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20/06/2022Por Ana Claudia Santano e João Vitor Borges Paulino
As eleições são sirenes da democracia: constituem um passo extremamente importante nos processos de democratização e constante afirmação do regime político adotado. Para ilustrar a importância da observação eleitoral no contexto do fortalecimento da democracia e a sua contribuição com os pleitos eleitorais, Susan D. Hyde cita o caso de Fulgêncio Batista, que em outubro de 1958 foi um dos primeiros a buscar a observação internacional para as eleições de seu país (Cuba). [1]
Com o declínio do apoio dos Estados Unidos ao seu governo, além da pressão para a realização de eleições, Batista convocou a população às urnas, anunciando que não mais concorreria. Ao mesmo tempo, convidou observadores internacionais da Organização dos Estados Americanos e das Nações Unidas. Ambas se recusaram a enviá-los, afirmando que não possuíam instalações aptas a acompanhar o processo eleitoral. A eleição de novembro de 1958 foi mundialmente vista como uma farsa. Pouco depois, Fulgêncio Batista renunciou e fugiu para o exílio, abrindo caminho para a ascensão de Fidel Castro.
Cinquenta anos mais tarde, a ideia de que os países deveriam convidar observadores eleitorais se tornou tão aceita que a recusa do governo iraniano em receber Missões de Observação Eleitoral (MOEs) em 2009 foi interpretada como prova de que as eleições à época foram roubadas [2].
Embora esteja inserido no continente americano, que desenvolveu largamente o mecanismo nas últimas décadas, nosso país somente agora começou a acompanhar o ritmo. Foram apenas 2 Missões da OEA: 2018 e 2020. Até o momento, nenhuma das Nações Unidas.
Em decorrência dessa tendência recente, o TSE aprovou a Resolução nº 23.678/2021, que dispõe sobre diretrizes e procedimentos para a realização de MOEs Nacionais e Internacionais, além de abrir inscrições para o credenciamento nacional de entidades para observar as eleições de 2022 (edital nº 01/2022). Ademais, o Projeto de Lei Complementar nº 112/2021, que busca estabelecer o novo Código Eleitoral, contém disposições referentes ao assunto.
Apesar de já consolidada na doutrina internacional sobre a superação da ideia de que o monitoramento eleitoral não visa fiscalizar os pleitos observados e tampouco conferir legitimidade aos resultados, verifica-se que há confusão no Brasil sobre a prática, seu funcionamento e seu verdadeiro papel.
Existem documentos internacionais que socorrem estas dúvidas, o que pode ser de grande valia serem aqui citados.
De um lado, a Declaração dos Princípios de Observação Eleitoral Internacional [3], de outro, a Declaração de Princípios Globais de Observação e Monitoramento não Partidário Realizado por Organizações Cidadãs [4], ambas celebradas na sede das Nações Unidas, Nova York, EUA, respectivamente em 27.10.2005 e 03.04.2012.
Segundo as declarações precitadas, a observação eleitoral é uma recolha sistemática, abrangente e precisa de informações sobre as leis, processos e instituições relativos a realizações de eleições e fatores relacionados com o ambiente eleitoral, realizada por um grupo técnico e que tem como objetivo fornecer análises imparciais, objetivas e profissionais, formulando conclusões sobre o caráter das eleições com base nos mais elevados padrões de exatidão de informação e imparcialidade de análise, visando melhorar a integridade e eficácia do processo eleitoral, sem interferir ou criar obstáculos.
É nessa perspectiva que as MOEs se inserem no quadro das medidas destinadas a materializar os Direitos Humanos, firme nos valores da democracia e da boa governança democrática, sendo uma expressão palpável do compromisso da comunidade com a promoção e garantia de tais preceitos.
Não faltam exemplos de como o monitoramento eleitoral pode contribuir com os pleitos e com as autoridades eleitorais de cada país.
Em 1998, a Guiana estabeleceu uma comissão eleitoral permanente, recomendação realizada pela primeira MOE/OEA após a eleição falha do país em 1997 [5]. Em 2015, a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa auxiliou o Quirguistão com relação às tecnologias de votação, quando apontou lacunas na implementação do recenseamento e identificação biométrica dos eleitores, orientando melhorias relativas à proteção de dados [6]. Em 2012, a União Europeia observou eleições em Senegal, ajudando com a nova lei eleitoral que simplificava o processo de nomeação e registro dos candidatos, estabelecia o direito de voto no exterior e criava de comitês eleitorais locais [7]. Para a América do Sul, a União Europeia contribuiu com o Paraguai e com sua autoridade eleitoral mediante a limpeza e melhoria do cadastro eleitoral, maiores oportunidades de voto no exterior, voto assistido, regulamentando a participação de candidatos independentes, aumentando a segurança nas seções eleitorais e racionalizando suas localizações, melhorando o treinamento dos jurados e melhorando a resolução das disputas eleitorais [8].
