“Não existe estado de emergência criado apenas para driblar restrição eleitoral”, diz Luiz Fernando Casagrande Pereira no Jornal Nacional
01/07/2022A prova do abuso de poder no processo eleitoral
04/07/2022Por Egon Bockmann Moreira*
As Constituições são a técnica legislativa de se organizar o exercício do poder político, dividindo-o e submetendo-o ao direito. Pretendem torna-lo estável e previsível, cumpridor das regras do jogo. Por isso que, a partir da promulgação constitucional, todos os demais poderes — políticos e econômicos — tornam-se juridicamente constituídos. O poder não é mais a fonte legitimadora das escolhas e condutas, mas é substituído pela Constituição.
Na justa medida em que é a Constituição quem outorga poderes, estes são dela dependentes e lhe devem respeito. Não podem voltar-se contra a sua própria fonte de legitimidade, sob pena de invalidade e responsabilização. A finalidade da criação dos poderes é justamente a de dar aplicabilidade, com a máxima eficácia possível, à Constituição. A competência constitucional para elaborar e promulgar emendas não escapa a essa premissa.
Emendas constitucionais são fruto do exercício do poder constituinte derivado. Elas não são provenientes do poder político em forma pura (como a Constituição original), mas de competências. O poder constituinte derivado autoriza que novas normas constitucionais sejam formadas a partir das anteriores. A sua razão de ser está no fato de que, para se tornar perenes, as Constituições não podem se pretender imutáveis. A permanência constitucional exige a adaptabilidade do texto originário — sem, jamais, o violar. É lógico e intuitivo que as emendas não podem agredir a Constituição, sob pena de inconstitucionalidade.
Porém, fato é que o poder político é um animal difícil de ser domesticado, sempre indócil e desobediente. De tempos em tempos, insiste em voltar-se contra a sua própria fonte de legitimidade — como ora se dá com o Projeto de Emenda Constitucional — PEC nº 1/2022, e a hoje quase-enterrada PEC nº 16/2022.
Como consta de sua ementa, a abandonada PEC nº 16/2022 destinava-se a fazer com que a União prestasse “auxílio financeiro aos Estados e ao Distrito Federal, com o objetivo de compensar perdas de arrecadação decorrentes da redução das alíquotas relativas ao Imposto sobre Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação – ICMS, incidente sobre o óleo diesel combustível e o gás liquefeito de petróleo, derivado de petróleo e de gás natural.”
Além de bilionária (até R$ 29,6 bilhões), essa generosidade era condicional: destinava-se apenas àqueles estados e Distrito Federal que “espontaneamente” diminuíssem as alíquotas dos impostos de sua competência sobre os produtos nela mencionados. Em outras palavras: fazia com que o contribuinte de tributos federais — sobretudo a grande massa trabalhadora, que não consegue desviar-se da cobrança — financiasse os descontos que seriam dados aos usuários de veículos automotivos. O que já é bastante complicado em termos de promoção da igualdade. Esse arranjo financeiro promoveria uma irracional distribuição de riqueza: os economicamente mais vulneráveis a financiar os combustíveis.
Porém, as coisas sempre podem piorar. Afinal, se tem alguém que conhece as vicissitudes do exercício político são… os políticos, que constataram não haver qualquer garantia de que os estados e o Distrito Federal mordessem tal isca. Daí o senador Fernando Bezerra ter trazido à baila outra PEC, a nº 1/2022, que obscureceu a PEC nº 16/2022 e instalou a discussão quanto a auxílios diretos à população, da ordem de R$ 38,7 bilhões, por meio de maiores benefícios ao “Auxílio Brasil” e ao “Auxílio gás”, ao lado de valores a serem dados a caminhoneiros autônomos — o “Auxílio diesel” — e verbas a municípios para idosos em transporte público municipal, dentre outras benesses financeiras. Já não se fala mais de compensações com os poderes públicos, mas em “voucher caminhoneiro” — a ser instalado em ano de eleições em vista do assim denominado “Estado de emergência”.
Em tese, e como consta na abertura da justificativa da PEC nº 1/2022, esse derramamento não-controlado de moeda nos mercados se destinaria a combater a inflação (como se medidas expansionistas não pudessem agravar a inflação, especialmente em países com o histórico brasileiro). O que já é um mau começo, mas o relatório do senador Fernando Bezerra pretende instalar um “Estado de emergência” e, assim, driblar os entraves da legislação eleitoral a fim de criar benefícios a determinados grupos de eleitores. Está a brincar com fogo, eis que esse arremedo de Estado de exceção tem uma só finalidade: a burla à legalidade e à moralidade.
Em outras palavras, a PEC nº 1/2022 já não mais busca aperfeiçoar a Constituição ou lhe dar máxima aplicação, mas sim a impedir a aplicabilidade da regra eleitoral que impede essa ordem de concessão de benefícios extraordinários, a fundo perdido, às vésperas das eleições. Pretende-se quebrar a regra de ouro de qualquer processo eleitoral, autorizando que o governo crie e distribua verbas públicas às vésperas do pleito. Visa a permitir que o governo federal abuse de seu poder econômico.
Ou seja, a título de exercer uma competência constitucional, a PEC 1/0222 pretende violar a Constituição. Isso por meio do manejo de um “Estado de emergência” criado sob medida para corromper a própria Constituição. Essa inconstitucionalidade não pode ser prestigiada.
*Egon Bockmann Moreira é professor de Direito Econômico da Faculdade de Direito da UFPR