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27/12/2021Por Helio Maldonado
O presidencialismo de coalizão é um fenômeno da práxis política do Brasil. Sua existência foi identificada pelo cientista político Sérgio Abranches. Um conceito neutro, na explicitação de seu autor. Mas que diagnostica, no relacionamento institucional entre o Poder Executivo e o Legislativo, que para a governabilidade é necessária a formação de coalizão de maiorias.
Isto pois, ante o princípio da estrita legalidade administrativa, o Executivo, na consecução de políticas públicas idealizadas em seu plano de governo, imprescinde de Lei, de modo que, dessa maneira, precisa de maiorias qualificadas ou absolutas no Legislativo para a aprovação desses seus projetos. E, sinalagmaticamente, o Legislativo, que delibera sobre a aprovação do orçamento do Executivo, necessita da complacente execução de suas emendas por esse último para a aplicação no reduto eleitoral individual de cada membro integrante dessa coalizão. Uma espécie de política no varejo, pela multiplicidade de partidos representados no Congresso, e de interesses convergentes.
Todavia, esse modo de ser da práxis política brasileira, vigente desde a Primeira República, recebe agora, e já para as Eleições de 2022 – pelo respeito ao princípio da anualidade da Lei Eleitoral (artigo 16 da Constituição), o influxo da federação de partidos. Trata-se de inovação legislativa introduzida no ordenamento jurídico eleitoral por meio da Lei nº 14.208/2020, com introdução do artigo 11-A na Lei nº 9.096/95. Doravante, partidos políticos poderão se reunir em uma federação, tendo trato no processo eleitoral como um único partido, e, então, poderão usufruir da percepção de recursos públicos em conjunto do fundo partidário e eleitoral, como também poderão aferir em conjunto o quociente eleitoral, além de ratearem entre si o tempo de televisão e rádio gratuito.
Contudo, essa federação, estabelecida no período antes das eleições (agora, com a medida cautelar concedida pelo Ministro Roberto Barroso na Ação de Declaratória de Inconstitucionalidade nº 7.021/DF, com limite de seis meses antes do pleito), se propaga no tempo por no mínimo mais quatro anos (tempo próprio de uma legislatura), com uniformidade na fixação de diretriz partidária em detrimento de seus integrantes, e regime de fidelidade partidária para o reforço de sua incolumidade.
E a conexão entre a federação de partidos e o presidencialismo de coalização decorre do fato de que a instituição daquela, com o seu predicado de quociente eleitoral para a formação, e diretriz partidária para a direção, acaba por germinar condições de possibilidade para a vivência de uma política no atacado no Brasil. Explico.
O presidencialismo de coalizão implica no pejorativo “toma lá, dá cá”. Isso mesmo, institivamente, subsiste a troca de votos no Congresso em projetos de Lei por execução pelo Governo das emendas parlamentares no orçamento da União – ou algo ilícito, como conhecido no Mensalão, Petrolão e Lava Jato. Mas, pela federação, a barganha política poderá ser realizada perante uma ou mais federações, se conquistando, desde já, no atacado, a coalizão da maioria. Mais por ideologismo, e menos por fisiologismo sanguinário.
Linearmente, dessa propensão à mudança do status quo decorre o imediato aumento do lastro orçamentário para a realização de mais plano de governo pelo Executivo: a garantia de governabilidade. É exatamente essa a finalidade subjacente do presidencialismo de coalização, que, possível e provavelmente, se manterá, dada a circunstância inalterada da Constituição, ou mesmo do modo de se fazer política no Brasil, marcado por um federalismo com desconcentração de interesses diversos e colidentes, representados por bancadas parlamentares desiguais.
Entretanto, para essa consecução da governabilidade, a fluência da federação de partidos colidirá, insuscetivelmente, com o instituto da fidelidade partidária. Isso porque, tal como a timidez da Constituição e da Lei Orgânica dos Partidos Políticos, o novel artigo 11-A da Lei nº 9.096/95 não disciplina, com minucias, o devido processo partidário para a veiculação da diretriz partidária. Ao revés, seu §6º, inciso II, relega essa normatização ao estatuto da federação, tal como a regência geral das relações internas partidárias propiciadas pelo artigo 17, §1º, da Constituição. Afinal, as agremiações são pessoas jurídicas de direito privado, e regem-se soberanamente por seus estatutos, não?
