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21/01/2022Por Walber de Moura Agra e Alisson Lucena
Insofismável que os partidos políticos ocupam posição de relevo na democracia brasileira, no que se configura como um dos principais canais para fazer ecoar a voz do povo na arena política e, felizmente, ainda são considerados peças-chave no incremento e densificação dos ideários democráticos [1]. Bem por isso, os partidos políticos funcionam como “fiadores da estabilidade institucional das democracias ocidentais” [2], na medida em que deixam de ser concebidos como um mero agrupamento humano para se integrar ao próprio nascedouro da vontade estatal, sendo a luta partidária na defesa de distintos interesses um valor constitutivo do Estado [3].
Assevera Augusto Aras que uma das importâncias das greis partidárias é a de servir como mecanismo apto a institucionalizar o poder político mediante a sua despersonalização, evitando exacerbações de personalismos que podem estorvar a República [4]. Evita-se, com isso, que indivíduos personifiquem bandeiras de luta, servindo como baluartes de determinada pauta, sobrepondo-se ao colegiado inerente à democracia e aos órgãos partidários, razão pela qual tanto o TSE quanto o STF perfilharam entendimento no sentido de que os mandatos, no sistema proporcional, pertencem aos partidos políticos [5].
Solidificou-se, nessa ambiência, o instituto da fidelidade partidária, assim como fixou-se interpretação constitucional quanto à possibilidade da perda do cargo eletivo, na hipótese de a desfiliação partidária não estar amparada por justa causa. A fidelidade partidária exsurge como um imperativo para que os mandatos guardem um coeficiente satisfatório de autenticidade e coesão em relação às diretrizes e aos princípios que animam determinado partido político pelo qual o mandatário foi eleito. É o que se pode apontar como uma espécie de affectio societatis, que mantém interligada a atuação parlamentar aos desígnios da agremiação, sem o qual se desfaz o vínculo partidário. Ensina o professor José Afonso da Silva que o princípio da fidelidade partidária retira a atuação parlamentar de um campo demasiadamente abstrato em relação ao povo para torná-la mais concreta em função de vínculos partidários que conectam mandante e mandatário [6].
Com efeito, faz-se imperioso acentuar que o debate referente à fidelidade partidária não pode ser reduzido sob o enfoque formal, com esteio apenas na tese de que os mandatos pertencem aos partidos políticos. Vale dizer, a temática da fidelidade partidária deve ser interpretada para além da simples aferição da permanência do indivíduo no partido, no que deve ser vislumbrada sob a ótica do parlamentar se posicionar de acordo com as diretrizes deliberadas. É que se assim não fosse, o instituto careceria de suporte legitimador e todo o arcabouço constitucional soerguido para amparar a teorética outrora firmada perderia a tônica necessária para resgatar e manter a importância dos partidos políticos nessa quadra histórica.
Deve-se vivificar a lealdade aos objetivos que levaram à estruturação do partido e que reverberam, com maior ou menor grau de intensidade, na sociedade. Ao votarem em um candidato filiado a determinado partido político, os eleitores esperam que sua atuação guarde sintonia com as diretrizes ideológicas agasalhadas. É que não faria sentido um parlamentar eleito através de um partido que hasteia bandeiras humanistas direcionar votos e proposições legislativas em favor de pautas genocidas ou que promovam odiosos acintes às minorias, por exemplo. Para evitar, ou ao menos amainar, situações dessa natureza, é que os partidos utilizam do instituto da disciplina partidária, meio pelo qual se impõe aos filiados o respeito aos princípios e ao programa partidário. A disciplina partidária está relacionada ao comportamento dos filiados como resultante de um jogo estratégico, em que as ações adotadas podem refletir em penalizações ou em benefícios de sua postura [7]. O regramento legal da disciplina partidária verte do artigo 24 da Lei nº 9.096/1995.
Na prática, é que se pode denominar de “fechamento de questão” ou princípio da unidade de ação. Ou seja, são hipóteses nas quais os partidos põem em evidência a predileção a respeito do direcionamento de determinada votação que porventura veicule algum tema sensível às bandeiras partidárias, especificamente para que os posicionamentos sejam entoados de forma uníssona, em estrito respeito às disposições emanadas pelos órgãos partidários.
O chamamento ao princípio da unidade de ação intensifica a uniformidade que deve imperar nos posicionamentos partidários, bem como também garante consistência ideológica e continuidade na composição coletiva, já que se busca, com isso, o aperfeiçoamento do conjunto da bancada, evitando-se o império de personalizações.
Pode-se vincular o princípio da unidade de ação ao conceito de discricionariedade partidária, que garante a preservação do núcleo essencial da autonomia partidária. Recentemente, o Tribunal Superior Eleitoral estimulou os partidos políticos a adorem o fechamento de questão para que imponham mais consistência nas orientações ideológicas, de modo a afastar a incidência de justa causa para desfiliação de parlamentar que não seguiu a orientação partidária e sofreu sanção em razão da adoção de posição dissidente [8].
