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03/05/2023Por Raquel Cavalcanti Ramos Machado e Lígia Vieira de Sá e Lopes
As mulheres ingressaram na política a muito custo e ainda carregam o peso do passado, trilhando, portanto, estruturas sociais que lhes impediram o pleno caminhar e dificultam, até hoje, a entrada em espaços ocupados há muito pelo gênero masculino, pois até a edição do Código Eleitoral de 1932 eram consideradas cidadãs passivas [1], sem capacidade plena do exercício de cidadania.
Apesar do reconhecimento universal da igualdade material, as tímidas tentativas feitas para a promoção da mulher na política são marcadas por retrocessos simultâneos, numa prova constante de que a dinâmica é injusta e desigual, com contínuas investidas de “backlash” [2], na qual se entrega um direito, mas logo na sequência, se o subtrai de forma agressiva.
Na política brasileira, basta olhar o descompasso da dança: assegura-se o direito de se candidatar, mas não são garantidos recursos de materialização, então criam-se cotas de candidaturas, fraudam-se as cotas, asseguram-se verbas para financiamento, mas as verbas são desviadas, dá-se espaço de voz, mas o ambiente é tomado de violência política.
Como prova dessa teatralidade na concessão de direitos às mulheres, se identifica a edição da PEC 09/2023 [3], que pretende anistiar partidos pelo mau uso ou não uso de verbas no financiamento de candidaturas femininas, aniquilando o avanço, mesmo que parcial, realizado pela Emenda Constitucional 117/2022 [4], que através da alteração do artigo 17, §7º e §8º da Constituição, ampliou mecanismos de afirmação do espaço feminino nos corpos legislativos, apesar de ter anistiado os partidos das faltas pretéritas.
Somada a função de política pública dessas verbas, verifica-se que a partir do momento que as campanhas eleitorais passaram a ser custeadas pelo Financiamento Público, trouxeram imbuídas a necessidade de fiscalização e prestação de contas desses valores, que em regra são vultosos, tanto que “apenas no ano de 2022, a sociedade brasileira transferiu quase R$5 bilhões para o financiamento público das campanhas” [5].
Os valores do financiamento público são oriundos do contribuinte. Eles devem, portanto, ser usados para realizar as ambições constitucionais, na busca de uma sociedade justa, igual e solidária, não podendo tais princípios serem escanteados pela autonomia partidária, tampouco utilizados ao mero alvedrio dos partidos políticos.
A teoria mais uma vez destoa da prática, pois verifica-se empiricamente uma distribuição desigual e arbitrária pelos partidos. Com a EC 117, observa-se discreta melhora nos valores direcionados as candidaturas femininas, sobretudo do FEFC, conforme dados extraídos do TSE [6], de maneira que tornar sem efeito essa conquista, é desacreditar o poder cogente das políticas de afirmação. As estruturas partidárias existem para promover a democracia e não a vilipendiar.
O retrocesso trazido pela EC 09/2023, não pode ser encarado apenas do ponto de vista de um jogo político da aprovação de uma Emenda constrangedora à Constituição, pois vai muito além, atingindo a validade jurídica, ao violar o princípio da igualdade (da forma como entende a jurisprudência do STF e do TSE), com consequente violação ao princípio republicano.
A República é feita da rotatividade do poder e de situações jurídicas que lhe são consequentes, como: 1) a separação entre as verbas e os bens públicos e privados, com dever de uso dessas verbas e valores a fins de interesse público e legítimos, 2) o dever de prestação de contas de quem de alguma forma exerce o poder, 3) a responsabilização dos que desrespeitam as normas quanto às contas prestadas.
Os partidos são obrigados a utilizar as verbas do fundo especial de financiamento de campanha com a promoção da mulher na política, e a prestação de contas de como elas são utilizadas é um dever lógico que poderá implicar na sujeição de sanções caso não sejam empregadas devidamente.
O risco decorrente da aprovação da PEC 09/2023 é trazer significação vazia para relevante norma de promoção de igualdade material, tornando inócua toda a política desenvolvida em prol da concretização do uso das verbas de forma equilibrada entre os gêneros, pois “sem dinheiro destinado para esse fim, grupos ou maioria excluídos do processo eleitoral, no que toca ao exercício da capacidade eleitoral passiva, não conseguirão lograr êxito na ocupação dos espaços que lhe cabem” (Freitas, 2023).
Em outros termos, a obviedade anunciada pela proposta de emenda à Constituição é atentatória somente à política eleitoral construída em prol da transparência no uso das verbas do Fundo Partidário (FP) e Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) corroborando o mero jogo de encenação simbólica existente, evidenciando o desprezível descompromisso dos partidos políticos com a democracia interna e com a igualdade material.
