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29/11/2021Por Daniel Falcão e Marina Morais
O exercício pacífico do poder funda-se essencialmente no conceito de legitimidade: num primeiro momento, exige-se que o acesso a essa prerrogativa se dê por meio socialmente aceito; após, que esse domínio seja exercido em conformidade com regras previamente impostas. A legitimidade do meio de escolha é, portanto, o primeiro ponto de sustentação da democracia.
A legitimidade não se confunde, aqui, com a legalidade. Em realidade, pressupõe a legalidade: legítimo é o poder que tem o seu detentor o direito de exercê-lo, exercendo-o, então, com justo título e de forma consentida — que se estabelece, por sua vez, pela concretização do sufrágio, nas eleições, pelo voto [1].
O Brasil tem, nesse aspecto, larga vantagem sobre outras democracias. Há anos, especialistas nacionais e internacionais atestam a eficiência do sistema, a exemplo da missão da Comissão da Organização dos Estados Americanos (OEA), que acompanhou a apuração dos votos em 2018 e atestou a segurança do sistema de urnas eletrônicas [2].
A despeito disso, desde essas mesmas eleições, intensificou-se um movimento de problematização do mecanismo eletrônico de votação. Entre pedidos de mais auditorias, comprovantes impressos e o retorno do próprio voto em cédula, os descrentes questionam o sistema, embora, curiosamente, não ataquem o resultado prático das eleições em si.
Conquanto as críticas às urnas eletrônicas não sejam em si fenômeno recente — e por isso diz-se que elas se intensificaram nos últimos três anos —, a disseminação desse discurso por meio das redes sociais lhe concedeu uma amplitude antes não alcançada, que é concretizada, online, por informações que possuem, a depender de seu conteúdo e intenção, diferentes danos e diferenças quanto à sua falsidade — englobadas, muitas vezes, sob o conceito de fake news.
Claire Wardle e Hossein Derakhshan, pelo report “Information Disorder”, ao Conselho da Europa, descreveram três tipos de informações (dis-information, mis-information e mal-information), vistas com base em suas relações com os danos a que se propõem e com o conteúdo, se verdadeiro ou falso.
Mis-information, ou informação incorreta, é aquela que é falsa, mas em que não houve a intenção de causar danos. Mal-information, ou informação maliciosa, por sua vez, é a informação de conteúdo verídico compartilhada justamente com esse propósito e que ocorre, não raras as vezes, pelo compartilhamento de informações da esfera privada para a esfera pública.
Exemplo clássico de mis-information derivou de um tiroteio em Paris, na Champs-Élysées, em 20 de abril de 2017, de autoria de Karim Cheurfi, que custou a vida de um policial. Vários rumores surgiram nos dias seguintes, como o de que um segundo policial também havia sido morto. Como diria a brasilidade: “Quem conta um conto aumenta um ponto”. Nas redes sociais, muitos usuários divulgaram esse e outros rumores. Porém, a maior parte dificilmente o fez no intuito de causar danos.
Da França também há exemplo de mal-information: em 5 de maio de 2017, em uma sexta-feira anterior ao segundo turno da eleição presidencial francesa, e-mails e informações sobre a campanha eleitoral de Emmanuel Macron foram vazados [3], isso no claro intuito de semear, no último instante, dúvidas que surgissem a partir das informações, a fim de prejudicar a liderança de Macron nas intenções de voto.
Wardle e Derakhshan esclarecem, por fim, o conceito de dis-information, ou desinformação, como aquela que é falsa e deliberadamente criada com a intenção de prejudicar pessoa, grupo, organização ou Estado [4].
Claire Wardle e Hossein Derakhshan também enfatizam que, com relação às desinformações, informações incorretas e informações maliciosas, há três distintas fases em seu ciclo: a sua criação; a sua distribuição, quando a mensagem é transportada à mídia; e a sua distribuição, na qual a mensagem alcança os seus remetentes. É certo que todas podem se fazer presentes no mesmo instante.
De volta ao Brasil, exemplo célebre está no vídeo postado pelo deputado paranaense Fernando Francischini (PSL), em seu perfil do Facebook, no qual aparecia afirmando ter identificado urnas adulteradas/fraudadas.
O malfadado vídeo, que alcançou em um mês 105 mil comentários, 400 mil compartilhamentos e mais de seis milhões de visualizações, custou o mandato do parlamentar, cassado por decisão do Tribunal Superior Eleitoral, no último dia 28 de outubro. No entendimento prevalecente da corte, a conduta de propagar desinformação se enquadraria no conceito de uso indevido dos meios de comunicação e abuso de poder político.
A cassação, operada pela incidência do artigo 22 da chamada Lei das Inelegibilidades (LC nº 64/90), supostamente cumpriria o desígnio da Constituição, emanado do artigo 14, §9º, que dá à lei complementar a tarefa de garantir “a normalidade e legitimidade das eleições” por meio da prevenção e punição de tais sortes de abuso.
Em “Alice — Através do espelho”, o personagem Humpty Dumpty afirma que, quando usa uma palavra, “ela significa exatamente aquilo que eu quero que signifique… Nem mais nem menos”. As palavras do constituinte, tais como as do ovo antropomórfico, parecem também dizer o que querem — nem mais, nem menos.
