
ABRADEP dá posse a 112 novos e novas integrantes em solenidade nacional
28/08/2025
‘Quarentena’ das carreiras de Estado
01/09/2025Por Delmiro Campos
A advocacia municipalista, exercida por profissionais privados que assessoram juridicamente prefeituras e câmaras municipais, tem sofrido, não raras vezes, um processo indevido de suspeição generalizada. Auditorias, alguns membros do Ministério Público e colegas das procuradorias de estados e municípios — ressalvada a maioria séria e parceira — por vezes adotam um olhar distante, carregado de preconceito, como se a contratação suplementar de escritórios fosse, por si, indício de irregularidade¹. Essa visão parte de uma premissa equivocada que ignora a natureza personalíssima (intuitu personae), intelectual e estratégica da atividade advocatícia, bem como a realidade multifacetada do federalismo brasileiro. Defender a impossibilidade de sujeitar a advocacia a certames de menor preço não constitui pauta corporativa, mas salvaguarda indispensável ao interesse público, que seria gravemente comprometido pela precarização técnica e pelo aviltamento de uma função essencial ao Estado de Direito².
O erro fundamental da tese que prega a licitabilidade irrestrita reside na tentativa de padronizar o que é, por definição, infungível em sua essência: a expertise, a estratégia e a confiança. A licitação, como procedimento, fundamenta-se na possibilidade de se estabelecerem critérios objetivos para bens e serviços de características uniformes, permitindo competição em igualdade de condições³. Tal premissa mostra-se absolutamente inaplicável ao universo jurídico. Não há como tabular ou mensurar em edital a argúcia de um raciocínio, a profundidade do conhecimento em área especializada, a experiência acumulada em litígios complexos ou a confiança que fundamenta a relação entre gestor público e patrono. A competição por menor preço, nesse contexto, levaria à seleção não do profissional mais capaz, mas daquele que aceita a maior precarização de seu trabalho, com riscos elevados de prejuízos ao erário.
O ordenamento jurídico pátrio, em interpretação atualizada, reconheceu essa distinção. A Lei nº 14.133/2021, ao tratar da inexigibilidade no art. 74, III, prevê a contratação de “serviços técnicos especializados de natureza predominantemente intelectual com profissionais ou empresas de notória especialização, quando houver inviabilidade de competição”⁴. Essa inviabilidade não significa ausência de outros profissionais no mercado, mas sim impossibilidade de comparação objetiva, já que a escolha do patrono jurídico envolve atributos subjetivos como a notória especialização e a confiança. A nova lei superou a exigência da “singularidade” do serviço, presente na antiga Lei nº 8.666/93, focando na natureza do serviço e na qualificação do prestador.
O Supremo Tribunal Federal tem papel central nessa consolidação. Na ADI 6.331/PE, julgada em 2024, a Corte assentou que a autonomia dos municípios (arts. 18 e 30 da CF) impede que constituições estaduais imponham a criação obrigatória de procuradorias municipais⁵. Reconheceu-se a prerrogativa de cada ente de organizar sua assessoria jurídica conforme suas necessidades, admitindo a contratação externa em hipóteses excepcionais e motivadas. Já no RE 656.558/SP, Tema 535 de Repercussão Geral, reafirmou-se a constitucionalidade da contratação direta de serviços jurídicos, desde que cumpridos requisitos como procedimento formal, notória especialização e preço compatível com o mercado⁶.
Essas decisões afastam a visão binária que reduz a inexigibilidade a uma exceção meramente tolerada, reconhecendo-a como instrumento legítimo quando a competição for inviável. A análise dos órgãos de controle, portanto, deve evoluir: não basta perguntar “por que não licitou?”, mas “há motivação técnica robusta que comprove a inviabilidade de competição?”, “o contratado detém notória especialização pertinente?”, “o preço é proporcional à complexidade?”.
Na vivência prática, especialmente em pequenos e médios municípios, a inexistência de quadro jurídico especializado torna a contratação externa não luxo, mas necessidade administrativa. Exigir licitação nesses casos, para causas de alta complexidade como grandes execuções fiscais ou arbitragem em infraestrutura, equivale a condenar a gestão à ineficiência.
Os Tribunais de Contas têm reiterado que a inexigibilidade deve ser exceção, exigindo cinco pontos básicos: (i) justificativa técnica da inviabilidade de competição; (ii) comprovação da notória especialização; (iii) pesquisa de preços; (iv) definição clara do escopo; e (v) fiscalização contratual eficaz⁷. Quando atendidos, não há conflito entre controle e parceria, mas convergência de finalidades.
A nova Lei de Licitações também fortaleceu o papel da assessoria jurídica. O art. 53 determinou que, ao final da fase preparatória, o processo seja submetido a controle prévio de legalidade pelo órgão jurídico, abrangendo inclusive contratações diretas⁸. Essa filtragem é linha de defesa preventiva, conferindo mais responsabilidade e autonomia técnica ao parecerista — tema que encontra respaldo no PL 1.958/2022, em tramitação no Congresso, que busca proteger a independência técnica dos advogados públicos e pareceristas.
No plano acadêmico, Márcia de Barros Lima Santos destaca que a advocacia pública municipal qualifica a gestão e a prestação de serviços, devendo atuar no planejamento, na execução e no monitoramento de políticas públicas, com independência técnica e autonomia institucional⁹. Essa concepção aplica-se também à advocacia municipalista privada quando legitimamente chamada a suprir lacunas.
A prática confirma: o advogado municipalista vive entre o gabinete do prefeito, a secretaria de finanças, a controladoria, o Tribunal de Contas e o fórum. Um dia redige termo de referência para saúde; no outro, defende modelagem de licitação; no seguinte, participa de audiência pública; e, depois, organiza cobrança de créditos. Seu diálogo interno é com a legalidade, a transparência, o orçamento e a política pública. Essa processualidade, mais que atos isolados, demonstra o caráter essencial da advocacia municipalista à boa governança.
Reafirmar essa legitimidade não é corporativismo, mas garantia de que o município tenha, aqui e agora, a capacidade jurídica para cumprir a Constituição. Quando o controle presume desvio onde há técnica, todos perdem; quando reconhece a boa técnica, todos ganham. É nesse pacto — entre procuradorias, advocacia contratada, Ministério Público, Tribunais de Contas, OAB e sociedade — que a advocacia municipalista deve seguir: parceira, exigente, independente e comprometida com resultados públicos.
Referências
1. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
2. NIEBUHR, Joel de Menezes. Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 2. ed. Zenite, 2023.
3. JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. São Paulo: RT, 2016.
4. BRASIL. Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021.
5. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 6.331/PE. Rel. Min. Alexandre de Moraes. Julgamento em 15 abr. 2024.
6. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 656.558/SP, Tema 535 da Repercussão Geral. Rel. Min. Dias Toffoli. Julgamento em 25 out. 2024.
7. TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. Jurisprudência sobre inexigibilidade de licitação em serviços advocatícios.
8. BRASIL. Lei nº 14.133/2021, art. 53.
9. SANTOS, Márcia de Barros Lima. [Obra acadêmica sobre advocacia pública municipal].