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06/06/2022Por Joelson Dias e Ubiratan Menezes
A Lei nº 8.429/92, que institui o microssistema da improbidade administrativa, completará neste ano exatamente 30 anos de vigência. Sua criação e idealização foram o resultado de uma crescente pressão popular e institucional no sentido de punição a agentes públicos e políticos envolvidos em casos de corrupção, lesão aos cofres públicos e outros atos ofensivos aos princípios da Administração Pública, especialmente à moralidade administrativa.
Foram várias as consequências da edição e aplicação do referido diploma legal no cenário político brasileiro. Foi sob a égide da Lei de Improbidade Administrativa (LIA) que vários e proeminentes parlamentares, chefes de governo e outros agentes públicos foram julgados e condenados a penas que englobam a perda da função pública, o ressarcimento de valores, o pagamento de multa civil e a suspensão de direitos políticos.
Em muitos casos tais condenações afetaram profundamente o desfecho de processos eleitorais em âmbito municipal, estadual e federal. ale lembrar que a condenação por ato de improbidade pode gerar a inelegibilidade do candidato, nos termos do artigo 1º, alínea “I”, da Lei Complementar nº 64/1990 [1].
É justamente nesse contexto que, em 25 de outubro de 2021, foi editada a Lei nº 14.230/21, promovendo profundas mudanças na Lei de Improbidade Administrativa, ainda não sendo possível prever o alcance jurídico dessa alteração legislativa
A justificativa do projeto de Lei nº 10.887/2018 — que deu origem à referida reforma da Lei de Improbidade Administrativa — afirma que a Lei nº º 8.429/92 “carecia de revisão para sua adequação às mudanças ocorridas na sociedade e também para adaptar-se às construções hermenêuticas da própria jurisprudência, consolidadas em decisões dos Tribunais”.
Vários atores políticos lançaram duras críticas às condenações exaradas pelo Judiciário e à atuação do Ministério Público durante esses anos: desde o “desvirtuamento” do instituto da improbidade, que teria passado a ser utilizado pelo fiscal da lei como forma de pressionar e controlar a adoção de políticas públicas, até a utilização do instituto da improbidade com fins políticos e eleitorais
Na prática, o que se vê é que as alterações instituídas pela nova Lei são quase que totalmente destinadas a impor critérios mais rigorosos para o ajuizamento das ações de improbidade administrativa.
Dentre esses novos critérios, talvez os mais importantes sejam relativos à tipificação do ato ímprobo. Não só a nova redação legal afasta completamente a possibilidade de condenação a título culposo, como também estabelece em seu artigo 1º, §3º, que “considera-se dolo a vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito tipificado nos arts. 9º, 10 e 11 desta Lei, não bastando a voluntariedade do agente”.
A nova redação legal visa claramente afastar a construção jurisprudencial denominada “dolo genérico”, amplamente utilizada para balizar condenações. Segundo tal construção, a mera voluntariedade do agente público de praticar um determinado ato já bastaria para a caracterização do dolo, não sendo necessária a comprovação de um fim ilícito específico.
O novo texto legal também afasta a possibilidade de condenação por ação ou omissão decorrente de divergência interpretativa da Lei, baseada em jurisprudência (artigo 1º, §8º), extingue conceituações de atos ímprobos e altera profundamente algumas das tipificações mais importantes, como a de frustrar a licitude de procedimento licitatório (artigo 10, VIII), que passa a exigir a comprovação de perda patrimonial efetiva para a condenação, também aqui contrariando construção jurisprudencial dos Tribunais Superiores de que em tais casos o dano ao erário poderia ser meramente presumido.
Verifica-se também a vedação da utilização da ação de ato de improbidade para controle de legalidade de políticas públicas e para a defesa de interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos (artigo 17-D [2]), o que procura claramente afastar a possibilidade de imposição aos agentes públicos das pesadas sanções descritas na LIA em casos nos quais o pano de fundo da discussão seja a eficácia ou a pertinência de determinadas políticas públicas e decisões de agentes políticos.
Somente a partir de tais exemplos vê-se claramente que as novas disposições legais não só limitarão a propositura de ações de improbidade, como também poderão levar à imediata extinção de ações ora em curso cuja tipificação legal imputada aos réus esteja em descompasso com as novas determinações legais.