Foi devido à capital importância conferida aos partidos políticos que o TSE editou a Resolução nº 22.610/2007, ato normativo que disciplina o processo de perda de cargo eletivo, bem como de justificação de desfiliação partidária. Atualmente, a única possibilidade do mandatário desfiliar-se ou trocar de legenda e não perder o mandato é se houver atestação de justa causa. A Lei nº 13.165/2015 acrescentou o artigo 22-A na Lei dos Partidos Políticos para elencar as hipóteses de justa causa.
Em paralelo às disposições normativas atinentes à matéria, o TSE flexibilizou algumas hipóteses de justa causa, como a aceitação da carta de anuência subscrita por partido político, autorizando a saída do detentor de cargo eletivo [9]. Mencione-se que, quanto a essa hipótese em específico, o TSE promoveu uma virada jurisprudencial para afastar, a partir das eleições de 2018, a configuração de justa causa em relação à carta de anuência oferecida pelos partidos políticos aos representantes individuais eleitos pela legenda [10].
Outro caso de flexibilização pretoriana diz respeito à permissividade do uso de carta-compromisso firmada entre partidos políticos e movimentos cívicos apartidários. Para o TSE, se o partido firmar compromisso com determinado movimento cívico apartidário, cria-se, sob a ótica da boa-fé objetiva, justa expectativa para que os filiados arregimentados dentro do movimento possam atuar ao largo dos princípios e diretrizes da agremiação. Então, uma vez declarada a eficácia da carta-compromisso, não se pode exigir que os filiados atuem em observância às diretrizes partidárias que colidam com a pauta do movimento [11].
Discorda-se veementemente acerca da aceitação da carta-compromisso, que arrefece sobremodo o princípio constitucional da autonomia partidária e representa um capitis diminutio no que tange à importância dos partidos políticos. Nesse sentido, os partidos devem atentar para a forma de estruturação dessas cartas, principalmente em relação às suas cláusulas, para que se possa ao menos resguardar uma reserva de densidade mínima do princípio da autonomia partidária, de modo a não permitir que tais instrumentos possam cada vez mais entronizar indivíduos singulares em detrimento do coletivo partidário.
De tudo que fora dito, tem-se que o signo da fidelidade partidária deve ser prestigiado para que não se permita a perpetração da cultura do filiado buscar guarida em solo partidário apenas para alcançar o coeficiente eleitoral e utilizar aportes financeiros enviados pelo partido para corporificar a campanha e, logo após, manter posicionamentos manifestamente contrários a temas sensíveis de grande importância para o partido político pelo qual foi eleito. É dentro da ótica constitucional que dá sustentáculo à fidelidade partidária que sobressai a necessidade inexorável de reconhecimento de dano apto a subsidiar ação de regresso em face do parlamentar infiel, que se utilizou do partido como meio para atingir finalidades e caprichos pessoais.
A responsabilidade, no caso, não perpassa pela hoste eleitoral, que enseja sanções como multa, inelegibilidade, denegação ou cassação de registro; ou denegação ou cassação de diploma. Trata-se de nítida responsabilidade civil, que exsurge no descumprimento de um dever ou no inadimplemento de determinada obrigação. Aqui, a responsabilidade consubstancia-se em uma obrigação que alguém tem de reparar o dano causado a outro, por fato seu ou das pessoas que dele dependam [12]; ou como ensinou Pontes de Miranda, ela resulta da ação pela qual o indivíduo expressa seu comportamento em face de um dever ou obrigação que é violada frontalmente [13].
As hipóteses de desvirtuamento da atuação parlamentar, nas quais o mandatário esboça comportamento fugidio ao que fora determinado, consubstanciam-se em evidente desabono do conceito público e da honra do partido político, e, portanto, em demérito moral pelo notório prejuízo que será suportado pela agremiação em razão do ato de vontade praticado pelo parlamentar, o que atrai per se o dever de indenizar. Não se pode permitir que o filiado não tenha compromisso com os ideais partidários e utilize-se do partido apenas para alcançar sucesso no pleito eleitoral.
Isso porque não é pelas facilidades materiais que os partidos proporcionam aos seus candidatos, como fundo partidário, FEFC, ajuda em atingir o coeficiente eleitoral e horário gratuito na TV, que reside sua importância no processo democrático; mas, sobretudo, por constituir-se em instrumento que transmite, ao menos em nível teórico, segurança à população de que o candidato cumprirá as diretrizes programáticas firmadas quando de sua constituição.
