Fraude a cotas de gênero: inelegibilidade e indeferimento de toda chapa vencedora
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04/04/2023Por Ana Claudia Santano
Meu nome é Maria.[1] Nasci e cresci no interior. Nunca fui para a capital e desde cedo tive que lidar com meus papéis de mulher na comunidade. Minha família, humilde, não teve condições de me dar estudo. Aqui não tem escola e mal tem água, quem dirá esgoto. A saúde se segura nas dificuldades da vida e não tive chance de escolher um caminho diferente do que cuidar dos meus irmãos e da casa enquanto minha mãe ia lavar roupa para as senhoras da cidade.
Como a população é pequena, acabei me envolvendo com os assuntos da comunidade e, com isso, me tornei conhecida por sempre buscar resolver os problemas das pessoas. Sempre fui boa de escuta, ao mesmo tempo que também fui acolhida muitas vezes pela gratidão delas. Pouco a pouco, isso foi me levando à vida pública, o que me exigiu muito, pois a família reclamava que eu não cuidava da casa. Quando engravidei, ainda jovem, não pude contar com o apoio dos meus, mas a comunidade seguia ali pedindo a minha atenção. Com os filhos um pouco mais crescidos, me convenceram que, numa dessa, eu deveria ir para a política.
Política? Eu, hein… Tive muitos receios logo de cara. Mas insistiram e me levaram para conhecer pessoas de um partido. Confesso que não tinha informação sobre partidos ou seu funcionamento. Nem sabia direito a função das pessoas que passei a conhecer, mas todos me diziam que eu poderia ser candidata e que ganharia para vereadora, pois já tinha o meu “eleitorado” na comunidade. De fato, eu era bem conhecida. Também me disseram que tinha uma coisa chamada “cotas de candidatura de mulheres”, que os partidos tinham que cumprir para competir a eleição. Por causa disso, insistiram bastante para eu tentar ser candidata.
Tentei me envolver na rotina do partido, mas tinha tantos homens que eu não me sentia cômoda. Minha família, então, nunca me encorajou, me dizia que política não era coisa de mulher e como que eu ia cuidar da casa e dos filhos se eu fosse eleita. Mas decidi encarar, por achar que o partido me apoiaria. Participei da convenção, me escolheram como candidata (não sei nem como foi, mas me escolheram) e logo pediram a minha documentação para o meu registro.
Eu, que não queria confusão nenhuma, tratei de me preparar de todas as formas. Fui direto no partido ver se tinha advogado para me ajudar a entender as leis eleitorais e que me desse o apoio necessário para a campanha. Disseram que tinha, mas nos dias que se seguiram vi que não, pois nunca consegui falar com ele. Então decidi procurar por cursos na internet que me dessem informações técnicas. Soube por outra candidata que várias ONGs ofereciam cursos gratuitos, então tratei de ver quem tinha computador com internet para eu poder ver as aulas. E foi ótimo! Me disseram que eu tinha direito a dinheiro público para a minha campanha, já que era mulher, e que o meu registro tinha que seguir a Lei 9.504/97, a Resolução 23.609/19 do TSE; além de ter que prestar atenção no tema do financiamento e da propaganda eleitoral, que tinham as Resoluções 23.607 e 23.610. No final, eu teria que prestar contas de tudo.
Fui no partido pedir dinheiro. Me disseram que não havia. Falei da lei e me disseram que não tinham como cumprir, porque o dinheiro ficou para outras candidatas. Perguntei quem que escolhe isso, me disseram que eram “os diretores” do partido.
Sem apoio econômico, tentei fazer uma vaquinha, já que eu não tinha dinheiro e o que eu tinha era para o sustento da minha família, que seguia reclamando do tempo que eu gastava com a campanha. Não arrecadei muito, então tive que ver quem podia me ajudar numa campanha de porta a porta, o que deu certo. Fizemos uma campanha de mobilização, fazendo o que eu sempre fiz com a comunidade, escutando as pessoas, abraçando, vendo o que deveria ser feito na nossa cidade. Abracei a causa da educação, pois sem isso a vida fica muito mais difícil.
