Neomar Filho comenta sobre as principais infrações de candidatos, para A Tarde
27/08/2024Elder Goltzman comenta a postura das big techs e a desinformação nas eleições, para o R7
03/09/2024Oito vereadores de Fortaleza mudaram declaração de raça para eleição de 2024
Especialistas entrevistadas pelo Diário do Nordeste apontam que a alteração não é necessariamente negativa, mas que é preciso estar atento para eventuais irregularidades
Entre os vereadores de Fortaleza que tentam a reeleição para o cargo em 2024, oito registraram candidatura no Tribunal Superior Eleitoral com mudança na declaração de raça em relação à última eleição em que concorreram. Destes, dois pediram a retificação da declaração à Justiça Eleitoral ainda neste mês de agosto.
A mudança na autodeclaração étnico-racial não é algo exclusivo da disputa eleitoral em Fortaleza. Em todo o País, cerca de 40 mil candidatos mudaram, em 2024, a declaração racial feita na candidatura de 2020, segundo dados da Justiça Eleitoral após o último dia de prazo para registro de candidaturas, no dia 16 de agosto.
Especialistas ouvidas pelo PontoPoder ressaltam que a mudança da autodeclaração racial não deve ser encarada por um viés negativo, apesar de ser necessária atenção, principalmente pela exigência legal de destinação de recursos públicos para candidaturas negras. Advogada especialista em Direito Eleitoral, Isabel Mota pontua que, desde a eleição de 2020, candidatos e candidatas passaram a ter “mais responsabilidade nas informações que apresentam para fins de registro de candidaturas”.
O marco temporal citado por Mota, que também é membro fundadora da Academia Brasileira de Direito Eleitoral (Abradep), faz referência à decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que determinou a aplicação, desde as eleições de 2020, de ação afirmativa voltada à candidaturas negras. A medida, definida pelo Tribunal Superior Eleitoral, obrigou partidos a investirem recursos de forma proporcional em candidatas e candidatos negros.
“A priori, tem essa questão que eu acho positiva: as pessoas estarem tendo mais cuidado com a sua declaração étnico-racial, entendendo que vai ter um controle, vai ter um filtro disso. (…) Um filtro que é social, que quando a pessoa se declara de forma diferente, de uma eleição para outra, e a imprensa descobre, ela vai ter um tipo de exposição em que vai ter que se explicar, vai ter que se justificar”.
A advogada eleitoral Valéria Paes Landim, membro da Abradep e doutoranda em Direito Constitucional, reforça que, em muitos casos, essa mudança na autoidentificação racial passa por um reconhecimento ‘devido a vários fatores, como o contexto de mudança social, as experiências pessoais daquela pessoa que passa a se reconhecer com aquela identidade racial, a questão da própria consciência política e o ambiente que essa pessoa está inserida”, argumenta.
Por outro lado, a exigência de investimento de recursos públicos em candidaturas negras também traz consigo a necessidade de atenção e fiscalização sobre alterações nestas declarações. “Se houver indício de que essa mudança foi feita de uma forma oportunista, apenas para ter vantagem política e econômica, isso pode ser levado a questionamento”, afirma Paes Landim.
Mudanças na autodeclaração
Em Fortaleza, o vereador Fábio Rubens (PDT) alterou a autodeclaração de “branco” para “pardo”, enquanto Cláudia Gomes (PSDB), Inspetor Alberto (PL) e Paulo Martins (PDT) fizeram o movimento contrário — passando de “pardo” para “branco”.
No caso de Ronivaldo Maia (PSD) e Veríssimo Freitas (Republicanos), a mudança foi de “pardo” para “preto” — segundo a categorização brasileira quanto à raça, pardos e pretos integram a população negra brasileira. No caso de Ronivaldo Maia, essa é a segunda mudança na autodeclaração racial. Na eleição de 2016, o vereador declarou ser “branco”.
Os vereadores Eudes Bringel (PSD) e Kátia Rodrigues (PDT) também haviam modificado a declaração de raça no registro de candidatura — apresentado à Justiça Eleitoral até o último dia 16 de agosto. Os dois, no entanto, pediram correção na declaração e retornaram para a autodeclaração racial feita em 2020 — “branco” no caso de Bringel e “parda” no caso de Katia Rodrigues.
