Marco Regulatório da Inteligência Artificial no Brasil
24/04/2023Em defesa das políticas públicas e contra a desinformação
26/04/2023Por Juliana Rodrigues Freitas
O ano é de 2023 e, no Brasil, assim como em outros vários lugares do mundo, a luta pela inserção e pela participação da mulher e de pessoas negras na política pode ser representada pela cíclica relação de avanços mínimos e graves retrocessos, demonstrando toda a dificuldade e a resistência de uma sociedade se desconstruir do patriarcado e do racismo que a estruturam para, em um processo de reconstrução, e não exclusão, organizar-se de modo a garantir que a tríade das liberdades políticas — marcada pela representatividade, igualdade e diversidade — assegure a efetivação do nosso Estado Democrático de Direito.
Uma sociedade comprometida com essa base política clama pelo respeito à democracia e pela garantia dos direitos humanos e daqueles reconhecidamente fundamentais em nosso Estado brasileiro, para assim, responsabilizar-se pelo seu desenvolvimento nacional, que tem como um dos seus pilares a garantia do exercício de tais direitos, dos quais somos indistintamente titulares mesmo que, para exercê-los, sejam-nos sejam impostos obstáculos variados em quantidade e densidade, a depender do grupo no qual estamos inseridos nesta organização social e econômica; ou ainda, a depender da nossa raça, orientação sexual e gênero, com todas as interseccionalidades que nos atravessam.
Ademais, a realidade da baixa ocupação das mulheres nos espaços político-eletivos, apesar de compormos a maioria na sociedade brasileira, segundo dados do IBGE [1], acena que não somos “apenas” um grupo que clama por seu lugar na política, justamente por correspondermos a mais de cinquenta por cento da população desse país.
Demonstra-nos, além: um alerta quanto à nossa frágil relação com a democracia pela falta de representatividade e consequente rasa ocupação pelo povo brasileiro nesses espaços decisórios, políticos e públicos, com a pluralidade e a diversidade que o constituem, perpetuando-se, ano após ano, a hegemonia de grupos dominadores, em uma escalada de hierarquização social que cada vez mais reforça os abismos que nos separam; e mais, apresenta-nos, ainda, de forma inquestionável, a violação da igualdade política, que nas ideias de Robert Dahl [2], é um princípio fundamental para a democracia.
A Emenda Constitucional 117, de 5 de abril de 2022, previu, em uma das suas inovações normativas, a não aplicação de sanções de qualquer natureza, inclusive de devolução de valores, multa ou suspensão do fundo partidário, aos partidos políticos que não haviam preenchido a cota mínima de recursos ou que não haviam destinado os valores mínimos em razão do sexo e raça em eleições ocorridas antes da sua promulgação.
Esta medida contraria, de forma inequívoca, o princípio da igualdade política, considerando que a não destinação de verba para propulsionar a eleição das mulheres e pessoas negras candidatas a um cargo eletivo, reforça o déficit representativo, porque sabemos todos que a democracia tem o seu custo, e sem dinheiro destinado para esse fim, grupos ou maioria excluídos do processo eleitoral, no que toca ao exercício da capacidade eleitoral passiva, não conseguirão lograr êxito na ocupação dos espaços que lhe cabem.
Viola a própria Constituição, porque o dinheiro público, principal fonte de financiamento eleitoral, através do Fundo Partidário e Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC), quando aplicado, deve atender aos valores constitucionais, como o da igualdade de gênero e racial, demonstrando, assim, que ações afirmativas visam minimizar os desníveis que nos distanciam, e precisam ser cumpridas, até que a sua finalidade seja alcançada, e até quando medidas implantadas de médio e longo prazo sejam capazes de garantir o objetivo pretendido, sem tais políticas imediatistas.
As ações afirmativas não podem ser meras ilusões de um futuro que não chegará por falta de compromisso público. Hannah Arendt [3] nos alerta para a compreensão da responsabilidade política como uma responsabilidade coletiva, e na medida em que uma agenda capaz de efetivar a igualdade política não é honrada por quem deveria fazê-lo, precisamos repensar as nossas escolhas; precisamos, enfim, repensar sobre quem estamos destinando a nossa confiança política para ocupar os espaços cujas ações violam o interesse público e transgridem os valores constitucionais.
