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28/06/2023Por Raquel Cavalcanti Ramos Machado
Segundo o princípio da normalidade, uma eleição deve der pautada por um conjunto encadeado de atos regulares, permeados pelo debate de ideias e informações.
As eleições do ano de 2022 fugiram da normalidade do processo eleitoral. Como em nenhum outro momento após a criação da Justiça Eleitoral, a suspeita sobre a validade do resultado das eleições presidenciais foi pauta. O sistema de votação foi atacado e a Justiça Eleitoral foi desprestigiada. A anormalidade foi ainda mais grave porque a temática da suspeita foi plantada pelo Chefe de Estado e de Governo no exercício de suas atribuições, com base em dados inverídicos, num contexto em que se sabia que ele poderia não ser reeleito.
Uma democracia é marcada não apenas por eleições, mas por eleições íntegras, com preservação da normalidade e da legitimidade. Exatamente por isso, a normalidade e a legitimidade são consideradas princípios da mais alta relevância para o Direito Eleitoral, referidos no texto constitucional (art. 14, § 9º da CF/88).
Tais princípios, muitas vezes, são utilizados de forma conjunta e confusa, como se tivessem uma carga valorativa semelhante. O caso que está para ser julgado pelo TSE, relacionado à Ação de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE) proposta pelo PDT em face do ex-presidente Jair Bolsonaro, é uma boa oportunidade para deixar clara a diferença entre ambos.
Segundo o princípio da normalidade, uma eleição deve der pautada por um conjunto encadeado de atos regulares, permeados pelo debate de ideias e informações, que leva ao momento do voto, através da livre escolha do eleitor. Seu elemento central é a regularidade do encadeamento dos atos.
Relaciona-se com o devido processo legal eleitoral. Já o princípio da legitimidade busca assegurar que o processo eleitoral se desenvolva de forma válida, com armas adequadas, de modo que o resultado seja aceito livremente, não apenas pelo eleitor, mas pela sociedade. O ponto forte é a aceitação do resultado pela validade das armas empregadas. Assim, para assegurar tanto a normalidade como a legitimidade, a Justiça Eleitoral combate o abuso de poder nas eleições.
Voltando ao ponto inicial, não é normal em uma eleição presidencial que o próprio presidente em exercício utilize de seus espaços institucionais para atacar o sistema que pode elegê-lo. Também não é normal que os Poderes da República responsáveis pelo funcionamento desse sistema sejam desacreditados, ainda mais perante a comunidade internacional, envergonhando o próprio país, quando as questões poderiam ser enfrentadas dentro de debates institucionais e nos limites da razoabilidade.
A falta de normalidade se agrava pelo fato de que, paralelamente, as Forças Armadas estavam acompanhando o procedimento de fiscalização das urnas eletrônicas, num processo de ampla abertura das eleições pela Justiça Eleitoral, através da Comissão de Transparência das Eleições[1]. Agrava-se também diante de acusações que desprezavam todo o esforço concreto realizado pela Justiça Eleitoral de afastar alegações de falta de transparência e confiança no processo eleitoral.
Apenas para que se rememore esse empenho da Justiça Eleitoral, foram instituídos pelo Tribunal Superior Eleitoral: o Programa de Fortalecimento Institucional a partir da Gestão da Imagem da Justiça Eleitoral[2], o Programa Permanente de Enfrentamento à Desinformação (PPED), a Comissão de Transparência das Eleições (CTE) e o Observatório de Transparência das Eleições (OTE)[3].
A reunião do presidente com os embaixadores foi de extrema gravidade, não apenas pela confusão desinformativa que trouxe, mas pela instabilidade institucional, no cenário interno e externo. E ela foi apenas um dos atos num amplo contexto de ataques. Para o cidadão comum, que não tem conhecimento técnico sobre o papel desempenhado por cada uma das instituições, a fala do chefe da nação de que o sistema eleitoral não é confiável propagou não apenas descrédito, mas medo e angústia, num cenário propício para o aumento da violência política, como, aliás, também se verificou (em 400%[4]). Tratou-se de uma deseducação à cidadania da mais alta gravidade, num movimento oposto ao preconizado pelo art. 205 da CF/88.
A falta de normalidade só não foi maior devido à atuação da Justiça Eleitoral de tentar impedir a propagação de falas e atitudes do gênero ao longo do processo eleitoral. Mesmo assim, dado o poder das redes sociais e dos aplicativos de mensagem para disseminar todo tipo de informação, o dano já tinha sido causado.
A política é feita de palavras e ações. As palavras são o pavio que incendeia e motiva almas e, portanto, são armas importantes perante o eleitor na decisão do voto e do agir cívico. Aquele que usa as palavras para fazer com que os cidadãos de um país se voltem contra suas próprias instituições, gerando um cenário de instabilidade, não pode permanecer com o direito de acesso a cargos eletivos, sendo justa e proporcional sua inelegibilidade.
Referências
[1] https://www.gov.br/defesa/pt-br/acesso-a-informacao/outros/atuacao-das-forcas-armadas-em-apoio-ao-tse-no-aprimoramento-da-seguranca-e-transparencia-do-processo-eleitoral
[2] Alvim, Frederico Franco. Profi : Programa de Fortalecimento Institucional a partir da Gestão da Imagem da Justiça Eleitoral / Frederico Franco Alvim. – Dados eletrônicos (54 páginas). – Brasília : Tribunal Superior Eleitoral, 2022. Disponível em https://www.tse.jus.br/hotsites/catalogo-publicacoes/pdf/profi/tse-profi.pdf
[3] Portaria TSE nº 578/2021, https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2021/Setembro/tse-cria-comissao-para-ampliar-fiscalizacao-e-transparencia-do-processo-eleitoral
[4] TERRA DE DIREITOS. Violência política e eleitoral no Brasil: Panorama das violações de direitos humanos entre 2 de setembro de 2020 e 2 de outubro de 2022. Disponível em: https://terradedireitos.org.br/violencia-politica-e-eleitoral-no-brasil/