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A participação feminina na política é essencial para uma democracia plural e autêntica. A cota de gênero, prevista no artigo 10, §3º, da Lei nº 9.504/1997, foi concebida como um instrumento de ação afirmativa, destinado a corrigir a desigualdade histórica na representação feminina. Sua finalidade é garantir oportunidades reais de participação, criando um ambiente mais diverso e representativo. Contudo, observa-se uma inversão perversa dessa lógica: a norma tem sido aplicada para punir exatamente aquelas que deveria proteger.
O texto legal determina que cada partido ou coligação preencha o mínimo de 30% e o máximo de 70% das candidaturas de cada sexo. A proposta é proporcionar às mulheres condições concretas de disputar mandatos eletivos em igualdade formal com os homens. Seu espírito é inclusivo, formador, pedagógico. Busca-se uma cultura política mais equânime, promovendo o acesso feminino a espaços historicamente negados.
No entanto, nas últimas eleições, principalmente as ocorridas em 2024, tem-se observado um aumento expressivo das acusações de “candidaturas fictícias” ou “laranjas” contra mulheres. A baixa votação ou a ausência de materiais de campanha tem sido utilizada como argumento para a anulação do Demonstrativo de Regularidade de Atos Partidários (Drap) e para a perda de mandatos de candidatos eleitos.
Em casos extremos, essas mulheres ainda sofrem a declaração de inelegibilidade por oito anos. A fragilidade dessa interpretação salta aos olhos: dados do Observatório Nacional da Mulher na Política (ONMP) mostram que há mais homens do que mulheres com votação zerada [1]. Ainda assim, a investigação de eventual ilícito raramente se estende a esses homens. A seletividade na aplicação da lei é, portanto, evidente.
Ao punir candidatas que, mesmo com estrutura precária, participaram do pleito com boa-fé, o sistema eleitoral transmite uma mensagem de censura e desestímulo. A exigência de comprovação de uma “campanha robusta” para não ser rotulada como “laranja” impõe um critério mais rigoroso para mulheres, reforçando desigualdades. Em vez de incluir, a norma acaba marginalizando. Candidatas reais se veem desencorajadas a participar do processo político, temendo ter sua honra e trajetória questionadas injustamente.
Justiça Eleitoral e Congresso precisam agir
Evidentemente, fraudes devem ser apuradas. No entanto, a responsabilização não pode recair indiscriminadamente sobre mulheres que tiveram desempenho eleitoral modesto. O foco deve estar nos dirigentes partidários que utilizam essas candidaturas para cumprir cotas formais, sem oferecer suporte, estrutura ou respaldo.
São esses dirigentes os verdadeiros arquitetos das irregularidades. Frequentemente, são eles que convencem mulheres a concorrer com promessas vazias de apoio, deixando-as desamparadas durante o processo eleitoral. Assim, é sobre esses agentes — e não sobre as candidatas ludibriadas — que devem recair as sanções mais severas, inclusive a inelegibilidade. A inclusão dos líderes partidários como litisconsortes passivos necessários nas ações de fraude à cota de gênero é essencial à efetividade da legislação [2].
A Justiça Eleitoral tem papel decisivo nesse cenário. Sua atuação deve se pautar por uma hermenêutica responsiva, que leve em conta as desigualdades estruturais do sistema político. A aplicação mecânica da norma, descolada de seu propósito original, deslegitima a intenção do legislador e gera efeitos colaterais perversos. É imperativo distinguir entre as candidaturas fraudulentas e aquelas que apenas não conseguiram superar barreiras socioeconômicas.
Do ponto de vista normativo, o Congresso também precisa agir. A legislação eleitoral carece de maior precisão quanto à caracterização da fraude. Critérios objetivos e instrumentos de incentivo às candidaturas femininas precisam ser definidos com clareza. O financiamento público, o tempo de propaganda e o apoio institucional devem estar articulados de forma concreta às medidas de inclusão.
A cota de gênero representa um instrumento de justiça histórica. Sua aplicação deve respeitar a boa-fé das candidatas, as condições de disputa e o contexto social. Reverter a lógica da inclusão em punição é um retrocesso incompatível com os ideais democráticos. É preciso interpretar a norma com a lente da realidade e da inclusão, sob pena de transformar o remédio democrático da ação afirmativa em veneno institucional contra a representatividade. Que a lei seja caminho de acesso, não armadilha de exclusão.
[1] SILVA, Bianca Maria Gonçalves. Fraude à cota de gênero e violência política:
Análise da jurisprudência até a Súmula 73 do TSE. Boletim Abradep, nº 13, Outubro/24. Disponível aqui.
[2] ConJur. Inclusão dos dirigentes partidários nas ações por fraude à cota de gênero. Disponível aqui.