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26/02/2025Atribuições do vice-presidente e imposto sobre grandes fortunas não tiveram definição completa e dependem do Congresso
Passados 36 anos desde a promulgação, a Constituição segue com trechos incompletos, que dependem do Congresso Nacional para serem finalizados. São dezenas de artigos ainda em aberto, como as atribuições do cargo de vice-presidente da República, o direito à greve de servidores públicos e a conclusão do imposto sobre grandes fortunas.
Levantamento feito pela Câmara dos Deputados até sexta-feira (21) mostra que 196 dispositivos ainda não foram regulamentados. Entre eles, 94 sequer tiveram alguma proposta apresentada. Para os outros 102, os parlamentares até protocolaram projetos, mas nenhum foi votado.
Os dispositivos pendentes, além da avaliação de parlamentares, dependem da sanção do presidente da República. Enquanto ficam em aberto, eventuais decisões que dependem dos trechos passam por análises judiciais. Mas alguns não podem nem ser implementados, como é o caso do imposto sobre grandes fortunas.
A cobrança ligada a bens está prevista no artigo 153, com a redação de que “Compete à Constituição impostos sobre […] grandes fortunas, nos termos de lei complementar”. Por não haver o avanço da lei, esse tipo de cobrança nunca foi feita em quase quatro décadas. A adequação depende de etapas junto aos parlamentares, conforme explica o advogado Bruno Andrade.
“O Congresso teria que definir o que é grande fortuna primeiro, para a partir disso ter uma taxação específica para fazer. Se pensarmos em política redistributiva de imposto, se grandes fortunas pagam mais, a sociedade pagaria menos”, diz Andrade, que também é coordenador-geral adjunto da Abradep (Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político).
Para o cientista político André César, a falta da regulamentação aumenta a incerteza jurídica, pois ficam lacunas no texto constitucional. Ele destaca, porém, que a Constituição é “muito detalhista” e que poderia ser mais “enxuta”. Contudo, ressalta que muitas questões não interessam ao parlamento, a exemplo do imposto sobre grandes fortunas.
“À exceção do governo Bolsonaro, nos governos Itamar, Fernando Henrique, Lula, Dilma, e até Temer, falava-se na questão do imposto sobre grandes fortunas, mas jamais se abordou a fundo”, destaca.
Outras prioridades
César observa, porém, que a agenda do Congresso é extensa e complexa. Desse modo, muitos assuntos “tomam a frente da fila” e não sobra tempo hábil para a regulamentação dos 196 pontos.
“Devemos assistir em 2025 muita questão em torno de segurança pública, que é uma questão proeminente na sociedade brasileira. Há quase um grito de alerta por parte da população, da sociedade, que se sente acuada, o crime organizado avançando e tudo mais. Então, acaba tomando conta, e não há tempo hábil nem espaço para os 513 deputados e 81 senadores tratarem de tudo”, opina.
Doutor em administração pública pela FGV/SP, o cientista político Leonardo Queiroz Leite também destaca a complexidade e extensão da Constituição. “Para fazer essas regulamentações, demanda tempo, consenso e negociação política. Mas entra o principal problema, que é a falta de vontade política, de disposição e interesse dos congressistas em encarar certos temas sensíveis politicamente”, afirma.
Ele ainda lembra que o Congresso lida com “pressões e crises o tempo inteiro”. Assim, as prioridades de cada momento se sobrepõem a essa questão. Ele explica que a consequência da falta da regulamentação é que alguns direitos na Constituição ficam com lacunas.
Pontos em aberto
Apesar do cenário que, na prática, deixa a Constituição “incompleta”, a ausência de pontos específicos não é determinante para o cumprimento dos preceitos constitucionais, mas poderiam ter um desfecho mais democrático se passassem pelo Congresso, conforme ressalta Andrade.
“O principal problema de alguns temas não terem uma legislação não é o exercício do direito, mas a judicialização. Se delega ao Poder Judiciário para decidir uma questão que poderia melhor ser decidida no âmbito político. Grande parte dos grupos sociais poderiam influenciar e trazer pressão [aos temas]. Mas no Judiciário tende a ser uma decisão mais técnica”, afirma.
A ausência de grandes impedimentos é exemplificada por Andrade como nos detalhes das funções ligadas ao vice-presidente, sem interferência na substituição do principal cargo político.
“Tem uma função básica na Constituição que é substituir o presidente nas suas ausências, seja temporária, em viagem ou impedimento médico, ou falecimento. E aí tem a figura inerente a isso. Mas não tem se vai assumir ministério, se tem função de chefe de Estado ou articulação. Nos Estados Unidos, por exemplo, o vice-presidente é automaticamente o presidente do Senado. Isso já está na Legislação deles, e aqui não tem isso”, diz.
Alguns tópicos da Constituição ainda não regulamentados são:
A criação, a incorporação, a fusão e o desmembramento de Municípios, far-se-ão por lei estadual, dentro do período determinado por lei complementar federal, e dependerão de consulta prévia, mediante plebiscito, às populações dos Municípios envolvidos, após divulgação dos Estudos de Viabilidade Municipal, apresentados e publicados na forma da lei. (Art. 18. §4º)
Lei federal disporá sobre a utilização, pelo Governo do Distrito Federal, das polícias civil e militar e do corpo de bombeiros militar. (Art. 32. § 4º)
É vedada a complementação de aposentadorias de servidores públicos e de pensões por morte a seus dependentes que não seja decorrente do disposto nos §§ 14 a 16 do art. 40 ou que não seja prevista em lei que extinga regime próprio de previdência social. (Art. 37. § 15)
Substituirá o Presidente, no caso de impedimento, e suceder-lhe-á, no de vaga, o Vice-Presidente. O Vice-Presidente da República, além de outras atribuições que lhe forem conferidas por lei complementar, auxiliará o Presidente, sempre que por ele convocado para missões especiais. (Art. 79. Parágrafo único)
Vagando os cargos de Presidente e Vice-Presidente da República, far-se-á eleição noventa dias depois de aberta a última vaga. Ocorrendo a vacância nos últimos dois anos do período presidencial, a eleição para ambos os cargos será feita trinta dias depois da última vaga, pelo Congresso Nacional, na forma da lei. (Art. 81. § 1º)
Compete privativamente ao Presidente da República: prover e extinguir os cargos públicos federais, na forma da lei (Art. 84. XXV)
Compete à União instituir impostos sobre: grandes fortunas, nos termos de lei complementar. (Art. 153. VII)
O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: piso salarial profissional nacional para os profissionais da educação escolar pública, nos termos de lei federal. (Art. 206. VIII)
Impactos práticos
Conforme avalia Bruno Andrade, os pontos em aberto da Constituição não trazem impactos diários significativos. Na falta de regras para a greve de servidores federais, por exemplo, passou a ser levado em consideração o entendimento da lei geral da greve: “Aquelas situações particulares serão analisadas juridicamente pela lei geral, enquanto não há uma lei específica.”
O especialista também atrela parâmetros incompletos ao processo de elaboração Constitucional e à própria falta do Congresso. “É uma Constituição muito grande se comparar com outras constituições pelo mundo. A nossa é muito analítica, e o processo constituinte foi muito complexo, entre vários setores da sociedade, com o texto-base para depois passar por revisão. Isso gerou uma série de normas que ficaram pendentes de regulamentação. Mas se for olhar com detalhe mais a fundo, muitas das normas não geram prejuízo para a sociedade”, completa.