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11/03/2024Para o Tribunal Superior Eleitoral, não há problema de saúde, tragédia pessoal ou vontade íntima que justifique a desistência de uma candidata se ela não chegou a manifestar a intenção de realmente concorrer nas eleições proporcionais.
Caso após caso, a corte vem julgando com rigor as alegações apresentadas pelas candidatas laranjas, o que tem levado a dezenas de decisões pela cassação de chapas completas pela ocorrência de fraude à cota de gênero.
A revista eletrônica Consultor Jurídico elencou 17 acórdãos sobre o tema, todos referentes às eleições municipais de 2020, ocorridas durante a epidemia da Covid-19. Naquele ano, as campanhas foram primordialmente virtuais.
As mulheres que são alvos dessas ações registraram suas candidaturas como parte do mínimo de 30% para cada gênero que o artigo 10º, parágrafo 3º, da Lei das Eleições exige, mas não fizeram campanha e receberam poucos ou nenhum voto.
A jurisprudência do TSE indica que a chamada “desistência tácita” da candidata precisa ser demonstrada por argumentos ou documentos, com indícios ao menos de um início de campanha que demonstre que a intenção era mesmo concorrer.
A corte tem reformado decisões de Tribunais Regionais Eleitorais que ainda admitem que a desistência da candidata seja simplesmente alegada por motivos de foro íntimo. Esses tribunais afastam a presunção de fraude à cota de gênero.
Em contraposição, o TSE tem ressaltado que os partidos devem manter candidaturas femininas viáveis e com pretensão de disputa nas eleições proporcionais durante todas as fases do processo eleitoral.
As advogadas consultadas pela ConJur veem acerto nessa jurisprudência. Para elas, o rigor do TSE ataca a principal causa do problema: o descompromisso dos partidos políticos com as mulheres, algo que interpretam como violência política de gênero.
Culpa dos partidos
Roberta Laena explica que as legendas têm um modo de operação para fraudar candidaturas femininas: cooptam mulheres apenas para cumprimento da cota de gênero, sem que haja o real intuito de apoio a essas candidatas.
Servidora da Justiça Eleitoral do Ceará, ela é autora do livro Fictícias: candidaturas de mulheres e violência política de gênero (2020), fruto de pesquisa para tese de doutorado que elenca as maneiras usadas no Brasil para estabelecer candidaturas femininas fraudulentas.
Uma das classificações feitas por ela é a da “candidata desertora”, a partir do caso de uma das entrevistadas, que até queria fazer campanha, mas desistiu pela falta de apoio do partido, não contou à Justiça Eleitoral e teve votação zerada.
Segundo Laena, a fraude à cota de gênero é uma ação do partido, não das mulheres envolvidas.
“Ao invés de capacitar mulheres, de chamá-las para participar ativamente do partido, de incentivar financiando de candidaturas femininas reais, os partidos insistem na fraude. Então, as mulheres que desistem são, via de regra, as fictícias.”
“Quando não são as fictícias, as que desistem são as que não encontram amparo e incentivo do partido. Nesse caso, o motivo é machismo, sexismo, misoginia. De todo modo, nos dois casos se denota a falta de apoio partidário às candidaturas reais de mulheres.”
Na opinião de Georgia Nunes, a jurisprudência formada impõe um tipo de conduta não apenas à candidata que desiste, mas ao próprio partido e aos demais integrantes da lista, que se beneficiam do registro da mulher para preenchimento da cota de gênero.
“A meu ver, o principal fator de desistência das candidatas que se registram, as que realmente pretendem disputar, é o descompromisso do partido com a sua eleição. Elas são atraídas para a agremiação com muitas promessas que, na maioria das vezes, não se cumprem durante a campanha. Essa desistência, sim, é preocupante.”
Problemas de saúde
Questões de saúde são a principal alegação das candidatas que dizem desistir das eleições. Frequentemente, esse argumento é afastado por se tratarem de problemas que elas já conheciam quando decidiram se candidatar.
Foi o caso de uma candidata à Câmara Municipal de Traipu (AL), que abandonou a campanha por episódios de dor lombar incapacitante. Na ação, descobriu-se que ela sofria havia anos do problema e que nem campanha nas redes sociais se preocupou em fazer.
Outra candidata, em Laje do Muriaé (RJ), disse à Justiça Eleitoral que desistiu por causa de doença da enteada, que teve de ser submetida a operação. No entanto, a cirurgia se deu mais de um mês após o início da propaganda eleitoral, na qual ela não praticou qualquer ato.
Em Muqui (ES), uma candidata desistiu porque se submeteu a cirurgia bariátrica. O problema é que, dois dias antes de registrar sua candidatura, ela informou nas redes sociais que em breve faria a operação. Mesmo ciente das consequências do procedimento, decidiu concorrer.
Situações como essas fizeram o ministro Benedito Gonçalves, relator de um caso de Iguaba Grande (RJ), notar a existência de um paradoxo: o da candidata que decide registrar candidatura mesmo sabendo que está doente para, logo depois, desistir da disputa justamente pela doença.