A Proposta de Emenda à Constituição nº 09, de 2023, de autoria do deputado Paulo Magalhães (PSD-BA) e outros, que tem como objetivo alargar o marco temporal estabelecido pela EC 117 para a fixação de sanções no caso de descumprimento de destinação de financiamento público para efeito de cotas de sexo e raça, determina a extensão da anistia partidária para as eleições de 2022, e representa bem essa falta de responsabilidade política.
No último dia 14 de abril, o deputado Diego Coronel (PSD-BA), relator da PEC nº 09/23 na Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania da Câmara dos Deputados, votou pela sua admissibilidade, sob o argumento de que a anualidade eleitoral, prevista no artigo 16, CF/88, recomenda que a aplicação de eventual sanção pelo descumprimento de destinação das cotas mencionadas pelos partidos políticos deve atender a uma previsibilidade jurídica.
As cotas previstas nas normas eleitorais — e reconhecidas pelo Poder Judiciário como essenciais à nossa democracia e para a garantia da igualdade política, seja pelo STF, em sede de controle concentrado (ADI 5.617), com efeito vinculante, portanto; que no exercício da função consultiva do TSE (CTA 0600306-47) — sequer deveriam ter tido a sua aplicabilidade questionada, e tampouco a sua violação anistiada, especialmente, em nível constitucional, considerando se tratar de um grave desrespeito aos princípios que regem a própria Constituição brasileira, que deveriam ser atendidos e respeitados pelos partidos políticos, pois, a despeito de autônomos (artigo 17, §1º, CF/88), não são ilimitados no agir, porque deveriam fazê-lo no sentido de efetivar a nossa base democrática, plural e inclusiva.
Acaso tivesse sido do interesse do poder reformador estender a anistia para as eleições de 2022, essa previsão deveria ter acontecido no momento do debate da proposta que hoje está no ordenamento como EC 117; portanto, antes das eleições gerais — e então para os defensores deste argumento, poder-se-ia até mencionar a anualidade eleitoral. Mas, àquela ocasião, ao menos, a ideia era de “perdoar” o inconstitucional não comprometimento com a igualdade política, os partidos que assim se eximiram dessa responsabilidade até a sua promulgação.
Discutir, após as eleições, a anualidade de uma sanção é, no mínimo, extemporâneo. No mínimo, ressalte-se!
O que se pretende, de fato, é não promover a maior participação da mulher e de pessoas negras na política, para garantir a hegemonia de grupos, com a não alternância de representantes e exclusão de vulneráveis e maiorias estranguladas politicamente nessa sociedade estruturalmente violenta, e que assim parece pretender permanecer, em razão dessa escalada de descumprimento do compromisso coletivo de promover espaços de poder e decisórios ocupados pelo povo brasileiro, traduzido, que deveria ser, em sua diversidade.
A anistia partidária, da EC 117 ou estendida com a PEC 09/23, é, por si só, uma grande afronta às lutas que não são de agora, e que, ao tempo em que avançam minimamente, retrocedem largamente com medidas como essas.
Inegável o tensionamento que a anistia partidária, e a possibilidade real da sua perenização com essas reiteradas violações às cotas, provoca em nossa democracia, já tremendamente abalada, especialmente após tantos discursos de ódio, desinformação e movimentos violentos de nos excluir, a nós mulheres, e as pessoas negras, do lugar que nos pertence.
Seguir anistiando os partidos políticos pela sua falta de compromisso coletivo e de responsabilidade política é esticar a corda de tensão da erosão democrática que nos assola, e já passou do tempo de compreendermos o nosso papel como protagonistas dessa mudança!
[1] https://educa.ibge.gov.br/jovens/conheca-o-brasil/populacao/18320-quantidade-de-homens-e-mulheres.html. Último acesso em: 13/4/23
[2] DAHL, Robert. Who Governs? Democracy and power in an American city. Yale Universityx Press, Yale, 1961.
[3] ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.