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10/10/2022Por Elder Maia Goltzman
Uma das maiores dificuldades na seara da liberdade de expressão é estabelecer parâmetros para saber quais opiniões gozam da proteção estatal e quais devem ser sancionadas.
O resguardo conferido ao livre discurso é fundamental para o funcionamento da democracia. Tanto é assim que regimes ditatoriais, como uma de suas primeiras medidas, retiram do coletivo a possibilidade de exprimir seus pensamentos para evitar críticas que lhes sejam desfavoráveis. A censura é uma forma de controle.
Noutro giro, nem tudo pode ser dito, e isso também é democrático. A ideia de que se devem ouvir todos os lados para formar uma opinião só vale se todas as ideias a que se ouvem estiverem de acordo com os direitos humanos e, consequentemente, respeitarem um marco civilizatório mínimo. Afinal, não se precisa debater com um nazista para saber que o regime é genocida. Tampouco é necessário ouvir o que pensa um racista para compreender que a segregação racial atenta contra a dignidade das pessoas pretas.
Os livros de história são suficientes para saber que falas dessa natureza eram difundidas. Atualmente, diante de que se leu e se aprendeu, é inadmissível tolerar ideias de tal jaez. A democracia não é o governo da maioria. Essa simplificação só favorece discursos hegemônicos para que assim eles permaneçam.
Quando se está em campanhas eleitorais, é patente a importância do livre pensamento. As mais diferentes ideias têm de circular para que o eleitorado possa formar sua vontade, modificar suas convicções ou ratificar suas crenças. Repise-se, apenas por excesso de zelo, desde que os direitos humanos sejam respeitados.
Nesse sentido, a crítica ácida faz parte do debate político. Por isso, palavras que fora de contextos eleitorais não seriam toleradas, durante as eleições acabam sendo permitidas por se entender que a situação demanda maior liberdade em prol da livre circulação de ideias.
E aqui existe um ponto interessante. A proteção à honra de candidatos deve ser tutelada da mesma maneira que dos demais cidadãos? Um caso prático recente pode ajudar a entender a questão.
Durante atos de pré-campanha, o candidato Luiz Inácio Lula da Silva teria feito a seguinte afirmação sobre seu rival político Jair Messias Bolsonaro: “esse genocida não fez absolutamente nada”.
Sabe-se que, por conta da gestão do governo federal durante a pandemia de Covid-19, o atual presidente foi tachado por seus críticos de genocida, no sentido de que estaria indiferente à morte do povo brasileiro infectado pelo vírus e, por isso, não teria tomado as cautelas necessárias. A fala de Lula está dentro dos limites de proteção de que goza a liberdade de expressão?
A crítica política, por vezes, ocorre sob a forma de imputação delitiva. E não necessariamente no sentido técnico que cada tipo penal tem. Quando um candidato chama outro de ladrão, não está dizendo necessariamente que ele subtraiu coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência a pessoa. Da mesma forma, quando afirma que “vai tirar essa quadrilha do poder”, não está falando sobre o crime tipificado no artigo 288 do Código Penal (associação criminosa).
O genocídio está previsto no Estatuto de Roma, em seu artigo 6º, abaixo reproduzido:
Crime de Genocídio
Para os efeitos do presente Estatuto, entende-se por “genocídio”, qualquer um dos atos que a seguir se enumeram, praticado com intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, enquanto tal:
a) Homicídio de membros do grupo;
b) Ofensas graves à integridade física ou mental de membros do grupo;
c) Sujeição intencional do grupo a condições de vida com vista a provocar a sua destruição física, total ou parcial;
d) Imposição de medidas destinadas a impedir nascimentos no seio do grupo;
e) Transferência, à força, de crianças do grupo para outro grupo.
O julgador deve estar atento ao sentido metafórico que algumas expressões carregam no seio da sociedade. Para a palavra “genocídio”, nem mesmo entre operadores do direito seu conceito técnico é difundido. Há uma série de questões políticas envolvidas no uso das palavras que o juiz não pode ignorar.
A expertise jurídica é dominada por poucos, sendo a dimensão leiga dos termos mais comuns. Ademais, quando alguém decide concorrer a um cargo público ou exerce um mandato eletivo, renuncia a parcela significativa de sua honra e passa a andar sob as lentes da sociedade civil, da imprensa, dos partidos políticos, dos órgãos de controle, da academia e assim por diante. Nem tudo que foi dito será preciso, acurado ou real.
Analisando as representações recentes e que tramitam no Tribunal Superior Eleitoral, vê-se que os mesmos candidatos que defendem a liberdade de expressão se valem do Poder Judiciário para tentar suprimir qualquer tipo de afirmação que seja ruim para sua imagem. E o pior: por várias vezes o Judiciário intervém, julgando procedentes as demandas.
A proteção à liberdade de expressão não pode ser teórica. Ela tem de ser concreta. E a concretização se dá através de quem diz o direito. A Corte Interamericana de Direitos Humanos, tanto no julgamento dos casos Kimel vs. Argentina (2008), quanto no julgamento de Alvarez Ramos vs Venezuela (2019), aduziu que, nos debates de interesse coletivo, mormente quando se trata de funcionários públicos (expressão utilizada nos julgamentos da CorteIDH), deve-se conferir proteção não só ao que é inofensivo, mas também àquilo que choca, irrita ou inquieta.
De forma alguma a honra ou imagem do homem público pode receber tutela igual à do cidadão comum. As campanhas são apenas parte de um processo maior. O vencedor passará os próximos anos exercendo um mandato e sofrerá todo tipo de pressão e acusação. Irá sempre recorrer ao Judiciário para punir quem o critique? Não seria essa, também, uma forma de censura processual? Utilizando uma ação e o aparato do Estado para intimidar opositores?
De forma alguma se afirma que tudo pode ser dito. Não pode. Todavia, não é possível equiparar a proteção que o cidadão comum recebe à proteção dos candidatos e agentes do Estado. As críticas virão. Nem sempre verdadeiras, nem sempre justas. Nem sempre precisas. E devem ser toleradas. A não ser que sejam racistas, homotransfóbicas, antissemitas, xenófobas, capacitistas, mas esse assunto fica para uma próxima coluna.
REFERÊNCIAS
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS – Corte IDH: Caso Kimel vs Argentina. 2008
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS – Corte IDH: Caso Alvaréz Ramos vs. Venezuela. 2019