Nesse caso, a mulher alegou que sofria de hérnia inguinal. Isso, porém, não a impediu de posar para fotografias, em locais diversos, apoiando pré-candidato ao mesmo cargo que ela concorreria, o que levou ao reconhecimento da fraude.
Em Diamante (PB), uma candidata justificou sua desistência por ter contraído Covid-19 durante o período eleitoral. No entanto, a ação tem fotos que mostram que, na mesma época, ela fez campanha em prol da própria sogra.
As atividades nas redes sociais também levaram ao reconhecimento da fraude de uma candidata de Blumenau (SC) que desistiu pelo agravamento da saúde do pai. No período, ela fez várias postagens, mas nenhuma para divulgar a própria candidatura.
Há um caso em que a justificativa foi aceita: em Roteiro (AL), a candidata desistiu porque o marido esteve em tratamento de câncer durante a campanha. Para justificar a desistência, ela apresentou recibo de consulta, de serviços médicos e exames.
Ainda assim, a votação foi por maioria de votos. Vencido, o ministro Alexandre de Moraes, presidente do TSE, sustentou que a doença já existia antes da campanha e que ela teria tempo para permitir sua substituição na lista de candidatas pelo partido.
Tragédia e vergonha
A ocorrência de tragédias pessoais também não sensibiliza muito o TSE. Em Macau (RN), uma candidata justificou sua desistência pelo luto devido à morte da própria irmã, que ocorreu mais de um mês antes do início da campanha.
O tribunal também afastou a justificativa de uma candidata de Vila Velha (ES) que desistiu porque a filha sofreu um aborto. As dificuldades da gravidez ocorreram antes da convenção do partido, da qual a mulher participou. Portanto, a tragédia já tinha ocorrido quando ela decidiu concorrer.
Também em Vila Velha, uma mulher desistiu devido à morte de Toninho Magalhães, presidente do diretório municipal do PTB. Ela alegou que ficou com vergonha de avisar o partido, já que o falecido se esforçou muito para formar a chapa para as eleições.
A conclusão do TSE, nesse caso, foi de que a justificativa era inválida porque o falecimento ocorreu antes da convenção para a escolha de candidatos e do pedido de registro de candidatura da investigada.
A vergonha e o constrangimento foram usados como justificativa por uma candidata de Piraí (RJ) que desistiu depois de ver circularem vídeos nas redes sociais sobre fato criminoso vinculado à sua imagem. A corte não aceitou porque, mesmo assim, ela fez campanha para um candidato a prefeito.
Em Coração de Maria (BA), uma candidata desistiu porque seu partido teve disputa interna que resultou em guerra jurídica. Relator da matéria no TSE, o ministro Raul Araújo observou que, “embora não seja desejado, não é incomum, ao longo do processo eleitoral, haver disputas jurídicas no âmbito do próprio partido sobre a legitimidade desta ou daquela candidatura, o que de forma alguma justifica a desistência tácita de candidaturas”.
Questões práticas
O TSE também enfrentou justificativas mais práticas — e menos nobres. Em Currais Novos (RN), uma mulher desistiu porque, no início da campanha, teve de voltar ao trabalho presencial de professora. A fraude foi confirmada porque ela tinha tempo para avisar o partido e ser substituída, mas não o fez.
Em Vila Velha, uma candidata disse que desistiu da campanha porque não tinha familiaridade com as ferramentas eletrônicas e redes sociais. O problema é que, no mesmo período, ela concorreu e foi eleita para o cargo de líder comunitária do bairro Pontal das Graças. Recebeu 241 votos e inclusive usou ferramentas eletrônicas para a divulgação da candidatura.
O rigor do TSE serviu para considerar fraudulenta até mesmo o caso da mulher de Novo Gama (GO) que participou da convenção partidária, foi a primeira escolhida e chegou a deixar o cargo público que ocupava só para concorrer.
No entanto, para o relator, ministro André Ramos Tavares, a desincompatibilização de cargo público é irrelevante e a renúncia tácita não foi demonstrada.
Incentivo tácito
Para Roberta Laena, o rigor do TSE sobre o tema é um incentivo às candidatas e representa um avanço na luta das mulheres na política. “Mostra que o Poder Judiciário, atento ao uso das mulheres como mercadoria eleitoral pelos partidos, está contribuindo para assegurar a representação feminina no poder.”
Georgia Nunes concorda, afirmando que a jurisprudência visa a evitar a perpetuação da prática corriqueira de violência política contra as mulheres. Ela destaca a evolução do tratamento dado ao tema pela Justiça Eleitoral.
“Essas decisões abriram a possibilidade de discussão judicial da fraude à cota de gênero após as eleições e, inclusive, com a cassação de mandatos beneficiados com a fraude. A partir disso, os partidos e candidatos receberam a mensagem de intolerância da Justiça Eleitoral com essa burla, que prejudica a participação feminina na política.”
“Espero que isso incentive as agremiações e seus líderes a procurarem candidatas competitivas e, mais do que isso, permitindo que elas concorram nas mesmas condições dos demais candidatos”, complementa ela.