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11/07/2023Por Fernando Neisser e Paula Bernardelli
Se a autorização da família permite que se use tecnologia para fazer Elis Regina, 41 anos após sua morte, aparecer numa propaganda para celebrar o aniversário de uma marca de carros, poderia, sob as mesmas condições, Getúlio Vargas debater com Brizola apoios políticos nas propagandas eleitorais?
Para pensar no tema, vale voltar ao começo. Em 1991, a Coca-Cola lançou uma propaganda na qual Elton John cantava para uma sala cheia de pessoas, entre elas Humphrey Bogart, Louis Armstrong, Cary Grant e Groucho Marx, cujos falecimentos ocorreram, respectivamente, em 1957, 1971, 1986 e 1977.
Depois disso, muitas celebridades foram trazidas à vida em propagandas icônicas. A Dior em 2011 trouxe Marilyn Monroe, que em vida foi garota propaganda da concorrente Chanel, o que já causou algum debate.
A discussão dos limites éticos na publicidade do que a revista Time chamou de “Necromancia Digital” (leia aqui, em inglês) ganhou força em 2013, quando a Johnnie Walker apresentou um comercial de whisky estrelado por Bruce Lee, então falecido há 40 anos e declaradamente abstêmio.
No cinema, apesar dos debates, o recurso é utilizado há muito tempo (no filme Gladiador, a morte do ator Oliver Reed em 1999, durante as filmagens, fez a produção escolher essa técnica para finalizar a obra). Produções que fizeram uso dessas ferramentas para trazer aos filmes atores e atrizes consagradas e já falecidas foram premiadas por seus efeitos visuais (como é o caso do Gladiador mesmo, que ganhou Oscar nessa categoria).
Os exemplos são diversos, e o fato é que o uso dessas tecnologias na publicidade e em produções artísticas também levanta questionamentos éticos mais profundos e difíceis do que a mera questão econômica, que vão desde uma certa morbidez de “ressuscitar” uma celebridade, até a possibilidade de redução de sua subjetividade como artista meramente à sua imagem.
Colocar uma personalidade morta promovendo um produto ou uma ideia que parece contrariar suas escolhas feitas em vida, ou mesmo que não fizeram parte de suas escolhas de forma alguma, levanta o debate sobre a possibilidade de que herdeiros não apenas administrem um direito personalíssimo de um falecido (a imagem), mas passem de alguma forma a exercer esse direito como próprio, podendo fazer escolhas que ultrapassam o uso de registros e chegam na construção de uma nova persona pública, comprometida com questões que sequer se apresentaram para a pessoa em vida.
A complexidade desse debate esbarra em um ponto que é extremamente importante para pensar o uso dessas tecnologias na política, mais especificamente no jogo eleitoral: a autenticidade.
A autenticidade de um artista, de uma opinião, de uma estratégia de convencimento, da formação de vontade, do voto e da democracia. Garantir a autenticidade daquilo que coletivamente desejamos que seja autêntico exige refletir e regular elementos que podem ser aniquiladores dessa característica.
Na arte, o debate é antigo (Walter Benjamin, por exemplo, fala da influência da tecnologia na arte desde anos 30) e ainda sem conclusões definitivas.
Nas eleições, no entanto, o debate ainda se dá sobre o uso desses mecanismos em questões mais objetivas, como o necessário combate à desinformação e, algumas vezes, apresentando soluções legislativas simplórias, como a limitação do uso de computação gráfica ou questionáveis ou a vedação de criar no eleitor estados passionais.
Se a tecnologia envolvida na construção de deepfakes é cada vez mais simples e acessível e, por isso, abre espaço para contornar a proibição legal de computação gráfica, também a visão da política e do jogo eleitoral como um espaço puramente racional, do qual a arte, a paixão e a emoção devem ficar de fora para que não confundam o eleitor, parece ser uma premissa, ela sim, confusa, que demanda mais debate.
A questão das deepfakes e seu uso na propaganda eleitoral precisa abordar, então, a autenticidade e a legitimidade de um espaço de debate que busca o convencimento do eleitor.
A autenticidade é um elemento essencial e conformador da legitimidade democrática, por essa linha, o uso de tecnologia para trazer aos eleitores pessoas falecidas declarando apoios, seja com o objetivo de desinformar, convencer ou emocionar, com autorização da família ou não, parece encontrar nesse ponto um obstáculo intransponível.
Se há um debate sobre o quanto da autenticidade se pode abrir mão para que a arte siga sendo arte, na construção democrática há uma busca permanente pela máxima preservação da autenticidade na construção do debate.
Assim, embora uma maior liberdade nas propagandas eleitorais siga sendo um objetivo a ser alcançado, o uso de deepfakes na propaganda eleitoral e partidária, com qualquer finalidade, parece ser um elemento nocivo, que deve ficar de fora até que exista uma regulação muito bem discutida sobre essas tecnologias e o limite de seu uso —ou até que a tecnologia revolucione por completo nossa noção social de autenticidade e individualidade, o que vier primeiro.