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Combater a fraude à cota de gênero é crucial para a representatividade feminina na política, mas até que ponto a ação afirmativa não estaria sendo usada para prejudicar adversários via Judiciário?
A construção de um sistema político-eleitoral mais justo e democrático não é possível sem a redução das desigualdades de gênero e raça na ocupação de cargos eletivos. Afinal, os espaços de poder devem guardar consonância com a diversidade existente em sua população.
A esse respeito, para solucionar o problema da sub-representação das mulheres na política surgiu à regra da cota de gênero prevista no art. 10, §3º, da lei 9.504/971 das eleições, a qual estabelece que cada partido ou coligação preencherá o mínimo de 30% e o máximo de 70% para candidaturas de cada sexo.
Nesse contexto, a fraude na cota de gênero ocorre quando há intenção clara, ordenada e premeditada de violar, em sentido amplo, o processo eleitoral, utilizando do lançamento de candidaturas fictícias, para simular o cumprimento do percentual mínimo de gênero e, assim, obter o deferimento do DRAP – Demonstrativo de Regularidade de Atos Partidários2.
O fenômeno das candidaturas “laranjas” (ou fictícias), portanto, viola a ação afirmativa direcionada precipuamente à promoção e difusão da participação feminina no cenário político nacional, que visa a consecução da isonomia de gênero, bem como a concretização do pluralismo político, fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1º, inciso V, da CF), traços marcantes de um verdadeiro Estado Democrático de Direito, que se alicerça na diversidade de representação.
O TSE, atento ao tema, editou a súmula 73, segundo a qual a fraude à cota de gênero ocorre quando constatada a presença de indícios como: (1) votação zerada ou inexpressiva; (2) prestação de contas zerada, padronizada ou ausência de movimentação financeira relevante; e (3) ausência de atos efetivos de campanhas, divulgação ou promoção da candidatura de terceiros. Tais indícios, todavia, devem ser analisados “quando os fatos e as circunstâncias do caso concreto assim permitirem concluir.”
Com o intuito, ainda, de desestimular a prática, o TSE consolidou o entendimento de que na hipótese de ser caracterizada a fraude na cota de gênero, deve ser cassado o diploma de todos os parlamentares eleitos pelo partido político naquela circunscrição, independentemente de prova da participação, ciência ou anuência deles, anulados os votos obtidos pela respectiva chapa proporcional e declarada a inelegibilidade daqueles que praticaram o ilícito ou com ele anuíram.
Não se pode olvidar que com a proibição das coligações nas eleições proporcionais, o cumprimento das cotas de gênero tornou-se ainda mais rigorosa. Atualmente, cada partido deve, individualmente, garantir que o percentual mínimo de 30% e máximo de 70% de candidaturas para cada gênero seja respeitado, sem a possibilidade de compensação dentro de uma coligação.
Com todo respeito às diferentes opiniões, observa-se, infelizmente, que, em alguns casos, a fraude à cota de gênero, vem sendo utilizada como instrumento para perseguir e prejudicar adversários por meio do Poder Judiciário.
Isso ocorre porque o enunciado 73 da súmula do TSE possui um grau de subjetividade que abre margem para a propositura de ações insubsistentes e irresponsáveis, baseadas na suposta prática de fraude à cota de gênero. Para ilustrar o anteriormente disposto, destacam-se dois requisitos da referida súmula que podem gerar interpretações ambíguas: votação zerada ou inexpressiva e prestação de contas zerada, padronizada ou ausência de movimentação financeira relevante.
Em primeiro lugar, a ausência de movimentação financeira relevante não pode ser interpretada como indicativo de fraude, mas sim como uma limitação enfrentada por todos os candidatos, sem distinção, que dependem apenas de recursos próprios ou de terceiros. Fato extremamente comum, principalmente em municípios pequenos.
Em 2018, o STF e o TSE estabeleceram que os partidos políticos e coligações devem destinar, no mínimo, 30% de todos os recursos tradicionais de campanha para as candidaturas femininas, tanto os provenientes de fundos públicos quanto os relativos ao tempo de rádio e TV. Nada obstante, essa determinação não garante uma distribuição igualitária dos recursos.
Na prática, poucas mulheres que já possuem algum tipo de capital político (recurso possuído que fornece poder e estabilidade, como, por exemplo, capital econômico, capital midiático, capital familiar, dentre outros), acabam recebendo a maior parte dos recursos, enquanto outras, muitas vezes sem esse apoio, recebem quantias mínimas ou nenhum recurso. Isso compromete o alcance e a visibilidade das candidaturas, resultando em uma votação inexpressiva para aquelas que não tem recursos suficientes para realizar uma campanha eleitoral efetiva, que demanda um alto custo de dinheiro.
Em segundo lugar, a inexistência de um enquadramento jurídico claro sobre o que constitui uma “obtenção inexpressiva de votos” permite que, dependendo de quem julga o processo, diferentes critérios possam ser adotados, o que geral uma interpretação subjetiva e variável.
O grande perigo da conduta irresponsável e maliciosa de desvirtuar o objetivo da fraude à cota de gênero é a propensão de deslegitimar e descredibilizar a luta das mulheres por mais espaços na política.
Vale relembrar, ainda, que o reconhecimento da prática a fraude à cota de gênero tem o gravíssimo potencial de resultar na cassação integral da chapa, prejudicando, inclusive, as mulheres que, efetivamente, concorreram ao pleito. Não seria o momento de o Judiciário repensar tal posição, punindo apenas aqueles que, de fato, praticaram a fraude ou dela se beneficiaram de forma direta?
E mais, é preciso ter em mente que o uso desvirtuado da fraude à cota de gênero pode gerar efeitos nefastos semelhantes à má utilização da lei Maria da Penha, cuja principal finalidade é proteger as mulheres. Como é amplamente conhecido, há denúncias falsas e caluniosas no âmbito dessa Lei que acabam prejudicando tanto as reais vítimas quanto os acusados injustamente.
Como se observa, apesar dos avanços na luta pelos direitos das mulheres na política, é fundamental reconhecer que ainda há um longo caminho a percorrer. A Justiça Eleitoral não pode chancelar ações judiciais que tenham como único objetivo deslegitimar o grupo político adversário, utilizando a alegada fraude à cota de gênero como pretexto para cassar diplomar e tornar inelegíveis os opositores. A busca por justiça não pode ser instrumentalizada para fins políticos, especialmente quando se trata de questões tão relevantes quanto a igualdade de gênero e a representatividade feminina na política.
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1 Popularmente conhecida como “Lei das Eleições”.
2 O Demonstrativo de Regularidade de Atos Partidários é um documento exigido pela Justiça Eleitoral para atestar que um partido político está regular e apto a participar das eleições. O DRAP deve ser apresentado ao Tribunal Regional Eleitoral no momento do registro de candidaturas, e sua aprovação é essencial para que os candidatos do partido ou coligação possam concorrer. Caso ele seja indeferido, todas as candidaturas vinculadas a ele podem ser prejudicadas.