A PEC, portanto, é antirrepublicana, consequentemente, inconstitucional, revelando o peso da imaturidade e irresponsabilidade de quem se recusa a assumir compromissos democráticos, em um passo grosseiro de descaso e retrocesso em relação à participação da mulher na política, a explicar, em parte, a crise de representação dos partidos políticos, que não hesitam em se afastar, na prática, dos valores democráticos contemporâneos.
Referências
BRANQUINHO, Raquel. A PEC 9/23 e seus reflexos sociais. Jota, São Paulo, 19 de abr. de 2023. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/campanhas-eleitorais-a-pec-09-2023-e-seus-reflexos-sociais-19042023. Acesso em: 20 de abr. de 2023.
BRASIL. Câmara dos Deputados. PROPOSTA DE EMENDA À CONSTITUIÇÃO N° 9/23. Altera a Emenda Constitucional nº 117, de 5 de abril de 2022, quanto à aplicação de sanções aos partidos que não preencheram a cota mínima de recursos ou que não destinaram os valores mínimos em razão de sexo e raça em eleições, bem como nas prestações de contas anuais e eleitorais. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2247263. Acesso em: 20 de abr. de 2023.
BRASIL. Câmara dos Deputados. EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 117, DE 5 DE ABRIL DE 2022. Altera o art. 17 da Constituição Federal para impor aos partidos políticos a aplicação de recursos do fundo partidário na promoção e difusão da participação política das mulheres, bem como a aplicação de recursos desse fundo e do Fundo Especial de Financiamento de Campanha e a divisão do tempo de propaganda gratuita no rádio e na televisão no percentual mínimo de 30% (trinta por cento) para candidaturas femininas. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Emendas/Emc/emc117.htm. Acesso em: 20 de abr. de 2023.
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. ESTATÍSTICAS DE ELEIÇÃO.
Disponível em: https://sig.tse.jus.br/ords/dwapr/r/seai/sig-prestacao-contas/cruzamento-de-dados-por-candidaturas-fefc?session=113030118530855. Acesso em: 20 de abr. de 2023.
MACHADO, Hugo de Brito. Introdução ao Estudo do Direito. 2.ed. SP: Atlas, 2004, p. 14.
MARMELSTEIN, George. Efeito Backlash da Jurisdição Constitucional: reações políticas ao ativismo judicial. Conselho de Justiça Federal, 2023. Disponível em: https://www.cjf.jus.br/caju/Efeito.Backlash.Jurisdicao.Constitucional_1.pdf. Acesso em: 20 de abr. de 2023.
MARQUES, Teresa Cristina de Novaes. O voto feminino no Brasil. 2ª ed. – Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2019
[1] Classificar os integrantes da cidade em cidadãos ativos e passivos era um procedimento típico da política francesa desde o final do século XVIII. Nele, mulheres (e também crianças, loucos e outros) eram cidadãs passivas — ou inativas, segundo o vocabulário jurídico brasileiro. Elas usufruíam de direitos civis — e por isso podiam receber herança —, mas não podiam exercer opinião sobre assuntos políticos.
[2] O backlash é uma reação adversa não-desejada à atuação judicial. Para ser mais preciso, é, literalmente, um contra-ataque político ao resultado de uma deliberação judicial. (Marmelstein,
[3] Art. 1º — A Emenda Constitucional n° 117, de 5 de abril de 2022 passa a vigorar com as seguintes alterações: “Art. 3º Não serão aplicadas sanções de qualquer natureza, inclusive de devolução e recolhimento de valores, multa ou suspensão do Fundo Partidário e do Fundo Especial de Financiamento de Campanha, aos partidos que não preencheram a cota mínima de recursos ou que não destinaram os valores mínimos em razão de sexo e raça nas eleições de 2022 e anteriores”. (NR)
[4] “§ 7º. Os partidos políticos devem aplicar no mínimo 5% (cinco por cento) dos recursos do fundo partidário na criação e na manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres, de acordo com os interesses intrapartidários. § 8º. O montante do Fundo Especial de Financiamento de Campanha e da parcela do fundo partidário destinada a campanhas eleitorais, bem como o tempo de propaganda gratuita no rádio e na televisão a ser distribuído pelos partidos às respectivas candidatas, deverão ser de no mínimo 30% (trinta por cento), proporcional ao número de candidatas, e a distribuição deverá ser realizada conforme critérios definidos pelos respectivos órgãos de direção e pelas normas estatutárias, considerados a autonomia e o interesse partidário.” (NR)