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29/06/2022Por Guilherme Barcelos
Apresentamos aqui na ConJur texto abordando a questão do interrogatório a partir da Nova Lei de Improbidade (ver a íntegra do texto aqui), ocasião na qual sustentamos que o interrogatório deverá, necessariamente, ser o ato derradeiro da instrução processual.
Perguntou-se, pois: considerado o caráter acusatório da ação de improbidade, a absorção taxativa pelo texto da lei de princípios caros de direito sancionador e a própria nomenclatura dada pela regra à defesa pessoal do acusado, em que momento da marcha processual deverá se dar o interrogatório nestes feitos, no início da instrução, tal como o depoimento pessoal nas ações civis comuns, ou ao término da instrução, como ato último dela?
E a resposta foi: embora o caput do artigo 17 remeta ao rito processual comum do CPC, e que o §19 do artigo 17 não ressalve expressamente a aplicação do rito ao interrogatório, parece-nos existir um rol de fundamentos a respaldar a realização do ato ao final da instrução, a começar pela própria nomenclatura atribuída pela lei (interrogatório do réu). Além disso, há, por oportuno, a principiologia de direito sancionador a nortear a interpretação-aplicação da LIA.
A realização do interrogatório como ato último da instrução nada mais representa do que a acertada promoção da adequação da LIA ao sistema acusatório, de feição democrática, proveniente da nossa Constituição, dando-se, na interpretação das regras aparentemente antinômicas, a máxima efetividade aos direitos fundamentais do contraditório e da ampla defesa (artigo 5º, inciso LV, da CF), congregando, então, a interpretação-aplicação do texto, aos princípios de direito sancionador em geral e, por via de consequência, ao sistema acusatório constitucionalmente assegurado.
A própria Lei de Improbidade condensa hoje robusto arcabouço principiológico a dar-lhe sustentáculo, que se resume à adoção de princípios de direito sancionador, os quais, evidentemente, deverão nortear a aplicação das regras correspondentes, tudo a partir daquilo que Lenio Streck chama de “condicionamento recíproco existente entre regras e princípios” [1]. Assim o é com o artigo 1º, §4º, da LIA, segundo o qual “Aplicam-se ao sistema da improbidade disciplinado nesta Lei os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador”. E com o artigo 17-D da mesma LIA, através do qual “A ação por improbidade administrativa é repressiva, de caráter sancionatório, destinada à aplicação de sanções de caráter pessoal […]”.
Já o interrogatório do acusado é instrumento de defesa pessoal do acusado, sendo que “[…] a realização do interrogatório do acusado como ato final da fase instrutória permitirá a ele ter, digamos, um panorama geral, uma visão global de todas as provas até então produzidas nos autos, quer aquelas que o favoreçam, quer aquelas que o incriminem”. Um interrogatório que precede a própria instrução “[…] não permite ao réu que apresente elementos de defesa que possam suportar aquela versão que ele pretende transmitir ao juízo processante” (STF, AP nº 528, voto ministro Ricardo Lewandowski).
Logo, se a LIA de hoje consagra, a mais não poder, a sua própria regência à luz dos princípios de direito sancionador, é indispensável que se congregue as respectivas regras ao parâmetro acusatório-sancionatório principiologicamente consagrado. E o interrogatório, que não é depoimento pessoal, mas instrumento de defesa pessoal do acusado, deverá ser realizado ao término da instrução, como ato último dela, tutelando-se, dessa forma, o contraditório e a ampla defesa, de acordo com o sistema acusatório previsto a partir da Constituição e com as diretrizes inerentes ao conteúdo sancionatório da demanda.
Pois bem.
É relevante anotar, de mais a mais, que a perspectiva por nós aqui defendida irradiará outros efeitos ou consequências naquilo que se refere ao interrogatório do réu. A primeira delas, evidentemente, é o fato de o réu poder silenciar, sem que o silêncio possa ser utilizado contra ele. Trata-se, na espécie, de um lado, da tutela da presunção de inocência e, de outro, do resguardo do direito que o réu possui no sentido de não produzir provas contra si (nemo tenetur se detegere). O silêncio do réu, portanto, não importará em confissão, tampouco revelia. Por detrás dessa dobra de prerrogativas, está justamente o fato de o interrogatório ser ato do réu, de defesa pessoal dele, não algo previsto contra ele.
Mas ainda há mais.
