O princípio da anualidade eleitoral e a jurisprudência eleitoral
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13/06/2022O Poder Judiciário vem passando há uma década por uma enorme exposição na mídia, o que leva as pessoas a tomar conhecimento e formar opinião sobre o trabalho dos magistrados em todas as instâncias — e criticar suas decisões. De acordo com Danyelle Galvão, advogada, membro da ABRADEP, mestre e doutora em Direito Processual pela USP, professora e coordenadora do Grupo Nacional de Estudos Avançados de Direito Penal Eleitoral do IBCCrim, além de autora do livro “Precedentes judiciais no processo penal”, nesse mesmo período teve início um movimento em alguns setores da sociedade para promover uma descredibilização do próprio Judiciário, além da Presidência da República e do Congresso Nacional, fenômeno que está mais forte do que nunca.
Em entrevista à ConJur, Danyelle afirma que existe uma tendência dentro do Judiciário de monocratização das decisões, que vem sendo posta em prática há algum tempo. A advogada revela dados de levantamento realizado por ela e outro operador do Direito, Fernando Cunha, entre 2016 e 2020, sobre decisões finais de Habeas Corpus no STF. O resultado: 90% das sentenças foram proferidas por um ministro. E ela também diz que uma reforma efetiva do Código de Processo Penal deve chegar nas próximas legislaturas.
Leia a seguir a entrevista:
ConJur — A interpretação da lei por meio de decisões judiciais compromete/atrapalha o andamento do processo no que tange à dignidade do indivíduo e à apreciação de seus antecedentes?
Danyelle Galvão — Não, de jeito nenhum. Na verdade, a interpretação da lei pela jurisprudência é uma atividade da própria atividade jurisdicional. Ela é necessária. Não existe mais aquele juiz que é “boca da lei”, aquele juiz que é só a letra da lei ou que repete o que está escrito na lei. A lei precisa de uma interpretação, isso é inerente. Então não atrapalha, na verdade possibilita que garantias, com uma melhor interpretação judicial, sejam alcançadas.
ConJur — Como fazer quando há mais de uma versão para essa interpretação?
Danyelle Galvão — O Poder Judiciário é composto por vários juízes. E é natural no ser humano que cada um tenha um entendimento sobre uma determinada lei. Só que o Poder Judiciário também é estabelecido numa maneira hierárquica, uma formação de juízes em primeira instância, depois uma discussão em segunda instância, formada por um órgão colegiado, com juízes, desembargadores mais antigos, mais experientes, mais longevos na carreira. Depois os tribunais superiores. A formação do Judiciário já é dessa forma para garantir, por exemplo, que o Superior Tribunal de Justiça, conhecido como o Tribunal da Cidadania, seja um tribunal responsável por unificar esse entendimento de vários tribunais e vários juízes no Brasil. Uma das funções do STJ é uniformização em relação à interpretação das leis infraconstitucionais. Enquanto do Supremo Tribunal Federal é em relação à interpretação da Constituição.
ConJur — E o que fazer?
Danyelle Galvão — O que se busca é ter uma noção de precedentes, estabelecimento de critérios quanto a interpretação e para que não haja um conflito dentro do mesmo tribunal ou uma insegurança jurídica em que os cidadãos não consigam saber qual a posição do Poder Judiciário em relação a essas interpretações, em relação a essas leis. Mas é natural que existam entendimentos divergentes. O Poder Judiciário vai trabalhar para que diminua a divergência ou para que ela se estabilize e não haja esses contrastes.
ConJur — Exemplo disso foi o que aconteceu nesta semana no STF, em relação à cassação de um deputado federal do Paraná. Monocraticamente a situação foi modificada. E depois houve divergência sobre a matéria ser apreciada numa determinada turma ou no plenário. Como classificamos essa situação?
Danyelle Galvão — Esse episódio reúne uma série de questões. Primeiro: há uma tendência já há alguns anos, não só no Supremo ou no STJ, mas em todos os tribunais, à monocratização das decisões. Tribunais que, apesar de serem conhecidos pela colegialidade, acabam tomando a maior parte das decisões de uma forma monocrática.
ConJur — Isso pode acontecer legalmente?
Danyelle Galvão — Isso é autorizado legalmente, tem previsão regimental. Mas nos últimos anos houve um aumento exponencial da quantidade de decisões monocráticas.
ConJur — Por quê?
Danyelle Galvão — É um fenômeno decorrente da (grande) quantidade de processos (em tramitação). Por exemplo, eu e um colega, Fernando Cunha, fizemos um levantamento de 2016 a 2020 e observamos que a decisão final de Habeas Corpus no STF, se concede ou não concede, 90% desses Habeas Corpus foram julgados monocraticamente. Isso é um número gigante, mas seria impossível julgar a quantidade de processos que existe sem que houvesse uma autorização regimental e legal como a que há para julgamentos monocráticos. Esse fato do deputado do Paraná passa um pouco por isso. Houve uma decisão monocrática porque há uma tendência para que haja uma monocratização das decisões.
