O Globo entrevista Luiz Fernando Pereira sobre ações de Jair Bolsonaro no STF e investigação no TSE
23/01/2023Rubens Beçak fala sobre ações de Moraes ao El Mercurio, do Chile
24/01/2023Por José Maurício Linhares Barreto Neto e Gustavo Deppe
Em setembro, o humorista e deputado Francisco Everardo Tiririca Oliveira Silva (PL/SP), mais conhecido como Tiririca, voltou a entrar numa disputa judicial com o cantor Roberto Carlos. O motivo foi o uso de uma música de sua autoria.
A controvérsia se deu, novamente, em torno da canção O Portão — a primeira vez ocorreu nas eleições de 2014, na qual o humorista fora reeleito para o segundo mandato. Desta vez o comediante e aspirante a mais uma reeleição fez uma paródia trocando os versos “Eu voltei/agora pra fica/ Porque aqui, aqui é meu lugar” para “Eu votei/De novo vou votar/Tiririca, Brasília é seu lugar” [1].
A paródia é definida da seguinte maneira pela Lei de Direitos Autorais (9.610/98), em seu artigo 47: “São livres as paráfrases e paródias que não forem verdadeiras reproduções da obra originária nem lhe implicarem descrédito“. A Constituição, ao passo que protege a livre manifestação de pensamento, também prevê proteção aos direitos de autores quanto a utilização de suas obras [2].
Os conceitos de “obra” e “utilização” possuem significados específicos quando o assunto é direito autoral, mais precisamente em relação à música. De forma breve e em termos familiares: “obra” é a letra e melodia da canção, que deve ser devidamente registrada para possibilitar a existência dos fonogramas que são, grosso modo, a materialização da música em suas diferentes versões. Como exemplo, a música que é tema deste artigo: há a obra original, O Portão, composição de Erasmo Carlos e Roberto Carlos. Existem diversos fonogramas dessa obra, de artistas que vão dos próprios compositores até Titãs, Kid Abelha, entre muitos outros.
Contudo, temos a obra, ideia originária, abstração gestada pelo poder de criação humana, de um lado. Do outro (utilização), as gravações e seus diversos fonogramas, que geram custos e lucros que devem ser devidamente manejados em seus mais diversos formatos, seja no mundo digital ou físico. Esse trabalho, usualmente, fica a cargo das gravadoras, seus selos e editoras. Para isso, tais empresas ficam com uma porcentagem do lucro e possuem certa ingerência no manejo dos fonogramas.
Feita essa distinção, há mais uma, para que possamos entender essa cisão entre abstrato e concreto. Ela envolve o que se entende por direito moral e direito patrimonial — frisando: “direito moral” no contexto do direito autoral.
Acreditamos que seja de certa forma intuitivo captar o que cada conceito significa. De forma sintética, o direito moral diz respeito à música como ideia, e o patrimonial, à música como produto. Mesmo que o autor ceda para terceiros o gerenciamento do fonograma como produto, ainda terá direito, em certos casos, de vetar sua utilização [3].
Aqui chegamos ao caso concreto Tiririca versus Roberto Carlos. Os representantes do autor alegam que o humorista estaria se aproveitando e colhendo frutos da utilização da música sem a devida autorização e, ainda por cima, vinculando a imagem do compositor a um político, quando Roberto Carlos alega sustentar uma política de neutralidade nesse campo.
No que diz respeito à proteção dos direitos do autor da canção original, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já se manifestou duas vezes. Na primeira delas, o STJ reiterou o caráter excepcional que esse tipo de criação derivada de uma obra possui, na ocasião do Recurso Especial (RESP) nº Nº 1.597.678/RJ [4]. No acórdão, de relatoria do ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, é frisado que, desde que respeite os atributos de comicidade, distintividade e ausência de cunho depreciativo, a paródia coaduna-se com a exceção do já mencionado artigo 47 da Lei de Direitos Autorais, não ensejando indenização.
Voltando ao primeiro caso de 2014, em segundo julgado o STJ se manifestou favoravelmente ao comediante no REsp 1.810.440, bem como corroborou com a decisão acima. Além disso, acrescente-se que o tom escrachado e de humor traz caráter discreto, o que gera uma autonomia na paródia, ou seja, obra nova. Inclusive, embora caso distinto, nos parece que a linha segue a liberdade de expressão e liberação de sátiras, consoante a ADIN 4.451/DF [5]
No caso atual, os representantes do músico já acionaram o Supremo Tribunal Federal através de Reclamação Constitucional, com pedido denegado pelo ministro Ricardo Lewandowski [6]. Essa decisão não obsta a análise do caso pelas instâncias inferiores, porém, na própria argumentação do ministro, já fica claro que o caso não é de simples resolução.
Por fim, cabem algumas questões: qual o peso dessa paródia para a reeleição do humorista? Vale dizer, aliás, que Tiririca também é cantor. Não será que o artigo 17 da Resolução 23.610/2019 não lhe dá respaldo para a paródia? [7] Há fim de crítica e comicidade nessa versão parodiada, ou apenas sua utilização pontual com o intuito de ganho financeiro, mesmo que indireto? Atualizar a paródia com referência a um recente caso de discussão do cantor com um fã contextualiza de forma diferente o conteúdo da criação humorística? É usual a paródia em época eleitoral, iremos restringir a liberdade de expressão? São questões a serem respondidas pelas diferentes instâncias judiciais.
Publicado no Conjur.
[1] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=T__c2QcSCVg&ab_channel=Poder360. Acesso em: 10/10/2022
[2] Constituição Federal, artigo 5º, inciso XXVII: “aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar“.
[3] COSTA NETTO, José Carlos. Direito autoral no Brasil. 3ª ed. São Paulo. Saraiva Educação, 2019.
[4] Disponível em https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1741125&num_registro=201403219351&data=20180824&formato=PDF. Acesso em: 11/10/2022
[5] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-jun-29/direitos-fundamentais-stf-liberdade-expressao-liberacao-satiras-eleicoes. Acesso em: 11.10.2022
[6] https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/RECLAMAaO55.800.pdf
[7] Art. 17. É proibida a realização de showmício e de evento assemelhado, presencial ou transmitido pela internet, para promoção de candidatas e candidatos e a apresentação, remunerada ou não, de artistas com a finalidade de animar comício e reunião eleitoral, respondendo a pessoa infratora pelo emprego de processo de propaganda vedada e, se for o caso, pelo abuso de poder (STF: ADI nº 5.970/DF, j. em 7.10.2021, e TSE: CTA nº 0601243-23/DF, DJe de 23.9.2020). (Redação dada pela Resolução nº 23.671/2021)
Parágrafo único. A proibição de que trata o caput deste artigo não se estende: (Redação dada pela Resolução nº 23.671/2021)
I – às candidatas e aos candidatos que sejam profissionais da classe artística, cantoras, cantores, atrizes, atores, apresentadoras e apresentadores, que poderão exercer as atividades normais de sua profissão durante o período eleitoral, exceto em programas de rádio e de televisão, na animação de comício ou para divulgação, ainda que de forma dissimulada de sua candidatura ou de campanha eleitoral; e (Incluído pela Resolução nº 23.671/2021)
II – às apresentações artísticas ou shows musicais em eventos de arrecadação de recursos para campanhas eleitorais previstos no art. 23, § 4º, V, da Lei nº 9.504/1997 (STF: ADI nº 5.970/DF, j. em 7.10.2021). (Incluído pela Resolução nº 23.671/2021)