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Decisão de Moraes deve servir de ponto inicial para esse urgente debate
Os últimos dias do debate público brasileiro foram marcados pela repercussão da judicialização irresponsável e abusiva da coligação eleitoral derrotada do presidente Jair Bolsonaro, liderada por Valdemar Costa Neto — presidente do Partido Liberal —, contra a integridade do processo eleitoral de 2022, por supostas falhas técnicas de urnas eletrônicas antigas que teriam o maculado. A tônica da representação extraordinária da coligação de Bolsonaro em oposição ao vício alegado, no entanto, foi apenas contra o segundo turno da eleição presidencial.
O ministro Alexandre de Moraes reconheceu imediatamente a inconsistência do pedido e determinou o aditamento da inicial para abranger também o primeiro turno e os pleitos para outros cargos. Como não foi cumprida essa exigência e também pela inexistência de indícios de irregularidades, o ministro corretamente decidiu pela inépcia da inicial e condenou a chapa por litigância de má-fé, por ser ostensivamente contra o Estado democrático de Direito. Ainda impôs uma multa de R$ 22,9 milhões à coligação e bloqueou o fundo partidário dos partidos pertencentes a ela. Esse quadro nos leva a questionar se pode um partido financiado por recursos públicos agir deliberadamente contra a democracia.
A contestação leviana e falsa contra as urnas eletrônicas e o sistema eleitoral, pelo inconformismo com o resultado legítimo das eleições atestado pelo Tribunal Superior Eleitoral, foi apenas o episódio ápice de uma sequência de ataques ocorridos nos últimos anos pelo presidente e seus apoiadores. Em diversas oportunidades desde 2019, Bolsonaro e representantes do seu governo argumentaram falsamente que, se não tivessem ocorrido fraudes no pleito de 2018, ele teria sido eleito em primeiro turno.
As Forças Armadas, por meio do Ministério da Defesa, inclusive, participaram de uma sucessão de eventos questionando as urnas, até recentemente quando produziram um relatório que não descartava a possibilidade de fraude, embora não tenham apontado nenhuma. Soma-se a isso o apoio, mesmo que tácito, a grupos que, contestando o resultado das urnas, bloquearam ruas e estradas públicas pelo país nas últimas semanas pedindo “intervenção militar” — isto é, golpe de Estado.
É nesse contexto de ameaça à democracia que se insere a decisão de Alexandre de Moraes impondo uma multa milionária à coligação partidária de Bolsonaro. Essa conjuntura atual no Brasil nos impõe a reflexão de se partidos políticos podem atentar contra a democracia sendo bancados por financiamento público: fundo eleitoral e fundo partidário. A doutrina da democracia militante, que tem suas origens no período entreguerras pelo jurista alemão Karl Loewenstein, oferece uma resposta eloquente para essa dúvida: um contundente não! Por essa teoria, o regime democrático deve adotar mecanismos de autodefesa contra aqueles grupos e agentes autoritários que querem destruí-la.
Essa forma de interpretação encontrou vigorosa ressonância junto ao constituinte alemão da Lei Fundamental de Bonn, que equipou a nascente constituição com os mecanismos jurídicos necessários para a proteção da ordem constitucional contra partidos extremistas. Na sua redação original, previa o art. 21 inciso 2 mecanismo de proibição partidária. O mencionado artigo visa proteger dois bens jurídicos, a saber: a ordem fundamental livre e democrática (freiheitlich-demokratischen Grundordnung) e a existência da República Federal da Alemanha (Bestand der Bundesrepublik Deutschland).
O primeiro bem jurídico protegido diz respeito a ordem normativa interna da sociedade alemã (eleições livres, sistema multipartidário, direitos fundamentais etc.) ao passo que o segundo se refere à existência da República Federal da Alemanha enquanto sujeito de direito internacional público. Partidos que, pelos seus objetivos ou pelas atitudes dos seus adeptos, tentarem prejudicar ou eliminar um dois bens jurídicos mencionados podem ter seu funcionamento desautorizado pela corte constitucional alemã, o Bundesverfassungsgericht. As primeiras práticas de banimento partidário remontam sobretudo à década de 1950, com a proibição do Partido Socialista do Reich (1952) e do Partido Comunista Alemão (1956). O Bundesverfassungsgericht ressaltou em sua jurisprudência que a proibição partidária deveria ser sempre concebida como ultima ratio, uma vez que o mecanismo afeta diametralmente os direitos políticos dos cidadãos e só deve ser utilizado quando os bens jurídicos sejam efetivamente ameaçados.
Como parte do desenvolvimento de sua jurisprudência, o Bundesverfassungsgericht entendeu no ano de 2017 (BVerfGE 144, 20 – 367) que o art. 21 permitiria a introdução de um novo mecanismo de proteção: a exclusão do partido do sistema de financiamento público. Isso ensejou um intenso debate junto ao Legislativo e a consequente reforma do referido artigo com a introdução de um novo inciso, o de número 3.
A exclusão de um partido político do sistema de financiamento público homenageia o princípio da proporcionalidade, na medida em que prevê uma sanção não tão gravosa a partidos políticos que adotem posições que prejudiquem a ordem fundamental livre e democrática ou a existência da República Federal da Alemanha. Isso implica que somente o posicionamento ideológico e a movimentação no sentido de prejudicar as instituições democráticas ou a soberania da República Federal da Alemanha já é suficiente para o sancionamento do partido. De forma resumida, a ação orquestrada entre Parlamento e Corte Constitucional decretava: nada de financiamento público para os autoritários!
Os mecanismos constitucionais mencionados são únicos. A Constituição brasileira não prevê algo semelhante. Isso não significa que tais mecanismos não podem ser debatidos e construídos por meio de um debate institucional entre os Poderes. O art. 17 da Constituição e o art. 1º da Lei dos Partidos Políticos já afirmam a relação intrínseca entre organização partidária e defesa do regime democrático e, sob a perspectiva do princípio republicano, não é possível conceber que um partido se valha de financiamento público para promover a corrosão das instituições democráticas. A democracia brasileira sobreviveu, a duras penas, ao período de intenso estresse institucional que marcou o (des-)governo de Jair Bolsonaro. Como forma de evitar situações semelhantes, urge um debate sobre a adoção de medidas práticas animadas pelo espírito da democracia militante. A decisão de Alexandre de Moraes deve ser, portanto, saudada — e que sirva de ponto inicial para esse urgente debate.