ConJur — Mas e o desdobramento disso?
Danyelle Galvão — Uma outra questão é se o processo deveria ter sido julgado na 2ª Turma, que é o juiz natural, ou se deveria ser afetado para o Plenário. Aí, falando de uma forma abstrata, acontece que existe previsão regimental de onde os processos devem ser julgados. A competência é pré-estabelecida, até para que não haja escolha de onde os processos vão ser julgados. Mas tanto o regimento do STJ quanto o do STF autorizam em algumas situações que os processos deixem de ser julgados na turma originária e passem a ser julgados num órgão colegiado maior e mais amplo.
ConJur — Quais são essas situações?
Danyelle Galvão — Quando houver divergência entre as turmas, quando houver a necessidade de fixação de uma jurisprudência uníssona em relação a determinado tema. Ou quando houver necessidade de julgamento e de debate sobre uma súmula. Essas são as linhas gerais a essas hipóteses.
ConJur — E quais os critérios ou casos em que isso aconteceu?
Danyelle Galvão — Quando estava sendo discutido o Habeas Corpus do ex-presidente Lula, lá em 2018. Era um caso da turma e foi remetido para o Plenário para uma discussão ampliada. Se estava dentro ou fora dos critérios, é outra discussão. Mas é uma possibilidade. A gente chama isso de afetação. Tiro da turma, mando para o Plenário. Outros casos criminais em que isso aconteceu: a discussão sobre a ordem das alegações finais em processo em que há réu colaborador; a prisão do ex-ministro (Antonio) Palocci, que estava pautada para agora e foi retirada; a discussão sobre a retroatividade da não persecução penal; a competência da Justiça Eleitoral para os crimes conexos. Todos eram casos de julgamento de turma, mas por uma discussão com relevância social, política, econômica ou porque há uma contradição entre turmas, foram levados para Plenário para discussão de um colegiado e para fixação do entendimento do tribunal. Há alguns critérios de afetação que devem ser observados, mas é legítimo, desde que preenchidos requisitos do regimento.
ConJur — O fator surpresa decorrente de mudança abrupta de posicionamento dos tribunais — ou pelo menos posição de supremos ministros — é uma situação que começa a ser tornar comum hoje. Por quê? É devido principalmente à enorme quantidade de processos na fila e à conjuntura econômico-político-social do Brasil?
Danyelle Galvão — É aceitável o nome que se quiser dar para isso. Mas isso não significa dizer que todos os casos de mudança de jurisprudência sejam surpresa. E nem que todos os casos sejam abruptos. O que acontece é que há uma tendência, de alguns anos para cá, de demonizar o Supremo Tribunal Federal e outros tribunais, ou seja, o Judiciário, quando há uma fixação de tese que não agrade à sociedade.
ConJur — Mas sobre mudar de ideia…
Danyelle Galvão — Isso não quer dizer que os tribunais não possam mudar de ideia. Até países como Estados Unidos e Inglaterra, com sistema judiciário com mudanças mais rígidas na jurisprudência, que demoram mais para fazer suas mudanças e os critérios para mudar são diferentes, mudam. O sistema não é imutável. O entendimento não é imutável.
ConJur — Qual a diferença?
Danyelle Galvão — A diferença entre esses países para o que às vezes acontece no Brasil é que a mudança é muito abrupta. A mudança não tem uma justificativa de uma alteração significante na sociedade, na política ou na economia. Ou que não haja uma sinalização de mudança, como aconteceu em 2016 com a prisão em segunda instância. Ou seja, tínhamos uma jurisprudência estável desde 2009 a 2016 que dizia que só se poderia prender, executar uma pena, depois do trânsito em julgado. E sem que houvesse uma sinalização de que a partir de determinado momento poderia ser mudado o entendimento, o STF, à época, teve essa alteração de entendimento. Pegou as pessoas de surpresa. Isso é possível porque não tínhamos à época e ainda não temos de forma consolidada um sistema com mais rigidez, mais previsibilidade, segurança jurídica, integridade e estabilidade da jurisprudência. O que não dá para aceitar é que seja imutável num todo, nem que seja mutável simplesmente por uma alteração de posição do tribunal ou uma mudança na sociedade que não seja relevante, que altere o cenário.
ConJur — A falta de debate sobre a proposta do novo Código de Processo Penal inviabiliza o desenvolvimento do Direito no Brasil?
