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30/04/2025Por Kaleo Dornaika Guaraty e Pedro Sberni Rodrigues
Desde as denúncias de “disparos em massa” no WhatsApp em 2018, o Brasil acompanha a rápida passagem da propaganda política coletiva para a segmentação algorítmica precisa — o microtargeting. Este artigo, fruto das reflexões da dissertação de Pedro Sberni no programa de mestrado da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (FDRP/USP) analisa em profundidade como essa técnica evoluiu, quais riscos oferece à democracia e que respostas o ordenamento jurídico construiu entre 2018 e 2024.
O que é microdirecionamento — e por que se tornou problema
Microdirecionar significa usar grandes bases de dados e inteligência artificial para entregar mensagens políticas calibradas ao perfil psicográfico de grupos mínimos ou mesmo de indivíduos. A prática, popularizada após o escândalo Cambridge Analytica, “personaliza as mensagens eleitorais explorando vulnerabilidades emocionais, em ambiente opaco e difícil de auditar”. Quando cada eleitor enxerga uma versão diferente do debate, perdem-se a transparência, o contraditório e a igualdade de oportunidades que alicerçam o pleito.
Mesmo assim, a autora aponta “lacunas substanciais”, pois o sistema ainda opera com conceitos tradicionais — abuso de poder econômico e uso indevido dos meios de comunicação — que não alcançam toda a complexidade do microtargeting.
Entre 2018 e 2024, o marco regulatório da propaganda eleitoral on-line evoluiu de forma gradual, mas significativa. A Lei 9.504/1997, embora concebida muito antes da explosão das redes sociais, foi alterada para permitir o impulsionamento pago de conteúdo eleitoral na internet por meio do artigo 57-C; ainda assim, deixou sem disciplina específica a prática da microsegmentação de público. Já a Lei 13.709/2018, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, passou a incidir sobre o tratamento de dados eleitorais, fornecendo princípios gerais de privacidade e segurança, mas sem abordar as peculiaridades do uso político de perfis comportamentais.
Em 2019, a Resolução TSE 23.610 estabeleceu exigências mínimas de transparência para anúncios impulsionados e reafirmou o compromisso institucional de interferir o menos possível no conteúdo das mensagens, adotando uma postura de “interferência mínima”.
O grande salto, porém, veio com a Resolução TSE 23.732, de 2024: o texto definiu expressamente o que é “microdirecionamento”, proibiu a utilização de dados sensíveis sem consentimento explícito, instituiu a obrigatoriedade de relatórios de impacto para tratamentos considerados de alto risco e criou sanções específicas para o uso abusivo de algoritmos em campanhas. Assim, o arcabouço jurídico brasileiro passou a reconhecer formalmente os riscos do microtargeting e a oferecer instrumentos mais robustos para conter práticas que ameacem a igualdade e a transparência do processo eleitoral.
Sem precedentes que mencionem “microdirecionamento” de forma explícita até 2024, o tribunal tem enquadrado condutas digitais em categorias amplas. Casos de disparos em massa motivaram cassações de mandatos estaduais e municipais nos quais se reconheceu ilicitude por disparidade de armas e violação da isonomia. A expectativa é que, após a Res. 23.732/2024, futuras decisões internalizem a nova taxonomia.
O problema do microdirecionamento vem tomando proporções vultosas. As campanhas brasileiras internalizaram o microtargeting como ferramenta-chave, potencializando desequilíbrios entre quem detém ou não capacidade de tratamento avançado de dados. Eleitores raramente percebem que estão recebendo mensagens personalizadas; relatórios públicos ainda são raros e pouco acessíveis. Gastos declarados com impulsionamento de conteúdo saltaram de R$ 79 mi (2018) para R$ 376 mi (2022) — oitava maior despesa de campanha naquele pleito — e mantiveram patamar superior a R$ 300 mi nas municipais de 2024. A curva confirma a centralidade crescente da segmentação paga na disputa política.
Enquanto isso, em outros sistemas jurídicos, a questão se desenvolve de modo acelerado. A União Europeia avança para restringir o direcionamento político comportamental: a proposta de Regulamento 2021/0381 veda o uso de dados sensíveis e exige divulgação dos critérios algorítmicos. Essas iniciativas pressionam o Brasil a seguir “ruma mais rigoroso” caso deseje proteger a soberania popular frente às big techs.
Recomendações
Com contribuição científico-análitica para o enfrentamento da questão, apresenta-se as seguintes recomendações. A instituição de relatórios de transparência de caráter obrigatório, nos quais o anunciante deverá detalhar os critérios de segmentação adotados, os valores despendidos e o alcance efetivo das mensagens. Defende-se, igualmente, a realização de auditorias independentes sobre os sistemas de recomendação, seguindo a lógica das “relações de risco elevado” já consagrada pela Resolução nº 23.732/2024. Propõe-se ainda que as sanções aplicadas levem em conta, de forma proporcional, tanto o volume de dados pessoais tratados quanto o impacto potencial ou real da prática no resultado eleitoral. Recomenda-se, paralelamente, a promoção contínua de educação midiática, de modo a reforçar a autonomia cognitiva dos eleitores diante das estratégias de persuasão algorítmica.
Por fim, sugere-se a criação de um regime de cooperação em tempo real entre o TSE, a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (valendo-se do Acordo já firmado em 2021) e as plataformas digitais, com compartilhamento de conjuntos de dados que permitam investigar rapidamente indícios de abuso. Conjugadas, essas medidas — em perfeita consonância com a tese de que é preciso articular auditoria algorítmica a mecanismos robustos de participação social — procuram compatibilizar a inovação tecnológica com a preservação dos pilares democráticos.
Conclusão
O período 2018-2024 expôs tanto o poder do microdirecionamento quanto a insuficiência do nosso arcabouço regulatório. A doutrina do “Constitucionalismo Digital” sugere olhar para além da disciplina infraconstitucional: cabe exigir que o ambiente informacional respeite os valores de isonomia, publicidade e liberdade de formação da vontade política inscritos na Constituição.
Sem transparência e freios efetivos ao uso de dados sensíveis, o risco é que a disputa eleitoral se converta em uma sucessão de campanhas invisíveis, guiadas por algoritmos que capturam — e moldam — a mente do eleitor. Avançar nessa agenda não é opção tecnocrática, mas condição para que o voto continue sendo instrumento de autodeterminação popular, e não mera resposta a estímulos invisíveis.