral. Basta lembrar que uma das questões mais polêmicas surgidas no início do segundo turno – a frase de Bolsonaro sobre as meninas venezuelanas no entorno de Brasília – foi alvo de ação eleitoral e o TSE determinou que não fosse usado o argumento da suposta pedofilia, exatamente por tê-lo como descontextualizado.
Além disso, quando Lula promoveu uma live com diversos artistas, parte substancial do conteúdo foi tirado do ar pelo mesmo TSE, para evitar a configuração de abuso de poder econômico, na medida em que se entendeu, na concessão de tutela, que poderia ter sido infringida a regra que proíbe showmícios.
O que não se pode perder de vista, contudo, é que quem detinha poder político apto a ser abusado era o atual Presidente da República. Natural, assim, que a maioria das decisões determinando a cessação de condutas fosse direcionada a ele. Assim ocorreu, por exemplo, na proibição do uso de cerimônias oficiais para veiculação de propaganda eleitoral – como no discurso feito na embaixada brasileira em Londres – ou na vedação da veiculação de lives de conteúdo eleitoral usando estrutura e servidores públicos.
Aqui vale ainda destacar o uso cirúrgico, pela Corregedoria Geral Eleitoral, das tutelas inibitórias, como meio eficaz de evitar que atos abusivos pudessem seguir produzindo efeitos nocivos e gerando desequilíbrio na disputa eleitoral. Diversas foram as situações, todas elas com absoluta precisão, em que a CGE agiu prontamente, quando instada por candidatos, partidos ou coligações.
Por fim, severas críticas foram dirigidas ao poder de polícia eleitoral exercido pelo TSE, especialmente quanto à derrubada de postagens e perfis em redes sociais. Para tratar do assunto, é importante explicar brevemente do que se trata.
Normalmente visualizamos o Poder Judiciário como algo inerte, que fica em posição passiva esperando que as partes interessadas tragam suas demandas, para que possam ser decididas de forma isonômica.
A Justiça Eleitoral atua dessa forma também, quando analisa ações e representações eleitorais ajuizadas pelas partes.
Ocorre que a Constituição da República e a lei atribuem à Justiça Eleitoral outras tarefas além dessas, dentre as quais a de cuidar do processo eleitoral e protegê-lo em sua normalidade e legitimidade, contra o abuso de poder econômico e político, a fraude, a corrupção, preservando o cumprimento da legislação eleitoral.
Aqui tem-se, por órgão do Poder Judiciário, uma parcela de atividades que seria própria do Poder Executivo – se ficarmos na divisão clássica de tarefas do Montesquieu. Cadastrar eleitores, registrar partidos políticos e filiados, organizar eleições, contar votos, proclamar resultados, nada disso é atividade tipicamente própria do Poder Judiciário.
É verdade que, no início dos anos 30 do século passado, o Brasil, ao atribuir ao Poder Judiciário essa missão, criou uma jabuticaba. Mas ela deu certo. Foi a resposta certeira e necessária aos desmandos das eleições da República Velha e, sem dúvida, ajudou o Brasil – passados os períodos de ditadura – a caminhar rumo à maturidade democrática.
Se a Justiça Eleitoral exerce essas funções típicas de Poder Executivo, é natural que tenha as prerrogativas necessárias para isso. Dentre elas, cabe destaque ao poder de polícia, que é a capacidade de determinar a cessação de atividades ilegais administrativamente, sem prévia provocação pelos interessados.
E não se trata de nenhuma novidade. A Lei Geral das Eleições trata do tema há décadas e nunca se questionou seriamente a possibilidade da autoridade eleitoral determinar, por exemplo, a retirada de uma placa ilegal de propaganda ou a apreensão de um carro de som agindo ilegalmente. A propaganda migrou das ruas para as redes, nada mais óbvio do que migrar também o controle sobre ela.
Cabe nesse ponto, por fim, destacar que esse poder de polícia foi regulamentado por resolução do TSE e limitou-se a duas situações: repetições de conteúdos que já haviam sido considerados ilegais em ações judiciais prévias e desinformação direcionada a atacar o próprio sistema eleitoral.
Quanto à primeira possibilidade, creio que não há nenhuma crítica. Se a Justiça Eleitoral – em um processo judicial com ampla defesa e contraditório – já decidiu que um determinado vídeo, por exemplo, é ilegal, por óbvio que o mesmo vídeo postado em outro endereço deve ser derrubado imediatamente.
O segundo cenário é mais delicado, pois era missão institucional do Ministério Público Eleitoral zelar pela legitimidade do sistema eleitoral, agindo contra aqueles que indevidamente propalam desinformação apta a afetar a normalidade do processo eleitoral.
Lamentavelmente, contudo, viu-se esse ano a inércia do órgão que deveria proteger a sociedade e, com isso, exigiu-se que o TSE, cumprindo a missão que a Constituição da República lhe delegou, agisse.
Como se vê, ao menos em nossa leitura, a Justiça Eleitoral – e, em especial, o TSE – agiram na exata medida necessária para preservar o regime democrático ante os obstáculos vistos em 2022. Fez isso dentro dos limites da lei e tratando de forma equilibrada as candidaturas presidenciais.
Devemos, sem dúvida, muito não apenas aos magistrados, mas também e especialmente aos milhares de servidoras e servidores da Justiça Eleitoral que, ao longo dos últimos anos, sofreram violentos ataques e souberam, com sua atuação abnegada e comprometida com a democracia, responder de forma republicana e contundente.