Punição de fake news nas eleições esbarra em regras defasadas
10/12/2021A Justiça Eleitoral e o julgamento de crimes complexos
14/12/2021Por Marina Morais e Daniel Falcão
“A constituição da Bruzundanga era sábia no que tocava às condições para elegibilidade do mandachuva, isto é, o presidente. Estabelecia que devia unicamente saber ler e escrever; que nunca tivesse mostrado ou procurado mostrar que tinha alguma inteligência; que não tivesse vontade própria; que fosse, enfim, de uma mediocridade total. Nessa parte a constituição foi sempre obedecida.”
Lima Barreto, em “Os Bruzundangas”
Quase 100 anos se passaram desde a publicação de “Os Bruzundangas”, de Lima Barreto, uma crônica satírica da República Velha. Diferentemente de Bruzundanga, no Brasil do século XXI as condições de elegibilidade e as hipóteses de inelegibilidades estão muito mais acentuadas.
O artigo 1°, inciso I, alínea ‘g’, da Lei Complementar 64/90, alterado pela Lei Complementar 135/2010 (Lei da Ficha Limpa), estabelece que “estão inelegíveis os gestores que tiverem suas contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável que configure ato doloso de improbidade administrativa”.
A disposição, não imune a críticas pela rigorosa restrição a direito político fundamental, foi recentemente alterada pela Lei Complementar 184, de 29 de setembro de 2021, que acrescentou, no texto legal, o §4º-A ao art. 1º da referida Lei das Inelegibilidades, para excluir da incidência dessa causa de inelegibilidade os responsáveis que tenham tido contas julgadas irregulares sem imputação de débito e com condenação exclusiva ao pagamento de multa.
Com efeito, a prática apresenta inúmeras hipóteses a serem abrangidas pela exceção, pois, não raro, encontram-se casos de aplicação de multa em que não há dano ao erário e, por consequência, não se fala em imputação de débito.
O art. 58 da Lei Orgânica do Tribunal de Contas da União (Lei 8.443/92), por exemplo, prevê a possibilidade de aplicação de multa aos responsáveis por: I – contas julgadas irregulares de que não resulte débito; II – ato praticado com grave infração à norma legal ou regulamentar de natureza contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial; III – ato de gestão ilegítimo ou antieconômico de que resulte injustificado dano ao Erário; IV – não atendimento, no prazo fixado, sem causa justificada, a diligência do Relator ou a decisão do Tribunal; V – obstrução ao livre exercício das inspeções e auditorias determinadas; VI – sonegação de processo, documento ou informação, em inspeções ou auditorias realizadas pelo Tribunal; VII – reincidência no descumprimento de determinação do Tribunal. Em ao menos seis dessas hipóteses é possível a inexistência de dano patrimonial direto.
Dado esse contexto, nos parece que o debate posto transcende o (des)acerto da opção legislativa — que, a propósito, agiu em função típica e em prol da maior preservação dos direitos fundamentais — para um contexto muito mais prático, qual seja, o da aplicação da novel exceção aos processos em curso.
A esse exemplo, tramitava no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) um pedido de aplicação da norma a um caso no município de Mostardas, no Rio Grande do Sul, em que um candidato a vereador teve seu registro indeferido por incidência da inelegibilidade prevista no art. 1º, I, ‘g’, da Lei Complementar 64/90.
Em 02 de dezembro de 2021, o Plenário do TSE, então, deferiu o registro, ao prevalecer, no julgamento, o voto-vista e de divergência do Ministro Mauro Campbell, que afirmou não estar presentes “elementos que revelem a existência de ato doloso de improbidade administrativa aptos a atrair a incidência da inelegibilidade da alínea ‘g’ do inciso 1º, artigo 1º, da Lei Complementar 64/90”, voto este acompanhado pelos Ministros Carlos Horbach, Nunes Marques, Alexandre de Moraes e Benedito Gonçalves, vencido o Rel. Min. Edson Fachin (REspe nº 0600190-44).
Indaga-se: a inovação legislativa pode ser aplicada aos casos em curso?
Deve ser aplicada!
De início, é de se notar que a temática é própria do direito eleitoral sancionador. Sob esse viés, a aplicação da norma está sujeita aos princípios constitucionais do direito sancionador em geral, especialmente a tipicidade (formal), a lesividade (tipicidade material), a antijuridicidade e a culpabilidade.
Neste contexto, sob a perspectiva da máxima efetividade dos direitos fundamentais, a manutenção de uma restrição à capacidade eleitoral passiva, contemporaneamente à existência de norma que exclui a tipicidade de conduta não lesiva, destoa dos princípios constitucionais aplicáveis ao Direito Eleitoral sancionador. A regra é a proteção do direito fundamental de elegibilidade, não o contrário.
Não obstante, vê-se que a aplicação da nova lei sequer destoa da interpretação que já era dada à norma restritiva. O Tribunal Superior Eleitoral já havia firmado entendimento no sentido de que a incidência da inelegibilidade prevista na alínea ‘g’ do inciso I do art. 1º da LC nº 64/90 exige a verificação, pela Justiça Eleitoral, “de elementos mínimos que revelem má-fé, desvio de recursos públicos em benefício próprio ou de terceiros, dano ao erário, reconhecimento de nota de improbidade, grave violação a princípios, entre outros, entendidos assim como condutas que de fato lesem dolosamente o patrimônio público ou que prejudiquem a gestão da coisa pública” (RO 1067-11/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes, PSESS de 30.9.2014).
Em complemento, o TSE também já havia consignado que “a nova redação da Lei de Inelegibilidade, introduzida pela LC nº 135/2010, exige a presença de ato de improbidade administrativa praticado na modalidade dolosa que demonstre minimamente a intenção de dilapidar a coisa pública — o que difere de mera má gestão ou imperícia contábil” (RO 0600620-21/MT, Rel. Min. Og Fernandes, PSESS de 20.11.2018).
O recém-incluído §4º-A, portanto, parece trilhar o caminho já estabelecido, diferenciando os gestores inábeis ou que possuam más condutas subjetivas daqueles que efetivamente malversam e dilapidam os recursos públicos. Dado que a proteção dos direitos políticos é a regra, deve-se reservar a inelegibilidade apenas para os casos em que se demonstre ofensa dolosa e concreta à coisa pública, deixando-se que as urnas resolvam eventuais discussões acerca do agente público incompetente, imprudente ou imperito.