Confiabilidade das urnas eletrônicas do sistema eleitoral brasileiro
24/10/2022TSE: entenda o caso de “censura” e veja análises de especialistas
25/10/2022Por Amanda Guimarães da Cunha
O segundo turno das eleições presidenciais tem desafiado a sociedade civil em geral, candidatos e candidatas, partidos políticos e, sobremaneira, as instituições de controle, notadamente a Justiça Eleitoral.
Num cenário já altamente polarizado, por conta dos dois candidatos que disputam o cargo, os quais por si só despertam diferentes paixões, acrescenta-se um nível de desinformação nunca antes visto no país. Ainda que tenhamos tido contato com esse fenômeno já em 2018, no atual pleito ele alçou dimensões e patamares de gravidade que sem qualquer dúvida colocam em xeque a legitimidade das eleições e o próprio regime democrático.
Nesse sentido, a atuação da Justiça Eleitoral torna-se proeminente, justamente para tentar resguardar em alguma medida a normalidade da disputa eleitoral. Uma atuação que não escapa de maiores tensionamentos, afinal, quais os limites de atuação, e mais ainda de intervenção, dos tribunais sobre a liberdade de expressão no combate à desinformação?
As autoridades judiciais eleitorais não só podem, como devem, quando devidamente instadas a se manifestarem, a intervirem diante de conteúdos sabidamente inverídicos, que assim o são não somente os falsos por si só, mas também aqueles descontextualizados e manipulados. Ou seja, as famosas “fake news” podem ser, portanto, formuladas com base em elementos preliminarmente verídicos.
Tal poder de atuação abrange tanto o ambiente das redes sociais, como, e ainda mais, o das mídias tradicionais de rádio e televisão, aos quais é garantido igualmente o direito à expressão e à crítica, mas como concessionárias de serviço público devem também observância à imparcialidade e ao tratamento proporcional a todos os candidatos. São as regras que decorrem da própria Lei das Eleições[1] e da Resolução 23.610/2019[2], a qual regulamenta a propaganda eleitoral.
Veja-se que nesse aspecto, constatando-se a desinformação em quaisquer dos meios, pode a Justiça Eleitoral determinar a suspensão do conteúdo[3] e, em casos mais graves, quando constatado por exemplo o tratamento parcial pelas mídias tradicionais, até a suspensão da programação irregular[4]. Isso, inclusive, não é nenhuma novidade no ordenamento brasileiro. A base legal é a mesma que se utilizou para suspender, por exemplo, a programação do SBT por 24 horas na década de 1990[5]. Ou, até mesmo, no memorável episódio em que o apresentador Cid Moreira, com a sua igualmente memorável voz, leu no Jornal Nacional o direito de resposta do então governador do Rio de Janeiro Leonel Brizola.
Mais recentemente, a regra foi invocada numa série de disputas judiciais envolvendo um dos atuais candidatos ao governo do Amazonas e a Rede de Rádio e Televisão Tiradentes, que precisou ser levada igualmente ao Tribunal Superior Eleitoral, dada a reiteração da conduta ilícita[6].
Em que pese ser uma medida obviamente excepcional, agem nesse sentido, os tribunais eleitorais, dentro da mais absoluta legalidade.
Apesar disso, muitas polêmicas se instalaram nos mais diversos meios de comunicação e motivaram até emissão de notas por parte de instituições da sociedade civil, inclusive da ABI (Associação Brasileira de Imprensa), em que se acusou o TSE de censura por punir algumas emissoras e redes sociais por terem compartilhado o que foi compreendido como fake news e sido determinado, sob pena de multa diária, a retirarem do ar tais conteúdos e não mais os veicularem.
Ora! Se a Justiça Eleitoral, agindo dentro do poder conferido pela Lei, entendeu que alguma fala ou conteúdo foi considerado ilícito, que sentido haveria em se permitir que esse conteúdo permanecesse no ar ou fosse novamente veiculado?
Nesse aspecto, diversas decisões têm sido tomadas sim pelo TSE, instância competente tratando-se da disputa presidencial, em benefício ou detrimento de ambos os candidatos.
Se de um lado houve suspensão de conteúdo referente ao ex-presidente Lula, na polêmica maior ao redor da rádio Jovem Pan, houve proibição da campanha deste de veicular matéria que tratava do infeliz episódio acerca das meninas venezuelanas que moram na periferia da capital do país, narrada pelo também candidato Jair Bolsonaro, inclusive mesmo antes de ir ao ar na propaganda eleitoral. Decisões estas que foram tomadas sempre com maioria apertada, demonstrando a dificuldade e sem dúvida alguma a não unanimidade no trato de questões deveras sensíveis.
Veja-se ainda que, diferente do veiculado, as decisões determinaram a retirada do ar somente dos conteúdos debatidos no processo e considerados como ilícitos. Não há qualquer proibição de se falar inclusive sobre o mesmo assunto, resguardado o limite sobre a legalidade, a contextualização e a veracidade das informações proferidas.
É sempre importante ter em mente que estamos lidando, ao analisar estas questões, com o conflito de três direitos fundamentais de iguais importância: a liberdade de expressão e de imprensa X a igualdade de oportunidades na corrida eleitoral X o direito do eleitorado de acesso à informação verídica (dimensão social da liberdade de expressão).