Seguindo a mesma lógica, é indispensável reconhecer que o réu poderá exercer a sua autodefesa de maneira livre, desimpedida, silenciando, respondendo todas as perguntas que lhes forem dirigidas ou, ainda, apenas algumas delas. Dito de outro modo, o réu poderá, seguramente, deixar de responder perguntas formuladas pela acusação, ou mesmo pelo juiz, limitando-se a responder apenas ao seu advogado, se assim lhe aprouver.
O interrogatório é, em verdade, “o momento do acusado, o seu ‘dia na Corte’ (day in Court), a única oportunidade, ao longo de todo o processo, em que ele tem voz ativa e livre para, se assim o desejar, dar sua versão dos fatos, rebater os argumentos, as narrativas e as provas do órgão acusador, apresentar álibis, indicar provas, justificar atitudes, dizer, enfim, tudo o que lhe pareça importante para a sua defesa, além, é claro, de responder às perguntas que quiser responder, de modo livre, desimpedido e voluntário”. (REsp 1825622/SP, Sexta Turma, relatora ministra Rogerio Schietti Cruz, DJe 28/10/2020).
Desse modo, é que, a partir da absorção, à ação de improbidade, dos princípios de direito sancionador, o réu poderá exercer livremente a sua defesa pessoal através do interrogatório. O interrogatório deverá ser o ato final da instrução processual. E o acusado poderá silenciar, responder a tudo e a todos ou, se assim desejar, apenas àquilo que desejar.
Post-scriptum
Registre-se, vez mais: é hora de começarmos a discutir a juntada aos autos de uma ação de improbidade da íntegra de Inquéritos Civis instaurados previamente para subsidiar a sua futura propositura. A questão é de preservação do contraditório no âmbito judicial. Os procedimentos de investigação assim são instaurados para investigar determinados fatos e, a depender do conteúdo obtido, propor demandas contra possíveis dilapidadores da coisa pública. Assim o é na esfera penal. E assim o é na esfera da improbidade administrativa. Ressalvadas, então, as provas não repetíveis, assim como as provas técnicas, não há sustentação para que provas repetíveis em juízo, como testemunhos, colhidas na fase de investigação sem qualquer contraditório, sejam aportadas aos autos do processo judicial como “prova documental”. Elas serão usadas, direta ou indiretamente, até mesmo para “cotejar” o que foi dito na seara extrajudicial com o testemunho judicial, como se este se devesse à simples ratificação. E isso fere o contraditório. Cumprida a função do inquérito, qual seja a propositura de ação ou arquivamento, descartem-se as provas repetíveis. Na esfera do processo penal, Aury Lopes Jr. é o precursor da crítica, ocasião na qual sustenta a exclusão física das peças do inquérito do bojo das ações penais, justamente para resguardar a garantia da jurisdição e o contraditório, evitando-se a contaminação consciente ou inconsciente do destinatário (LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 16 ed. São Paulo: Saraiva. 2019, p. 167 ss.). Devemos, necessariamente, aproximar o raciocínio da esfera da improbidade administrativa, como uma questão de preservação do contraditório ou, noutras palavras, da produção da prova em contraditório, garantindo-se, com isso, a paridade de armas.
[1] Para Lenio a diferença entre regra é princípio é de caráter ontológico, representando o resgate do mundo prático no Direito. Normas serão, assim, “o produto de uma distinção deontológica própria do direito, já que ele se articula a partir de regras e princípios. Princípios, nesse sentido, são o modo pelo qual toda essa normatividade adquire força normativa para além da suficiência das regras. Os princípios são o marco de institucionalização da autonomia do direito. As regras não acontecem sem os princípios. Os princípios sempre atuam como determinantes para concretização do direito e, em todo caso concreto, eles devem conduzir para determinação da resposta adequada. Nas regras, não existe uma força de capilarização. As regras constituem modalidades objetivas de solução de conflitos. Elas ‘regram’ o caso, determinando o que deve ou não ser feito. Os princípios autorizam esta determinação; eles fazem com que o caso decidido seja dotado de autoridade que — hermeneuticamente — vem do reconhecimento da legitimidade. O problema da resposta adequada/correta, neste caso, só é resolvido na medida em que seja descoberto o princípio que institui (legitimamente) a regra do caso. De todo modo, os princípios não resolvem — em termos lógico-objetivos — o caso, mas constituem a legitimidade da solução, fazendo com que a decisão seja incorporada ao todo da história institucional do direito”. (STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 560).