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04/08/2022Por Ezikelly Barros
O novel instituto da Federação de Partidos Políticos (ou Federação Partidária), estabelecido pela Lei nº 14.208/2021, faculta aos partidos políticos a reunião em federação — que é uma união partidária provisória — para atuar como se fosse única agremiação, pelo período mínimo de quatro anos e com base em um programa e estatuto comuns. A homologação (ou registro) da federação, nos termos da referida lei e da Resolução TSE nº 23.670/2021, será realizada perante o Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
O prazo final para o registro de federação para participar do processo eleitoral — disposto no artigo 11-A, §3º, inciso III, da Lei nº 9.096/1995 (incluído pela Lei nº 14.208/2021) — seria até a data final do período de realização das convenções partidárias, ou seja, até 5 de agosto do ano eleitoral. Esse prazo legal, todavia, fora suspenso pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), quando da apreciação do referendo da Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 7.021, proposta pelo PTB Nacional.
Naquele julgamento, por 10 a 1, nos termos do voto proferido pelo ministro Roberto Barroso, o STF identificou uma verdadeira “quebra de isonomia” entre o prazo legal para formação de federação e aquele exigido para a criação de partidos políticos:
“[…] Existe, porém, um problema de quebra de isonomia no tratamento diferenciado dado à federação partidária, no que diz respeito ao seu registro perante o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Partidos políticos têm de fazê-lo até 6 (seis) meses antes das eleições (Lei nº 9.504/1997, art. 4º), sendo que, em relação à federação, a lei ora impugnada estende esse prazo até a data final do período de realização das convenções partidárias. Trata-se de uma desequiparação que não se justifica e que pode dar à federação indevida vantagem competitiva. […]” [1]. (grifo nosso)
Assim sendo, com fundamento no postulado da isonomia, a Suprema Corte equiparou a federação a um partido político também com relação ao prazo de registro perante a Justiça Eleitoral. Contudo, para as eleições vindouras, o STF modulou esse prazo para até o dia 31 de maio de 2022. Com base nessas premissas, fica evidenciado que — tal qual ocorre no caso de criação, fusão e incorporação de partidos — a Federação Partidária tem validade e produz todos os efeitos desde o deferimento do seu registro pelo TSE.
No TSE, desde 26 de maio de 2022, foram registradas três federações partidárias, quais sejam, a Federação Brasil da Esperança – FE Brasil (PT, PCdoB e PV), a Federação PSDB-Cidadania (PSDB e Cidadania) e a Federação Psol-Rede (PSOL e REDE Sustentabilidade) [2], que já deveriam estar em pleno funcionamento. Na prática, porém, são inúmeros os relatos de atuações isoladas dos partidos integrantes dessas federações (os partidos federados), tanto nas Casas Legislativas quanto no processo eleitoral, no que concerne ao período de pré-campanha.
O artigo 11-A da LPP (incluído pela Lei nº 14.208/2021) assegura aos partidos reunidos em federação a preservação da identidade e autonomia partidárias — que é o grande atrativo desta modalidade de união partidária em relação à fusão ou incorporação de partido. Entretanto deverá a federação atuar como se fosse uma única agremiação partidária, com abrangência nacional, sobretudo nas Casas Legislativas (funcionamento parlamentar e fidelidade partidária) e nas eleições.
Com relação ao princípio da autonomia partidária, assegurado aos partidos federados pela Lei nº 14.208/2021, é importante lembrar que há mitigação de parcela dessa autonomia quando uma agremiação opta por ingressar em uma federação. A fim de identificar como se dá tal redução, é necessário rememorar que, segundo o §1º do artigo 17 da Constituição, há quatro espécies do gênero autonomia partidária:
“[…] 1- autonomia partidária ideológica (no que concerne às linhas ideológicas e programáticas adotadas); 2- autonomia partidária organizacional (a sua organização propriamente dita e funcionamento); 3- autonomia partidária financeira (relativa aos gastos dos recursos do Fundo Partidário); e 4- autonomia partidária eleitoral (relacionada à sua participação no processo eleitoral: a escolha de candidatos, a celebração de coligações, a distribuição do Fundo Especial de Financiamento de Campanha e do direito de antena. […]” [3]. (grifo nosso)
Desse modo, no modelo concebido pela Lei nº 14.208/2021, a federação mitiga a autonomia ideológica — uma vez que seus integrantes deverão submeter-se, primeiramente, ao programa e ao estatuto da federação — e a autonomia eleitoral dos partidos federados, mantendo íntegra apenas a autonomia organizacional (ou administrativa) e a autonomia financeira. Em outras palavras, a administração e o controle dos gastos dos seus respectivos diretórios nacional, estadual e municipal.