Daí defendemos que o chamado “precedente” do deputado Francischini [5] é o pior possível para coibir a prolação de inverdades sobre as urnas.
Não se adentra ao mérito da questão — as afirmações infundadas sobre a confiabilidade do sistema são, em última instância, uma ofensa ao próprio pálio de legitimidade democrática que sustenta as instituições. A negativa antecipada de validade ao resultado do pleito é vil e merece ser reprimida. A despeito disso, normalidade e legitimidade são conceitos dotados de força semântica própria.
A moldura fática do caso apresenta uma única live, com 18 minutos de duração, iniciando às 16h38 e encerrando-se às 16h56, no dia da votação — quando, é possível supor, todos os eleitores que pretendessem comparecer ou já o haviam feito ou encontravam-se já no local de votação. A fala, embora acuse falsamente as urnas de serem operadas por venezuelanos e outras afirmações inverídicas, não se dirige contra ou a favor de partido, coligação ou candidato, mas contra a Justiça Eleitoral, o que não é usual para os fins da ação em que a conduta foi apurada. Talvez por isso o julgamento tenha sido iniciado com a ponderação de que se trataria de uma “questão institucional”.
Por institucional que seja, há de se sopesar se a fala possui o condão de angariar votos, atentar contra a realização do pleito que se encerrava, ou mesmo de desequilibrar a competição entre os players. Sob qualquer égide, parece se tratar de um indiferente eleitoral, por não atentar diretamente contra qualquer dos bens jurídicos tutelados e por parecer carecer de força apta a atingir a normalidade das eleições, em que pese seu efeito mimético no atentado contra as instituições.
Mais a mais, o tribunal tradicionalmente restringiu o conceito de “uso indevido dos meios de comunicação social” aos meios ostensivos, tal como rádio, televisão e jornal. As redes sociais, ao possuírem uma logística em que o eleitor deve ser seguidor da página da rede social, buscar o conteúdo, apresentam nuances relevantes, notadamente porque não se tem notícia de impulsionamento da live em questão. Aqui, além dos demais argumentos, parece ser possível suscitar uma viragem jurisprudencial atentatória ao princípio da anterioridade eleitoral.
No caso do vídeo de Franscischini, não há dúvida de que a sua mensagem alcançou um público com a intenção de causar prejuízo à confiança de eleitores com relação às urnas eletrônicas. De fato, o Tribunal Regional Eleitoral, em sua decisão, não havia considerado que a internet e as redes sociais enquadram-se nos termos de “veículos ou meios de comunicação social”, a que dispõem o artigo 22 da LC n° 64/90, posição esta revertida pelo TSE.
“— A questão — ponderou Alice — é saber se o senhor pode fazer as palavras dizerem coisas diferentes.
— A questão — replicou Humpty Dumpty — é saber quem é que manda. É só isso”.
Certo é que, como pondera Eric Hobsbawm, “em um mundo em que a opinião pública conta tanto, ela também sofre enormes manipulações” [6]. No entanto, no caso do deputado Francischini, a desinformação, ao não beneficiar partido político — tampouco alterando a normalidade da eleição —, não se revestiu da gravidade que, em verdade, requer a LC nº 64/90.
Exsurge daí a necessidade de se pensar uma solução legislativa à matéria, para evitar futuros casuísmos. O problema de entregar um bovino aos peixes famintos para salvar a boiada é que não se sabe quantos córregos ainda há a atravessar, quantos outros serão sacrificados e quão alimentadas e fortes estarão as piranhas.
[1] GOMES, José Jairo. Direito Eleitoral. 16ª ed. São Paulo: Atlas, 2020, p. 76.
[2] VALENTE, Jonas. Eleições: Missão da OEA elogia segurança de urnas eletrônicas. Agência Brasil, 08 out. 2008. Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2018-10/eleicoes-missao-da-oea-elogia-seguranca-de-urnas-eletronicas>. Acesso em: 26 nov. 2021.
[3] REUTERS. França luta para impedir que vazamento de emails distorça eleição. A França é o mais recente país a ver uma grande eleição encoberta por alegações de manipulação por meio de ciberhacking. Exame, 06 maio 2017. Disponível em: < https://exame.com/mundo/franca-luta-para-impedir-que-vazamento-de-emails-distorca-eleicao/>. Acesso em: 26 nov. 2021.
[4] WARDLE, Claire; HOSSEIN, Derakhshan. Information Disorder: Towards na Interdisciplinary Framework for Research and Policy-Making. Conselho da Europa, Estrasburgo, 2017, p. 20. Disponível em: <https://rm.coe.int/information-disorder-toward-an-interdisciplinary-framework-forresearc/168076277c>. Acesso em: 25 nov. 2021.
[5] BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Recurso Ordinário Eleitoral n° 0603975-98/PR. Relator: Ministro Luis Felipe Salomão. Data de Julgamento: 28 out. 2021.
[6] HOBSBAWM, Eric. Globalização, Democracia e Terrorismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.