Essa constatação retoma o problema do excesso de autonomia partidária vigente no nosso sistema político-eleitoral. Em palavras mais claras: via de regra quase que inflexível, não existe democracia interna nos partidos políticos no Brasil. Face a isso, no relacionamento entre o partido e o filiado eleito no Parlamento segue a vinculação disposta hodiernamente no artigo 26 da Lei nº 9.096/95: “Na Casa Legislativa, o integrante da bancada de partido deve subordinar sua ação parlamentar aos princípios doutrinários e programáticos e às diretrizes estabelecidas pelos órgãos de direção partidários, na forma do estatuto”. Desse modo, por certo é que a veiculação da diretriz partidária acabará por ser estabelecida de maneira despótica: às portas fechadas, e mediante acordos inconfessáveis. Tal como acontece atualmente. Não mais pela direção partidária. Mas sim pela direção da federação. E essa deliberação vinculará todos os deputados das agremiações integrantes da coalizão, sob coerção da infidelidade partidária, e consequência sancionadora variante entre a perda de prerrogativas de representação da agremiação na Câmara, ou a expulsão do parlamentar do partido.
Essa aporia supra, não da federação de partidos, mas do modo de ser da vivência partidária espacialmente no Brasil, remonta a outro problema fundamental: a compreensão do significado de diretriz partidária. Segundo a inteligência de Clèmerson Clève diretriz partidária é o fechamento de decisão sobre votação do Legislativo em torno de questões políticas, com vinculação aos mandatários do partido que a emitiu. Por exemplo: como nas recentes reformas trabalhista e previdenciária. Entrementes, na advertência de Clèmerson Clève, para ser lícita, a diretriz partidária necessita ser legitimamente instituída, segundo o devido processo partidário para sua deliberação, e em consonância com a ideologia e programa partidário. Ou seja, somente é vinculante a diretriz partidária que for instituída democraticamente conforme o rito do estatuto da agremiação, e que esteja em alinhamento com aqueles elementos valorativos do partido que foram abraçados pelo mandatário no seu ato de filiação. Se não for assim, seu descumprimento não pode implicar em infidelidade partidária. Isso porque a imunidade parlamentar individual não pode ser suplantada pela busca desenfreada da federação em proporcionar governabilidade ao Executivo.
Essa situação desenhada se agrava ainda mais na porventura fluência da federação de partidos, porque, afora a já denunciada falta de clareza sobre o rito da deliberação da diretriz partidária, não é requisito do artigo 11-A da Lei nº 9.096/95 que a união de partidos na federação perpasse pela presença de um afinamento ideológico e programático entre essas agremiações. Por conseguinte, partidos de direita e esquerda poderão pactuar a federação, apesar de que seu §2º garante que: “Assegura-se a preservação da identidade e da autonomia dos partidos integrantes de federação”. Sendo assim, o conflito entre a diretriz partidária da federação e o instituto da fidelidade partidária é muito mais propício a ocorrer.
Via de consequência, esse inevitável litígio entre a federação e o titular de mandato eletivo redundará na judicialização das relações intrapartidárias. Contudo, esse é e será um terreno arenoso. O Novo Código Eleitoral, ainda em votação no Senado Federal, solveu a competência da Justiça Eleitoral para processar e julgar essas contendas, pois prevê em seu artigo 81 que: “A Justiça Eleitoral é o órgão competente para conhecer e julgar as ações que versem sobre os conflitos intrapartidários, entre o partido político e os seu filiados ou órgãos e entre órgãos da mesma agremiação, ainda que não influenciem diretamente o processo eleitoral.”. Entretanto, o §1º do referido dispositivo impõe restrição cognitiva da Especializada nessa senda, ao ditar que: “É vedado o controle jurisdicional acerca da conveniência e oportunidade do ato partidário interna corporis, devendo limitar-se ao exame da sua validade formal, nos termos da Constituição Federal e desta Lei, sobretudo para salvaguardar direitos e garantias fundamentais”. Logo, o controle judicial sobre a diretriz partidária, pela lógica da Lei, será apenas e tão somente formal: sobre o cumprimento do devido processo partidário.
Ocorre que, essa perspectiva de limitação do controle judicial sobre os atos intrapartidários decorrer da ideia de que esses atos são interna corporis, então insindicáveis no seu mérito, dado o respeito à autonomia partidária. Mas essa percepção, que vem se repetindo no tempo na jurisprudência nacional, é inconstitucional, porque viola a garantia fundamental da inafastabilidade da jurisdição (artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição), e dá menor máxima efetividade a esse preceito constitucional.
Dessa maneira, pincipalmente nas ações declaratórias para o reconhecimento de justa causa para a desfiliação partidária, na dedução de mudança substancial ou desvio reiterado do programa partidário ou grave discriminação política pessoal (contidas no artigo 22-A, §1º, incisos I e II, da Lei nº 9.096/95), esse objeto litigioso sobre a justa causa em si deverá e será apreciado pela Justiça Eleitoral, para aferimento da existência de diretriz partidária legitimamente fixada, e cotejo da correção ou não das sanções em decorrência de seu descumprimento, propiciando, assim, condições de possibilidade para que a Justiça Eleitoral promova a judicialização das relações intrapartidárias.