Logo, ante essa compulsória mitigação da autonomia ideológica e eleitoral dos partidos que optarem por esse modelo de união partidária, a atuação conjunta e verticalizada [4] — ou, mais precisamente, a “atuação unificada” [5] da federação — é o pressuposto legal para a validade dos atos praticados pelos partidos federados nas Casas Legislativas (em níveis federal, estadual ou distrital e municipal) e no processo eleitoral.
Como dito alhures, porém, há relatos da atuação isolada desses partidos federados no Congresso Nacional [6], inclusive com recente “questão de ordem” formulada por Parlamentares [7] para que a Presidência da Câmara dos Deputados adotasse as providências devidas para readequação dessas federações ao regimento interno da casa e ao texto constitucional, mormente quanto à participação proporcional dos partidos exigida pelo artigo 58, §1º, da Constituição.
O funcionamento parlamentar irregular das federações nas Casas Legislativas provoca um verdadeiro desequilíbrio de forças no Parlamento, na medida em que os partidos federados que atuam isoladamente possuem uma vantagem regimental indevida em relação aos demais partidos quanto às prerrogativas regimentais, tais como a manutenção da sede própria (com os respectivos cargos comissionados) e líder partidário (com direito à apresentação de requerimentos procedimentais; destaques de bancada; orientações de bancada; tempo de comunicação de liderança e participação na reunião do colégio de líderes) etc.
Com efeito, além de infringir frontalmente o disposto na Lei nº 14.208/2021, o funcionamento parlamentar irregular das Federações de Partidos nas Casas Legislativas — nos âmbitos nacional, estadual e municipal — viola os próprios regimentos internos das respectivas Casas e os preceitos constitucionais que versam sobre a matéria, especialmente por desequilibrar a atuação parlamentar entre partidos federados e os não federados.
No processo eleitoral, igualmente, partidos federados insistem em atuar isoladamente, isto é, em ajuizar ações eleitorais de maneira autônoma em relação à federação da qual são integrantes. No TSE, por exemplo, o Partido Rede Sustentabilidade (integrante da Federação PSOL-Rede) [8] e o Partido dos Trabalhadores — PT (integrante da FE Brasil) [9] ajuizaram ações eleitorais por suposta propaganda irregular, em face de pré-candidato à Presidência da República, de forma autônoma, ou seja, sem o intermédio das respectivas federações partidárias.
O ministro presidente Edson Fachin, do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ao apreciar essas ações durante o recesso forense, proferiu despacho no qual adverte sobre a eventual ilegitimidade ativa do partido federado que propõe ação isoladamente, in verbis:
“[…] Observa-se, inicialmente, que o partido político representante integra a Federação Partidária […]. Em razão dessa peculiar condição, e do contido no art. 12 da Res.-TSE nº 23.670/2021, cumpre aferir se há legitimidade ativa para que partidos políticos federados atuem isoladamente na Justiça Eleitoral em matéria de propaganda eleitoral, antecipada ou não” [10].