Danyelle Galvão — Não atrasa porque a Justiça não está esperando o novo código para que possa julgar os processos. Julga-se conforme a legislação que está posta. Temos de levar em consideração que nosso Código de Processo Penal é de 1941. Tem a mentalidade inquisitiva de uma mentalidade pós-Constituição. Vêm acontecendo mudanças parciais do Código, como em 2003, com a necessidade de advogado no interrogatório do acusado. De 1988 até 2003 não tinha isso. Outro exemplo, em 2008, ao invés do interrogatório ser no início do processo, ser usado como colheita de prova inicial, no processo o interrogatório passa a ser um meio de defesa. Outra mudança: estabelecimento de medidas cautelares diversas da prisão. Ao longo dos anos há o estabelecimento de outras questões para atender a disposições e garantias constitucionais. Mas o ideal seria que houvesse uma reforma total do Código de Processo Penal, que deve acontecer nas próximas legislaturas. Estão sendo feitas reformas parciais.
ConJur — Há encaminhamento para essa reforma total?
Danyelle Galvão — O PLS 156 é de 2009, desde então o Brasil mudou bastante. Houve uma ânsia da sociedade por recrudescimento penal, tentativas legislativas de aumento de pena, da quantidade de prisões. Não é fácil mudar um código. O CPP tem todas suas peculiaridades e dificuldades. Há todas as peculiaridades para o debate. Até para que não seja um debate atropelado e eventualmente sejam diminuídas garantias que já foram conquistadas. Decorre de uma dificuldade efetiva de se pensar como um todo. Mas é a hora de termos um novo Código Penal.
ConJur — O Poder Judiciário hoje está muito exposto?
Danyelle Galvão — Antigamente não havia uma exposição do Judiciário como há hoje. Há a influência da internet. Temos uma Constituição muito mais democrática do que tivemos no passado. Temos um Poder Judiciário mais independente do que já tivemos no passado. Mas ainda há muito a ser construído como sociedade, não como Poder Judiciário só.
ConJur — O Judiciário está na vitrine, como nunca antes. Ele é o foco?
Danyelle Galvão — Houve uma exposição do Judiciário, nos últimos anos, seja na internet, a TV Justiça, com a divulgação dos julgamentos e com o acompanhamento da sociedade, às vezes até em tempo real. Isso não quer dizer que o Poder Judiciário está mandando mais ou menos na política, ou que deveria ou não fazer isso. As questões que estão sendo levadas aos tribunais superiores são em relação à legalidade, à legitimidade dos atos. Há, sim, um confronto de narrativas, talvez até para descredibilizar o Judiciário, assim como houve um grande momento no país de descredibilização da política. Durante anos, se não há ainda, uma grande descredibilização da política, de criminalização de condutas da política. Agora, além disso, há uma descredibilização do Judiciário. Temos de defender o Judiciário, o Executivo e o Legislativo como os três poderes de uma República, como os três poderes basilares de uma democracia. Sem a preponderância de algum deles, mesmo que haja o controle judicial sobre alguns atos da Administração Pública. A demonização de alguns dos poderes da República só leva ao enfraquecimento da democracia. Isso é inaceitável.
ConJur — Hoje vivemos um ataque às instituições?
Danyelle Galvão — Isso não é de hoje. Se pensarmos que há dez anos, na última semana de julho, a gente estava começando o julgamento do mensalão… Já havia, naquele momento, há dez anos, uma exposição gigantesca pela imprensa, que leva as pessoas a tomarem conhecimento do que estava sendo feito naquele momento pelo Judiciário. Há uma década já havia um movimento de setores da sociedade de descredibilização do Poder Judiciário, como havia por outros setores da sociedade uma descredibilização da Presidência da República, do Congresso Nacional. Não é um fenômeno de hoje, mas parece mais recrudescido, mais forte. Ou talvez tenhamos esquecido como era no passado.
Uma vez fiz um levantamento em 56 sessões de julgamento do mensalão. Todos os dias tinha o Jornal Nacional cobrindo, todos os jornais com imagem do Supremo, todos os dias. Assim como na “lava jato” tinha imagem do Judiciários todos os dias. Houve maior exposição na última década e, consequentemente, também há maior crítica porque aquela atividade passou a ser conhecida da sociedade. As pessoas passaram a conhecer os nomes dos ministros, os nomes de determinados juízes. Há quem goste e há quem não goste. Agora, descredibilizar qualquer um dos poderes da República é o que não dá para acontecer, em qualquer uma das instâncias, federal, estadual e municipal. Mas sempre haverá crítica. Não precisa concordar com tudo. Mas não pode descredibilizar a instituição. Vivemos numa democracia em que podemos nos manifestar. Mas sem ofender, sem instigar a violência. Por outro lado, as decisões judiciais estão sujeitas às hipóteses recursais. O que não dá é para descredibilizar o Poder Judiciário, como as outras instituições. Como o Congresso não serve para nada, então vamos fechar o Congresso? Não funciona assim. É importante manter uma jurisprudência estável em todas as áreas.