E chegou o dia da eleição. Sem apoio nenhum do partido, nem de propaganda, nem de dinheiro, nem de nada, fui cheia de medos votar. Quando vi as ruas, muitas pessoas me apoiando. Já no final do dia, vi que tinha feito uma quantidade boa de votos. Fiquei muito feliz, pois a caminhada até ali foi muito difícil. Eu tinha arriscado tudo e deu certo. Esperei a confirmação do partido e vi que realmente eu me elegi. Que felicidade! Agora sim vou poder ajudar a minha cidade!
Como eu sabia que tinha que prestar contas da campanha, que aprendi no curso para candidatas, preparei tudo. O partido disse que poderia fazer por mim, mas preferi acompanhar de perto, pois no mesmo curso tinham me falado que essa parte poderia me dar problemas no meu mandato, ou seja, que se eu não prestasse contas direito, eu poderia ser cassada.
Tomei posse. Foi uma emoção. Minha família seguiu sem me apoiar, só me criticava, pois política não era assunto de mulher e eu tinha que ficar em casa. Mas paciência, em algum momento eles iriam entender e meus filhos ficariam orgulhosos.
Logo no primeiro dia na Câmara de Vereadores, vi que eu era a única mulher. Foi super incômodo. Eu era jovem e todos ali já estavam eleitos fazia muito tempo. Me olhavam como se eu fosse a novata e eu sentia que pensavam que eu não sabia nada de política. Eu realmente não vinha de uma família de políticos e muitos ali, sim, de gerações em alguns casos.
Depois de dois meses de mandato, percebi que eu não participava de nada na Câmara. Não me permitiam participar de comissões, não tinha direito a quase nada que outros vereadores tinham, minha equipe era muito pequena e mal dava conta do trabalho mais básico. Mas eu seguia, acreditando que meu papel principalmente na oposição ao prefeito era importante. A oposição já era pequena, porque o prefeito também vinha de uma família de políticos de longa data, então era ainda mais difícil.
Contudo, um dia me disseram que tinha uma ação na Justiça Eleitoral acusando o meu partido de ter “candidatas laranja”, ou seja, de ter mulheres que não eram candidatas de verdade e que isso era considerado uma fraude e que poderia me alcançar. Como assim? Eu fiz tudo certo, me preparei, enfrentei minha família, todas as dificuldades, e agora estão querendo que eu pague por coisa que outros fizeram?
Dito e feito. Eu, que não entendo de direito, recebi a notícia que a ação foi aceita pela Justiça Eleitoral, confirmada pelo Tribunal Regional Eleitoral. Me revoltei, tentei de todos os modos procurar um advogado para me explicar e me defender, mas quando o meu caso chegou no TSE, vi que eles pensam da mesma forma. Eu perdi o meu mandato e até hoje não sei como isso aconteceu.
Passados tantos meses, agora consigo contar esta história sem chorar. A cidade praticamente não tem mais oposição ao prefeito, não há mais mulher na Câmara, eu tive que sofrer toda a retaliação da minha família, que toda vez que pode me diz que me avisaram que política não era coisa de mulher. Toda a comunidade me olha torto porque pensa que fiz coisa errada. Fiquei falada, sei que comentam mal de mim. E eu? Bem, entendi da pior forma que a política não é lugar para mim e que nada vai mudar, pois todo mundo esteve contra mim quando eu tentei. O partido? Segue aí, atuando normalmente. Nem me disseram mais nada…
[1] Este nome é totalmente fictício, bem como toda a história descrita neste texto. Trata-se de uma proposta de reflexão que não se embasa no direito, mas sim nas vivências das mulheres na política no interior do Brasil real. A inspiração para esta narrativa são as histórias ouvidas de tantas mulheres que se atrevem a participar da política.