Mesmo se pontuais, essas mudanças ajudam a construir instituições e processos eleitorais mais confiáveis. E, neste sentido, até mesmo o Brasil já experimentou algumas das contribuições da observação eleitoral.
O TSE habilitou, em 2019, o Programa de Enfrentamento à Desinformação, alinhado às recomendações emitidas pela MOE/OEA de 2018 e ao Guia para Garantir a Liberdade de Expressão frente à Desinformação em Contextos Eleitorais (produzido pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos em colaboração com o Departamento de Cooperação e Observação Eleitoral da OEA).
Ainda na linha da MOE/OEA 2018, houve a instituição da Comissão de Gestão de Políticas de Gênero por parte do TSE e a incorporação da observação eleitoral nacional, com o credenciamento da Transparência Eleitoral Brasil, que foi precursora no Brasil da primeira MOE Nacional, em 2020, e é idealizadora do “Manual de princípios e Código de Conduta na Observação Eleitoral”, única obra da natureza no país e que respalda as missões realizadas pela organização dentro dos padrões internacionais para a prática.
Contudo, em que pese as experiências bem-sucedidas das MOEs, ainda há governos que resistem a elas, seja por temerem interferência em assuntos internos ou em sua soberania, seja por acharem que, de fato, a sua presença não é conveniente. E isso se dá, predominantemente, pelo desconhecimento da prática.
O objeto da observação é o processo. Não há interesse em um determinado resultado eleitoral, a não ser em sua legitimidade e legalidade. Portanto, inexiste interferência em matéria interna. Por essa razão, a observação eleitoral, imparcial e apartidária, nunca deve ultrapassar a fronteira que a separa da fiscalização das eleições, função interna do Estado observado e de suas instituições.
Os desafios enfrentados pelas autoridades eleitorais no Brasil já não mais são inerentes apenas à eleição, mas, antes, aos problemas que decorrem da construção fundacional democrática dos países, espelhados e potencializados durante um processo eleitoral. Corrupção, efetiva separação dos poderes, respeito à liberdade de imprensa, aos direitos políticos, uso e abuso do poder econômico, frágil cultura da participação e interesse popular, entre outros, são as dificuldades transferidas à seara eleitoral.
Os resultados apresentados pela observação eleitoral não devem ser enfrentados como uma afronta ao Estado observado ou às instituições, ou como uma crítica às eleições, mas sim como um método perene de assessoria/assistência para o fortalecimento do desenvolvimento de seus pleitos eleitorais.
O processo eleitoral brasileiro não é isento de falhas, como nenhum é. Admitir premissa contrária e se manter hígido na ideia de que assuntos concernentes às eleições são matérias exclusivamente de Estado e é, ao fim e ao cabo, negar a existência do complexo mecanismo de monitoramento eleitoral e sua vasta história de contribuição ao mundo.
Esperamos que as MOEs Internacionais e Nacionais a serem credenciadas neste ano continuem a consolidar a jovem tradição brasileira de receber observadoras e observadores eleitorais, de modo a ampliar a cooperação em torno do aperfeiçoamento do processo eleitoral, do ampliamento da transparência e da integridade, bem como da confiança pública nas eleições.
2022 merece e deve ser observado.
1 Hyde, Susan D. The pseudo-democrat’s dilemma: why election observation became an international norm. ISBN 978-0-8014-4966-6. Doubtful Future Confronts Cuba: Tomorrow’s Elections May Begin Uncertain Era—Rebels Ask Boycott. “O futuro duvidoso confronta Cuba: as eleições de amanhã podem começar uma era incerta – os rebeldes perguntam ao boicote”, New York Times, 31 de outubro de 1958. Tradução livre.
2 Disponível em <https://foreignpolicy.com/2009/08/20/how-ahmadinejad-stole-an-election-and-how-he-can-fix-it/> e <https://veja.abril.com.br/coluna/reinaldo/ira-8211-resultado-das-urnas-surpreende-analistas/>.
3 Disponível em < http://scm.oas.org/pdfs/2008/CP20254-Anexo%20IV%20P.pdf>
4 Disponível em <https://gndem.org/declaration-of-global-principles/>.
5 HYDE, S. D.; KELLEY, J. G. The limits of election monitoring. What independet Observation can (and can’t) do. In: Foreign Affairs [online], Jun/2011. Disponível em: https://www.foreignaffairs.com/articles/middle-east/2011-06-28/limits-election-monitoring?page=show. Acesso em: 21 dez. 2020. Tradução livre.
6 EUROPEAN UNION. Beyond Election Day. Best practice for follow-up to EU election observation missions. European External Action, European Commission. Mai/2017. Pg. 60. ISBN: 978-92-79-67990-2. Tradução livre.
7 Ibid, pg. 56.
8 Ibid, pg. 37.