Resguardada a devida razoabilidade e proporcionalidade da medida, pode sim a primeira ser restringida quando os veículos de comunicação divulguem conteúdos ilícitos e prejudiciais à legitimidade das eleições e o livre exercício da formação da vontade do eleitorado, bens jurídicos que, literalmente, precisam ser garantidos em tempo hábil.
Cortes e autoridades judiciais eleitorais não estão a salvo de crítica. Muito menos de errarem, ainda mais quando lhe são depositadas tamanhas responsabilidades e em contextos como esse em que são tensionadas a resolver os mais complexos, e desconhecidos em muitos aspectos, fenômenos sociais. Entretanto, decisão judicial com a qual não se concorde, discute-se e se combate no processo. Não há que se falar, nesse ínterim, em qualquer ato de censura.
Censura é o que esse país já viveu quando, num passado não tão distante e que insiste em se fazer presente, autoridades não judiciais tolhiam qualquer liberdade de expressão. Quando autoridades ilegítimas tomaram o poder do povo para si e cassaram à revelia da lei os seus representantes. É a supressão de ideias por si só consideradas contrárias à ordem vigente. É a sobreposição de supostos valores morais de uma sociedade autoritária e violenta. Censura é a proibição arbitrária e sem fundamento legal sobre o direito fundamental à livre expressão.
Escrevi, aqui mesmo na ConJur, antes mesmo do início desta corrida eleitoral, que a atuação dos juízes e juízas eleitorais, em respeito ao seu dever constitucional e convencional de imparcialidade, não poderia se tornar mais um vetor de desestabilização democrática num cenário que já se previa deveras problemático. Entretanto, não é o caso que ora se discute.
Decisão proferida em processo judicial, que respeitou as regras do devido processo e assim o fez ao se constatar a prática de um ilícito eleitoral e um ato proibido pelo Direito, é atuação legítima e respaldada na ordem legal e constitucional vigente. Nesse aspecto, um brocado jurídico que não envelhece: dura lex, sed lex. Afinal, muitas das redes que agora se insurgem contra as decisões do TSE bradam reiteradamente, para outros casos, que ninguém está acima das leis.
Os veículos de mídia tradicional, em especial, não podem esquecer que prestam um serviço público e que seu direito de expressão não é irrestrito, muito menos que a concessão pública da qual dispõem são um salvo conduto para se transformarem em instrumentos de propaganda eleitoral e deturpação da realidade para fins igualmente nada republicanos.
Ante um cenário de ataques reiterados e orquestrados contra as instituições que se insurgem contra o fenômeno da desinformação e das milícias digitais, há que se clamar pela racionalidade, e honestidade intelectual, do debate e das críticas porventura cabíveis.
Nesse aspecto, merece defesa a Justiça Eleitoral. Todavia, é sempre imperioso salientar que as autoridades judiciais podem muito, mas não podem tudo.
Há que se olhar com cautela, e com o devido alerta, a iniciativa do TSE de ampliar sobremaneira o seu poder sobre a propaganda eleitoral, instituindo novas regras de controle nas vésperas do pleito, sem qualquer respeito à regra constitucional da anualidade e, ainda mais grave, criando figuras sancionatórias e um poder de agir de ofício sobre o conteúdo da propaganda à revelia do Poder Legislativo.
A diferença entre o remédio e o veneno está justamente na dose. Sistemas autoritários também se instalam quando poderes constituídos deixam de observar a legalidade e tomam para si o papel de salvadores da pátria, à revelia da própria Constituição que os legitima.
Se há um cenário em que inevitavelmente, pelas questões aqui brevemente apontadas, dentre outras, fizeram com que o TSE acabasse se tornando um ator proeminente na corrida eleitoral e no combate à desinformação, isso não lhe confere, tampouco autoriza, tamanho poder.
Sobre isso, ainda, cabe chamar à reflexão todos os players envolvidos nesse contexto, com destaque para os então candidatos à Presidência da República, apoiadores e equipes que trabalham em prol de suas campanhas, os quais de diferentes formas acabam incitando a judicialização da disputa pelas estratégias da qual se valem e que fomentam igualmente o fenômeno da desinformação.
Por fim, respondendo à pergunta que me guiou nestas reflexões, não cabe outra conclusão senão de que medidas de combate à desinformação, quando tomadas, portanto, em observância às regras legais, não são, absolutamente, atos de censura. De resto, se está no campo da falsa apologia e de uma narrativa construída sem fundamento e que deve ser confrontada.
[1] Vide art. 45 IV
[2] Vide art. 9º e 9º-A
[3] Vide os arts. 57-D §3º e 57-I também da Lei 9.504/97
[4] Vide o art. 56 da também da Lei 9.504/97
[5] https://www1.folha.uol.com.br/fol/geral/ult021098214.htm
[6] “Nessa lógica, como última medida para coibir os excessos, a legislação eleitoral autoriza a ‘suspensão, por vinte e quatro horas, da programação normal da emissora que deixar de cumprir as disposições da desta Lei sobre propaganda’ o que ocorrerá no caso de recalcitrância dos Reclamados. […] JULGO PARCIALMENTE PROCEDENTES as Representações […] por propaganda eleitoral irregular, com aplicação de multa no valor de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais), a cada um dos Representados, nos termos do art. 43, 3º, da Res.-TSE 23.610/2019, advertido que a reiteração da conduta importará nos efeitos do art. 56 da Lei 9.504/1997 […] Reclamação 0601099-78.2022.8.24.0064 – TSE