Defende-se que a indenização, por sua vez, deve ter caráter patrimonial e pedagógico. Fala-se em caráter patrimonial no sentido de que o parlamentar venha a ressarcir ao partido todo os investimentos revestidos na candidatura, uma vez que muito provavelmente sem os aportes pecuniários o filiado sequer teria logrado êxito no certame. Já o critério pedagógico vem à baila para evitar a continuidade da prática de desvirtuamento das diretrizes partidárias, máxime para que o parlamentar seja guiado pelos interesses construídos de forma coletiva pelo partido.
Deveras, vislumbra-se, nos casos de infidelidade partidária e da ausência de justa causa para desfiliação, a viabilidade de o partido político pleitear indenização por danos morais e materiais, com o ressarcimento dos montantes direcionados na campanha do parlamentar dissidente, para que não se não se deturpe toda teorética construída em favor das agremiações, de modo a obstar os caminhos para que candidatos eleitos que procedam a esse tipo de prática nefasta continuem ilesos.
Há pouco tempo, o TJ-DFT condenou um parlamentar federal ao pagamento de indenização por danos morais a determinado partido político em razão das reiteradas votações contra orientação partidária, que ocasionaram acinte à honra do partido [14]. Para o juiz sentenciante, o réu agiu contrariamente às diretrizes do partido na votação da denominada rda Previdência. O fato não foi negado e a documentação apresentada deixou esse fato clarividente (30% dos votos contrariamente às diretrizes do partido, 58% dos votos em acompanhamento à orientação do governo federal). Assim, ao não agir de acordo com a orientação do partido, o réu maculou a honra objetiva da entidade coletiva.
Certa feita, Miguel de Cervantes alinhavou que entre os pecados maiores que os homens cometem, o maior é a falta de gratidão. Comunga-se desse arremate, com o acréscimo de que nessa plaga histórica de contestação dos ideais democráticos não se pode permitir que atos egoicos suplantem a importância incontestável dos partidos políticos, que servem como lócus de concreção de debates para promover os interesses da sociedade, de modo que qualquer conduta que incida contra essa razão de ser deve ser reprimida de forma assaz contundente.
[1] SANTANO, Ana Claudia. Candidaturas independentes. Curitiba: Editora Íthala, 2018. p. 109.
[2] FERREIRA, Marcelo Ramos Peregrino; CONCI, Luiz Guilherme Arcaro. As candidaturas avulsas, o sistema interamericano de direitos humanos e o Estado de Partidos. In: FUX, Luiz; PEREIRA, Luiz Fernando Casagrande; AGRA, Walber de Moura (Coord.); PECCININ, Luiz Eduardo (Org.). Direito Partidário. Belo Horizonte: Fórum, 2018. P. 77.
[3] LENK, Kurt; NEUMANN, Sigmund. Teoría y sociología crítica de los partidos políticos. Barcelona: Anagrama, 1980. p. 29.
[4] ARAS, Augusto. Fidelidade e ditadura intrapartidárias. Bauru: EDIPRO, 2011. p. 14.
[5] CTA n. 1.398/DF, sob a relatoria do ministro Cesar Asfor Rocha; Resolução nº 22.526/2007 e Resolução nº 22.610/2007 do TSE; MS nº 26.603/DF, sob a relatoria do ministro Celso de Mello; MS nº 26.602/DF, sob a relatoria do ministro Eros Grau; MS nº 23.604/DF, sob a relatoria da ministra Cármen Lúcia; e ADI nº 3.999/DF, sob a relatoria do ministro Joaquim Barbosa.
[6] DA SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 22. Ed. São Paulo: Malheiros, 2003. P. 407.
[7] GIANNETTI, D; LAVER, M. Party cohesion, party factions and legislative party discipline in Italy. In: European Consortium for Political Research, 2005.P. 2
[8] Processo nº 0600638-14.2019.6.00.0000, relator ministro Sérgio Banhos; e Processo nº 0600639-96.2019.6.00.0000, relator ministro Luís Roberto Barroso.
[9] RECURSO ESPECIAL ELEITORAL nº 060013127, Acórdão, Relator(a) Min. Edson Fachin, Publicação: DJE – Diário da justiça eletrônica, Tomo 197, Data 01/10/2020.
[10] PETIÇÃO nº 060048226, Acórdão, relator(a) ministro Edson Fachin, Publicação: DJE — Diário da justiça eletrônica, Tomo 235, Data 17/12/2021.
[11] Processo nº 0600641-66.2019.6.00.0000, relator Min. Luís Roberto Barroso; e Processo nº 0600637-29.2019.6.00.0000, relator ministro Sérgio Banhos.
[12] SAVATIER, René; RIPERT, Georges. Traité de la Responsabilité Civile en Droit Français Civil, Administratif, Professionnel, Procédural: Les Sources de la Responsabilité Civile. 2. Ed. Paris: LGDJ, 1951, v. 1, p. 1.
[13] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1967, t. 53. P. 405.
[14] Processo nº 0717873-20.2021.8.07.0016.