A observação de Sua Excelência é absolutamente pertinente e visa a dar efetividade à decisão proferida pelo STF [11] que considerou constitucional essa federação — criada por lei ordinária — apenas por equipará-la a um partido político com atuação conjunta ou unificada em todo o território nacional, tanto no funcionamento parlamentar quanto no processo eleitoral. Tanto é verdade que advertiu Sua Excelência o ministro Roberto Barroso:
“[…] Qualquer modificação no regime jurídico das federações que impacte o que aqui está sendo validado já nasce sob forte suspeição de inconstitucionalidade, porque são essas exigências que distinguem as federações das coligações, que não são permitidas pela Constituição” [12]. (grifo nosso)
Com efeito, a Resolução TSE nº 23.670/2021 — que é a instrução normativa que regulamenta o instituto da federação de partidos — estabeleceu em seu artigo 4º, §1º, que “feitas as anotações a que se referem os incisos do caput deste artigo, os partidos que compõem a federação passarão a atuar, em todos os níveis, de forma unificada”.
Ademais, mesmo que a federação não tivesse sido equipada a um partido pelo STF, ou seja, ainda que fosse considerada uma espécie do gênero coligação, não seria possível admitir a atuação de partidos federados, isoladamente, no processo eleitoral. Afinal, é pacífica a jurisprudência do TSE, segundo a qual o partido coligado não possui legitimidade ativa para atuar isoladamente no processo eleitoral [13], salvo quando questionar a validade da própria coligação [14] ou versar sobre direito de resposta [15].
Desse modo, à luz da jurisprudência supracitada, afigura-se possível o reconhecimento da legitimidade ativa do partido federado para atuar isoladamente, no processo eleitoral, apenas em duas situações: (1) na ação que tenha por objeto a validade dos atos praticados pela federação a qual pertença; (2) na ação que versar sobre direito de resposta, quando a honra ou imagem do partido federado for individualmente atingida.
A questão da ilegitimidade ativa de partido federado foi, recentemente, enfrentada pelo Tribunal Regional Eleitoral do Amazonas (TRE-AM), que decidiu, por unanimidade, que o Cidadania — partido federado com o PSDB — carece de legitimidade para, isoladamente, impetrar mandado de segurança [16]. Ademais, mantém-se esse entendimento com relação às representações por propaganda irregular [17].
A decisão de vanguarda proferida pela Corte Eleitoral amazonense é, certamente, a que melhor se amolda ao instituto da federação de partidos políticos, tal como concebido pela Lei nº 14.208/2021, regulamentada pela Resolução TSE nº 23.670/2021, e perfectibilizado pela decisão liminar da Suprema Corte [18].
A atuação isolada de partido federado, nas Casas Legislativas e no processo eleitoral, contraria frontalmente a Lei nº 14.208/2021 e a decisão do STF. O futuro desse relevante instituto partidário, no Brasil, demanda o comprometimento das federações e das siglas federadas com a legislação vigente. Caso contrário, na prática, teremos apenas o retorno velado das coligações proporcionais com a roupagem de uma federação.
[1] STF. Tribunal Pleno. ADI n. 7021. Rel. Min. ROBERTO BARROSO. Julgada em: 09/02/2022. DJE em: 15/02/2022.
[2] Disponível em: https://www.tse.jus.br/partidos/federacoes-registradas-no-tse/federacoes-partidarias-registradas-no-tse. Acesso em: 29. Jul. 2022.
[3] BARROS, Ezikelly. Autonomia Partidária: Uma Teoria Geral. 1ª ed. São Paulo: Almedina, 2021. p. 107.
[4] GOMES, José Jairo. Direito Eleitoral. 18ª ed. Barueri [SP]: Atlas, 2022. p. 136.
[5] “A atuação unificada corresponde ao desempenho conjunto, pelos partidos federados, de parte das prerrogativas e dos deveres que assistem aos partidos políticos, o que ocorrerá a partir do deferimento do registro da federação no TSE (Res.-TSE nº 23.670/2021, art. 4º, §1º)”. MAIA GRESTA, R.; OLIVEIRA CARVALHO, V. Federação de partidos políticos no Brasil: Impactos sobre o sistema partidário, contexto latinoamericano e desafios para as eleições 2022. Revista Debates, [S. l.], v. 16, n. 1, p. 143–167, 2022.