Bringel justificou que houve um “erro do partido” no momento do registro, por isso a necessidade de retificação. O PontoPoder acionou a assessoria de imprensa de Katia Rodrigues sobre o motivo para a mudança na autodeclaração no último dia 20 de agosto. Não houve resposta, mas na mesma data a candidata apresentou o pedido de retificação da declaração étnico-racial.
Entendimento racial
A mudança na autoidentificação racial foi sinalizada como um processo de maior entendimento racial pelos vereadores entrevistados pelo PontoPoder. Paulo Martins disse que a alteração — de pardo para branco — foi feita para “retificar um erro cometido nas minhas duas candidaturas anteriores”.
“Erro esse que considero comum num país miscigenado e com pouca consciência racial. Mas depois de dois mandatos, vivenciando políticas públicas na prática e conversando com quem entende do assunto, a gente vai aprendendo. Então, diante dos conceitos e critérios atuais, fiz a alteração me declarando como branco, sem nenhum interesse além da transparência”, explica.
Inspetor Alberto faz relato semelhante. Segundo ele, a primeira candidatura foi registrada pelo então partido, o Pros, com a identificação racial dele como pardo. “Eu não me ligo para essas coisas. Pra mim, não tem preto, branco, pardo, é tudo uma cor só”, disse.
PontoPoder
Como a campanha para prefeitura impacta na disputa para as vagas de vereador
“Quando fui analisar mais, estudar, eu vi que sou branco mesmo, me entendo como branco, a minha família é toda branca. Eu não tenho nada de complexo, não tenho interesse em ganhar vantagem”, complementa.
A matriz familiar também é citada pelo vereador Veríssimo Freitas ao falar sobre a mudança — de pardo para preto. “Sempre me vi como homem negro. Meu avô é negro, minha mãe é negra. Pelas minhas raízes periféricas, pela cor da minha pele, por tudo que acredito, pela bandeira que levanto contra o racismo”, explica.
Segundo ele, a eleição em 2020 foi a primeira vez em que ele se candidatou. “Não tinha aparato nem apoio de ninguém. Não tinha assessoria, ninguém que entendesse de política, foi um pedido da comunidade. (…) Foi falta de preparo mesmo. Não me atentei para esse detalhe tão importante”, diz.
Os demais vereadores de Fortaleza que fizeram mudança na declaração de raça/cor foram contatados diretamente ou por meio de assessoria pelo PontoPoder. Se houver novas respostas, a reportagem será atualizada.
Olhar mais atento ao debate racial
Esse debate sobre a mudança na autodeclaração étnico-racial não é recente, enfatiza Isabel Mota. A possibilidade de autoidentificação racial está presente no formulário da Justiça Eleitoral para registro de candidatura e, embora continue a não ser obrigatório, permite um retrato mais fiel de qual o perfil das candidaturas no País.
“É um julgamento muito precipitado achar que alguém que antes identificava como uma pessoa branca e agora aparece como uma pessoa preta ou parda ser por uma questão de querer auferir algum benefício”, argumenta Mota. Para a pesquisadora, as novas regras sobre o financiamento de candidaturas de pessoas negras — aplicadas desde as eleições de 2020 — permitiram uma maior atenção a esse debate racial no contexto eleitoral.
Ela reforça que o “carimbo de recursos para candidaturas pretas e pardas” resultou em uma necessidade de “zelo maior” pela forma de preenchimento dos requerimentos de registro de candidatura (RCC) — documentos que, muitas vezes, são de responsabilidade dos partidos políticos e não de candidatos e candidatas.
A advogada argumenta inclusive que é necessário um olhar mais atento exatamente para as siglas e federações partidárias. “A análise vale muito mais em relação aos partidos do que até aos candidatos que estão aprendendo a conviver com essa realidade, de ter uma responsabilidade maior por aquilo que declaram perante a Justiça Eleitoral”, afirma.
PEC da Anistia: por que os partidos são ‘perdoados’ após descumprirem regras eleitorais?
