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04/12/2025Por Maíra Recchia
Nos últimos dias uma vereadora do Rio Grande do Sul acusou de violência política de gênero um secretário de Saúde de um município. Ao se socorrer do Judiciário, teve sua cautelar de afastamento do agressor deferida. Contudo, um detalhe chamou a atenção: a vereadora não poderia, ela, comparecer aos eventos da Secretaria de Saúde.
A decisão judicial que, ao mesmo tempo reconheceu a existência de violência política de gênero e deferiu medidas cautelares de afastamento, impôs à vítima a obrigação de não comparecer aos locais onde o autor do fato estivesse presente em razão de sua função como secretário, revelou também uma distorção preocupante: a responsabilização da mulher pela violência que sofreu.
Com o devido respeito, trata-se de uma inversão de valores que, longe de oferecer proteção, transforma a vítima em alvo de restrições, limita a atuação parlamentar para a qual foi eleita, cuja finalidade é a fiscalização do Poder Executivo, cerceia seus direitos civis e, com isso, violenta com o aparato estatal aquela que buscou proteção.
Essa lógica infelizmente não é nova
Ela dialoga com práticas históricas que buscavam, de forma sofisticada ou explícita, legitimar (e perpetuar) a violência masculina. Um exemplo típico e emblemático foi a chamada “legítima defesa da honra”, tese utilizada e permitida por décadas para absolver homens que matavam suas companheiras.
Tal argumento só foi definitivamente repelido pelo Supremo Tribunal Federal em 2021, não porque fosse juridicamente absurdo desde o início — o que sempre foi —, mas porque se reconheceu, tardiamente, que a tese produzia revitimização, perpetuando a violência contra a mulher até depois de sua morte. Era a institucionalização de uma cultura que culpabilizava a vítima e romantizava a agressão como ato justificável.
A decisão que impede a vítima de frequentar espaços públicos segue essa mesma trilha simbólica: desloca para a mulher o ônus da violência sofrida. Ela deve se afastar, ela deve se recolher, ela deve se limitar — enquanto o agressor permanece no exercício pleno de suas funções. A Justiça, nesse movimento, deixa de ser instrumento de proteção e transforma-se em agente produtor de nova camada de violência, agora com chancela estatal.
Esse raciocínio também se aproxima de outro fenômeno crescente: decisões judiciais que proíbem mulheres de falar publicamente sobre as violências que sofreram, sob pena de multa. A justificativa costuma ser a “proteção da honra” do agressor em detrimento à liberdade de expressão da vítima em contar a sua própria história (com todos os possíveis reflexos pelo abuso, inclusive de responder criminalmente pelos excessos). O efeito é perverso: impede a denúncia, restringe a liberdade de expressão, opera a censura prévia e confina a mulher ao silêncio, reforçando a mesma estrutura que historicamente permitiu que agressões fossem invisibilizadas.
Embora o Brasil possua ampla legislação protetiva — Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), Lei 14.192/2021 (violência política de gênero), Lei do Feminicídio (13.104/2015), além de tratados internacionais como a Convenção de Belém do Pará, a Cedsaw e o Pacto de San José da Costa Rica — sua aplicação continua marcada por vieses estruturais. Quando a balança da justiça recai sobre mulheres, o peso de seus direitos parece mais leve; quando recai sobre homens, especialmente ocupantes de posições de poder, o peso da proteção estatal se intensifica.
Esse descompasso revela que, apesar dos avanços normativos, a prática judicial ainda carrega resquícios de uma cultura que naturaliza a desigualdade de gênero. Quando uma decisão restringe a vítima, silencia sua voz ou limita sua atuação enquanto protege — direta ou indiretamente — o agressor, ou ainda valora com mais ênfase princípios jurídicos que se amoldam às teses masculinas estamos diante de violência institucional, violência processual e quiçá revitimização com apoio estatal.
Reconhecer a existência desses mecanismos é fundamental para superá-los. O Estado não pode ser agente de reprodução da violência que se propõe a combater. Enquanto decisões judiciais ainda impuserem às mulheres o preço da agressão que sofreram, a promessa de igualdade material permanecerá incompleta — e a justiça continuará pendendo, perigosamente, para o lado historicamente opressor da nossa existência.