[6] Disponível em: https://oantagonista.uol.com.br/brasil/partidos-driblam-tse-e-mantem-estruturas-independentes-no-congresso/. Acesso em: 29. Jul. 2022.
[7] Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/897524-deputados-questionam-funcionamento-de-partidos-que-formaram-federacoes/. Acesso em: 29. Jul. 2022.
[8] TSE, RP nº 0600556-75.2022.6.00.0000. Autor: REDE Sustentabilidade.
[9] TSE, RP nº 0600550-68.2022.6.00.0000. Autor: Partido dos Trabalhadores (PT).
[10] TSE, RP n. 0600544-61.2022.6.00.0000. Min. presidente EDSON FACHIN. Despacho de 21/7/2022.
[11] STF. Tribunal Pleno. ADI nº 7021. Rel. min. ROBERTO BARROSO. Julgada em: 9/2/2022. DJE em: 15/2/2022.
[12] Idem.
[13] “ELEIÇÕES 2020. […] 2. O partido coligado não possui legitimidade para, isoladamente, atuar em sede de ação de impugnação de registro de candidatura, bem como para interpor recurso, nos termos da jurisprudência iterativa deste TSE. […]” (TSE. RESPE nº 060026170, rel. min. Alexandre de Moraes, DJE em 20/10/2021). Nesse mesmo sentido: “ELEIÇÕES 2020. […] 2. A vedação às coligações proporcionais não teve o condão de restringir a legitimidade fixada nos arts. 3º, da LC 64/1990; 96, da Lei 9.504/1997; 3º, da Res.–TSE 23.608/2019; e 40, da Res.–TSE 23.609/2019. O ajuizamento de representação, isoladamente, por partido coligado é a única limitação possível, mas aí por expressa disposição legal contida no art. 6º, § 4º, da Lei 9.504/1997. […]” (TSE. RESPE nº 060063674, rel. min. Alexandre de Moraes, DJE em 13/9/2021).
[14] “ELEIÇÕES 2020.. […] 3. O art. 6º, § 4º, da Lei nº 9.504/1997 dispõe que o partido político coligado somente possui legitimidade para atuar de forma isolada no processo eleitoral quando questionar a validade da própria coligação, durante o período compreendido entre a data da convenção e o termo final do prazo para a impugnação do registro de candidatos. […]”.(TSE. RESPE nº 060016566, rel. min. Mauro Campbell Marques, PSESS em 18/12/2020. Nesse mesmo sentido: TSE. RESPE nº 060037010, rel. min. Luis Felipe Salomão. Julgado em: 7/12/2020); TSE. RESPE nº 3059, rel. min. Rosa Weber, PSESS 23/11/2016.
[15] “ELEIÇÕES 2018. AGRAVO REGIMENTAL. REPRESENTAÇÃO. DIREITO DE RESPOSTA. PARTIDO COLIGADO. LEGITIMIDADE ATIVA PARA ATUAR ISOLADAMENTE EM SEDE DE PEDIDO DE DIREITO DE RESPOSTA […] 2. Entendimento assentado pela ilustrada maioria, vencidos os Ministros Edson Fachin, Napoleão Nunes Maia Filho e Relator, no sentido de que, nas representações sobre direito de resposta, não se aplica o disposto no art. 6º, § 4º, da Lei nº 9.504/1997, sendo possível às agremiações coligadas atuação isolada perante a Justiça Eleitoral. […]” TSE. RP n. 0600923-41.2018.6.00.0000. rel. min. Carlos Horbach, PSESS em 28/8/2018.
[16] TRE-AM. MS nº 0600194-62.2022.6.04.0000. Rel. des. Marcelo Manuel da Costa Vieira. Decisão de 25/7/2022.
[17] TRE-AM. RP nº 0600171-19.2022.6.04.0000. Rel. juiz Luis Felipe Avelino Medina. Decisão de 1/8/2022.
[18] STF. Tribunal Pleno. ADI nº 7021. Rel. min. ROBERTO BARROSO. Julgada em: 09/2/2022. DJE em: 15/2/2022.