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11/07/2022Por Helio Deivid Amorim Maldonado
Antes de tudo, há uma questão fundamental: o conceito de abuso de poder.
Ocorre que, o abuso de poder, no processo eleitoral, é um conceito jurídico indeterminado. Ou seja, existe indeterminabilidade semântica sobre seu significado, de modo que sua revelação perpassa pela judicialização do processo eleitoral.
Por certo, então, a prova do abuso de poder no processo eleitoral, retratado no abuso de poder econômico, político, dos meios de comunicação e religioso, é objeto das ações eleitorais.
Todavia, existe o paradoxo do tempo no processo. Por meio do processo jurisdicional, hoje se pretende reconstruir um fato do passado, para a produção de efeitos jurídicos para o futuro. Assim, o paradoxo.
Por isso, a reconstrução dos fatos no processo, e, por conseguinte, a produção de prova a seu respeito, é realizada no âmbito da estrutura metafísica da linguagem. O mundo de significações diversas para um mesmo objeto posto ao conhecimento.
Logo, pelo processo não se acessa os fatos em si mesmos: em carne e osso. Ao revés, a prova documentada, como objeto, é quem proporciona a reconstrução de significado dos fatos, pelo juiz eleitoral, no seu convencimento motivado. Essa é a passagem do enunciado descritivo deduzido pelas partes no processo em seus respectivos atos postulatórios, para o enunciado declarativo sobre os fatos, decidido pelo juiz, por tê-los como provados.
A recognição sobre a prova do abuso de poder é feito pelo critério do convencimento motivado disposto no artigo 23 da Lei de Inelegibilidades.
Ele diz: “O Tribunal formará sua convicção pela livre apreciação dos fatos públicos e notórios, dos indícios e presunções e prova produzida, atentando para circunstâncias ou fatos, ainda que não indicados ou alegados pelas partes, mas que preservem o interesse público de lisura eleitoral”.
Esse dispositivo, que positiva o critério do convencimento motivado, já teve sua constitucionalidade ratificada em controle concentrado pelo Supremo Tribunal Federal. Adjetivava-se que, em violação à congruência, inadmissível é o juiz eleitoral valorar fatos que não deduzidos pelas partes no processo.
Então, de posse desse aparato do processo, o juiz, interprete autêntico do Direito, empreende sua procura da verdade.
Entretanto, subsiste uma tensão entre “verdade, processo e justiça”. Isto pois, compreende-se que a Justiça da decisão judicial, aferida pelo resultado de seu procedimento, não exige o encontro da “verdade com o processo”. Trata-se, da percepção, que essa é uma relação aproximativa, falível.
Isso porque, suscetível aos fatores da iniciativa probatória das partes nas ações eleitorais, os poderes instrutórios do juiz eleitoral, e a valoração da prova.
Procedentes são todas essas afirmações.
Primeiro, porque sendo o processo regido pelo princípio dispositivo, são as partes das ações eleitorais quem elegem os meios processuais pelos quais vão fazer a prevalência de suas pretensões. O pedido de produção de prova é regido pelo artigo 22 da Lei Complementar 64/90, sendo-lhe supletivamente aplicado todo o capítulo da prova do Código de Processo Civil.
E os fatores que influenciam o sucesso da produção de prova são a controlada competência funcional dos procuradores das partes e a incontrolável sorte na sua realização.
Na sua falta, independentemente da causa, o juiz, como juiz constitucional de garantias, com limite na imparcialidade, não pode se substituir no ônus probatório das ações eleitorais: o estático, em que incumbe a parte quem alegou os fatos provar esses mesmos fatos, dada a resistência da doutrina e jurisprudencial eleitoral quanto a inversão dinâmica desse ônus.
Logo, a valoração probatória, nessa ideia de processo constitucionalizado, está adstrita à prova produzida nas ações eleitorais.
É sobre o acervo probatório que o juiz eleitoral promove sua recognição sobre os fatos. Essa é a exegese mais adequada do artigo 23 da Lei de Inelegibilidades.
Todavia, é preciso o estabelecimento de constrangimentos hermenêuticos à revelação do abuso de poder pela jurisdição.
Tal se afirma, porque o abuso de poder não pode ser aquilo que o juiz eleitoral comeu no café da manhã, como diz Dworking. Sendo a discricionariedade da decisão o problema central da Teoria Geral do Direito, também a discricionariedade na valoração probatória é um problema da a Teoria Geral do Processo.
Logo, os ilícitos nominados — violação das regras atinentes arrecadação e gastos de campanha; captação ilícita de sufrágio, e suas respectivas provas, são um dado de entrada para a compreensão do abuso de poder. Não um ponto de chegada.
Porque, para além da ilicitude em forma, em substância, para o reconhecimento do abuso de poder, exige-se a potencialidade lesiva, atualmente, marcada pela gravidade das circunstâncias do ilícito eleitoral, segundo a expressão do inciso XIV, do artigo 22, da Lei de Inelegibilidades.
E assim que a míngua da taxatividade dos ilícitos eleitorais nominados, inominadamente, e com potencialidade lesiva, se afere o abuso de poder econômico, político, dos meios de comunicação e religioso, através da prática de atos ilícitos ou mesmo lícitos, mas com abuso de direito. No concreto, quer se dar máxima efetividade à proteção da normalidade e legitimidade do pleito.
E na valoração em si mesma, intercombinada do abuso de poder, da condição de responsável ou beneficiário das partes, e da potencialidade lesiva do abuso, é que pela Dignidade da Legislação, e pelo paradigma do Estado Constitucional, que o convencimento é constrangido pelas presunções estampadas legalmente no critério da prova legal, e judicialmente nas máximas de experiência.
Nada obstante o sistema tarifárico de valoração da prova tenha sido algo do Estado Legislativo, subsiste no Estado Constitucional o critério da prova legal. Isto é, uma atribuição legal a priori da eficácia comprobatória do meio de prova geral disposto no direito processual, que uma vez produzido no processo, conta com essa presunção.
Exemplo dessa ilustração é a eficácia probatória do documento público, da ata notarial, e das gravações em vídeo/áudio.
A esse lado. As máximas de experiência, o conhecimento do mundo da vida pelo juiz, por ser ser-no-Mundo, e por estar inserido em um fluxo de historicidade em que a força da tradição lhe impede a eleger significados sobre os acontecimentos, acabam por impor o controle público sobre a linguagem da decisão judicial sobre o abuso de poder.
Esse é a dimensão de exigência do convencimento motivado pelo filtro constitucional da garantia fundamental de fundamentação das decisões judiciais.
É pela fundamentação da decisão judicial sobre o abuso de poder que é aferida a legitimidade da judicialização do processo eleitoral. Um controle axiologicamente externo da decisão judicial feito pelo paradigma da Dignidade da Legislação, da máxima efetividade das normas constitucionais, e da força probante do critério da prova legal e das máximas de experiência no processo.