Um dos riscos, afirma Valéria Paes Landim, é de que os partidos sintam-se “despressionados ou confortáveis de não investir em candidaturas pretas nessas eleições”. O motivo é a Proposta de Emenda à Constituição 9/2023, aprovada pelo Congresso Nacional. Nela, legendas partidárias são anistiadas caso não tenham cumprido o percentual de destinação de recursos para candidatos e candidatas negras nas últimas eleições.
A única condição imposta é de que esses valores sejam reinvestidos em um prazo de 4 eleições — ou seja, até a disputa eleitoral de 2038.
“A partir do momento que você tem um desincentivo e o perdão a essas infrações, se está desestimulando (a aplicação de recursos). Qual é o raciocínio de um dirigente partidário que trabalhou para a aprovação de uma PEC dessa? Ele está dizendo: ‘olha, se no passado eu apliquei errado essa verba que era para ser aplicada como forma de incentivo, para essas eleições, que nós já estamos em pleno curso da campanha também não faz muita diferença se a gente não aplicar’. Isso revela um descompromisso institucional com a pauta dos afrodescendentes em campanhas eleitorais, na ocupação de mandatos e em candidaturas”.
Isabel Mota também atenta para a fiscalização na aplicação dos recursos para candidaturas negras, quando os partidos destinarem esses valores a candidatos e candidatas. Ela pontua, por exemplo, o risco de um investimento acabar sendo triangulado e acabar, na prática, sendo usado para beneficiar a candidatura de uma pessoa branca. “De repente, às vezes a pessoa não fez um o volume de campanha, não contratou uma militância, não fez nada e recebe tipo um valor incompatível com a campanha que ela está realizando, já é um indício”, exemplifica.
Ela defende, portanto, que haja uma investigação do Tribunal Superior Eleitoral — assim como dos tribunais eleitorais regionais — sobre o assunto, à semelhança do que ocorre com o cumprimento da cota de gênero.
Ceará
População autodeclarada preta, parda e indígena aumenta no Ceará, mostra Censo 2022
Mota cita que a prestação de contas é uma ferramenta para perceber possíveis indícios e que permita o aprofundamento da apuração de eventuais irregularidades por meio de ações eleitorais com base, por exemplo, no artigo 30-A, da Lei das Eleições, que trata de captação irregular de recursos. “O filtro vai se aprimorar na medida em que os casos aparecerem, porque se os casos não aparecerem, se o Tribunal deixar de se preocupar com isso, se a Justiça Eleitoral deixar de se preocupar com isso, é uma coisa que vai ser letra morta”, pontua.
“Primeiro de tudo, eu tenho que dar o benefício da dúvida para essa pessoa. Branca, preta ou parda, amarela ou quilombola. Eu tenho que dar o benefício da dúvida para entender qual foi o contexto (da mudança na declaração étnico-racial. (…) O Tribunal tem direito de fazer esse tipo de investigação? Sim. E, na verdade, a gente só vai pegar a destinação fraudulenta — do mesmo jeito que em relação à fraude a conta de gênero, do mesmo jeito que em relação a qualquer outra forma de fraude — se a gente investigar”.
Paes Landim concorda e ressalta que é necessário investigar exatamente para entender se aquela mudança na declaração foi feita de forma “oportunista”, o que ela descreve como uma forma de “afroconveniência”. “É aquela circunstância em que eu vou usar na minha condição da cor, da minha condição de raça somente quando aquilo me for vantajoso. Quando não me é vantajoso, eu não assumo a minha posição de cor nem de raça”, diz.
Ela também faz uma comparação direta com as fraudes à cota de gênero. “São dois tipos de fraudes, que têm dois objetos distintos, mas que na verdade, o objetivo é só um: se valer desses dois grupos para poder beneficiar um grupo privilegiado. E que não tem interesse de deixar esses dois grupos chegarem para não desestabilizar o que historicamente sempre foi deles”, critica.
Por isso, completa Mota, a necessidade de fazer “uma maior e mais efetiva fiscalização para que a política afirmativa de destinação de recursos realmente alcance a representatividade não seja só para aumentar o número de candidaturas declaradamente pretas e pardas, mas sim que essa se torne também mandatos”.