Para além disso, a nova Lei passou a determinar também seu artigo 1º, §4º, que “aplicam-se ao sistema da improbidade disciplinado nesta Lei os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador”. Tal dispositivo abre também a discussão para a retroatividade das novas disposições a processos ainda em curso e a condenações, transitadas em julgado ou não. Afinal de contas, ao direito administrativo sancionador são aplicadas garantias como a irretroatividade da Lei Penal, salvo em benefício do réu (artigo 5º, XL, Constituição da República Federativa do Brasil — CRFB).
Partindo desse princípio, várias das inovações instituídas pela Lei nº 14.230 — como é o caso do instituto da prescrição intercorrente, com prazo fixado em Lei de apenas quatro anos, bem como a extinção e a alterações de tipificações legais — têm o potencial de não só acarretar a imediata extinção de várias ações em curso, mas também alcançar condenações já proferidas pela Justiça, algumas até mesmo já transitadas em julgado.
Já se verifica um movimento normativo e político destinado a ganhar terreno nos entendimentos dos Tribunais e na comunidade jurídica a respeito da aplicação de tais dispositivos. Em 12 de novembro de 2021 a Câmara de Combate à Corrupção do Ministério Público Federal aprovou a Orientação 12/2021, destinada a orientar membros do MPF sobre a aplicação da nova Lei.
O texto da referida Orientação, ao tratar sobre a retroatividade da nova Lei, advoga que “O artigo 37 — §4º da CF, ao tutelar a probidade administrativa, impede a retroatividade automática de novas normas mais benéficas como vedação ao retrocesso no enfrentamento de condutas ímprobas ou práticas corruptivas”, ao passo que defende um correto juízo de modo a preservar o princípio constitucional da moralidade administrativa.
A respeito do Inquérito Civil Público, a orientação vai mais longe e já assinala até mesmo a futura propositura de ações diretas de inconstitucionalidade contra a nova Lei, pois defende que “A instituição de prazo máximo de conclusão de inquérito civil público para apuração de atos de improbidade administrativa (artigo 23 — §2º da LIA) afronta a autonomia institucional do Ministério Público (artigo 127 – §1° da CF)”.
Em outra esteira, Fábio Medina Osório, em recente artigo publicado em 5 de novembro de 2021, defende que “Tratando-se a prescrição da pretensão sancionatória matéria de direito material e de ordem pública, como, aliás, a própria norma prevê ao dizer em seu §8º do artigo 23 que deve ser conhecida e decretada até mesmo de ofício, impõe-se reconhecer tratar-se de norma posterior mais benigna, que deve retroagir” [3].
Por sua vez, o STF já reconheceu a repercussão geral da matéria, especificamente para definir a “eventual (IR) RETROATIVIDADE das disposições da Lei 14.230/2021, em especial, em relação: (I) A necessidade da presença do elemento subjetivo — dolo — para a configuração do ato de improbidade administrativa, inclusive no artigo 10 da LIA; e (II) A aplicação dos novos prazos de prescrição geral e intercorrente”. O leading case a ser ainda julgado em seu mérito é o Agravo em Recurso Especial nº 843989/PR.
Como se vê, os interesses envolvidos são muitos e os embates são inevitáveis. Já se assinalam discussões judiciais futuras sobre a constitucionalidade da nova Lei e um grande debate jurisprudencial sobre o alcance de seus novos dispositivos, com atenção especial para os institutos do chamado “dolo genérico”, da retroatividade das novas disposições legais e da prescrição, tudo isso às vésperas do período eleitoral em âmbitos federal e estadual.
Nesse cenário, não é demais se esperar por reviravoltas no cenário das eleições de 2022 que se aproximam, advindas não só de condenações de agentes políticos, mas também da eventual revisão de decisões condenatórias.
[1] l) os que forem condenados à suspensão dos direitos políticos, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, por ato doloso de improbidade administrativa que importe lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito, desde a condenação ou o trânsito em julgado até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena; (acrescida pelo artigo 2º da LC nº 135/2010).
[2] A ação por improbidade administrativa é repressiva, de caráter sancionatório, destinada à aplicação de sanções de caráter pessoal previstas nesta Lei, e não constitui ação civil, vedado seu ajuizamento para o controle de legalidade de políticas públicas e para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos.
[3] Disponível aqui.