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O STF está julgando mais do que a constitucionalidade do art. 19 do Marco Civil da Internet, a lei 12.965/14, que estabelece direitos e deveres para o uso da internet no Brasil. É fundamental compreender que esse julgamento afeta não apenas os usuários frequentes das redes sociais, mas toda a sociedade, já que o Marco Civil regula integralmente a infraestrutura digital brasileira, incluindo provedores de conexão, aplicativos de mensagens, plataformas de comércio eletrônico e outras aplicações digitais. O artigo em discussão define que as plataformas só podem ser responsabilizadas por danos causados por terceiros se descumprirem uma ordem judicial específica para remoção de conteúdo, com algumas exceções. Para os ministros Dias Toffoli e Luiz Fux, relatores dos recursos em julgamento, e Alexandre de Moares, a exigência de notificação judicial para retirada de conteúdo ofensivo é inconstitucional. Já os ministros Luís Roberto Barroso (presidente), Flávio Dino, Cristiano Zanin e Gilmar Mendes consideram que a norma é parcialmente inconstitucional, e tiveram conclusões distintas entre praticamente todos os votos.
Não há dúvidas de que a decisão final deste julgamento tem implicações diretas para o fortalecimento ou enfraquecimento da democracia brasileira, e mesmo ainda não finalizado o julgamento, as posições distintas entre todos os ministros mostram a complexidade do tema. O ministro Cristiano Zanin destacou em seu voto que, apesar do objetivo original do Marco Civil ser a proteção à liberdade de expressão, a realidade atual demonstrou que a regra atual facilita a propagação de conteúdos ilícitos, afetando profundamente direitos fundamentais individuais e coletivos, além do próprio Estado Democrático de Direito. Gilmar Mendes foi mais longe e afirmou ser necessário fiscalização de um órgão regulador, e considera que a ANPD – Autoridade Nacional de Proteção de Dados poderia desempenhar esse papel, algo não citado por outros ministros, e que, quando da elaboração do Marco pelo Congresso Nacional, foi rechaçado.
Por outro lado, o ministro André Mendonça, único até aqui a considerar o artigo constitucional, argumentou que a exigência de ordem judicial prévia para remoção de conteúdos é essencial para evitar censura privada e garantir a pluralidade e liberdade de expressão na internet. Segundo Mendonça, permitir que as plataformas removam conteúdos sem uma decisão judicial poderia levar a abusos e prejudicar a liberdade de debate democrático. Para ele, essa proteção é crucial para manter a internet como um espaço aberto e plural, em alinhamento com princípios democráticos.
O tema é altamente técnico e complexo, o que explica a diversidade e a dissonância dos votos dos ministros. O julgamento mobilizou dezenas de segmentos da sociedade civil, especialistas, órgãos públicos e entidades, cuja participação foi fundamental para enriquecer o debate. O IDEC – Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, por exemplo, defendeu a constitucionalidade do artigo 19, reconhecendo que o Marco Civil trouxe avanços para a proteção de direitos dos usuários, mas ressaltou que a responsabilização das plataformas deve ocorrer em harmonia com outros marcos legais, como o Código de Defesa do Consumidor, sem abrir espaço para remoções arbitrárias de conteúdo.
Há que se ater, ainda, para o perigo de que uma responsabilização genérica acabe reforçando a concentração de mercado, já que apenas as plataformas de maior porte conseguiriam arcar com os custos de detecção automática de discurso ilícito em grande escala. Esse alerta converge com a experiência da União Europeia desde que o DSA – Digital Services Act entrou em vigor, em agosto de 2023, impondo avaliações de risco e requisitos de transparência pesados sobre as VLOPs – Very Large Online Platforms – obrigações que, mesmo robustas, dependem de fiscalização consistente para efetividade. Em outras palavras, o cenário europeu demonstra que criar regras mais duras não basta: é preciso capacidade regulatória, clareza procedimental e salvaguardas para evitar que o remédio comprometa a diversidade de vozes que se pretende proteger.
A título de comparação, nos Estados Unidos, a lei segue a mesma orientação do artigo 19 brasileiro. A Europa também enfrenta desafios semelhantes, mesmo tendo uma legislação diferente da brasileira e considerada mais rígida. Recentemente, na Romênia, a proliferação de crimes digitais levou à anulação de uma eleição, demonstrando que problemas relacionados à circulação de conteúdos ilícitos e interferências indevidas na esfera pública são desafios globais que evidenciam que o direito e a legislação, sozinhos, não são capazes de resolver questões sociais profundas.
Outro ponto de importância neste debate, e que em tratados que o Brasil ratificou, como o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana de Direitos Humanos, há normas expressas sobre limitação à liberdade de expressão que devem ser observadas. O combate à desinformação e à violência digital deve ocorrer por meios legítimos e dentro dos limites institucionais, cabendo ao Congresso revisar as leis e ao Judiciário respeitar suas competências. Restrições à liberdade de expressão só são legítimas se previstas em lei, pois agir fora desse princípio compromete a transparência, a previsibilidade e a legitimidade democrática.
De certeza, temos apenas que as consequências do julgamento serão sentidas por toda a sociedade. A decisão do STF pode marcar um novo capítulo na regulação da internet no Brasil, impactando não só no uso das redes sociais, mas também de toda a relação social e comercial que temos hoje na internet. Resta saber se o resultado representará uma evolução para a democracia digital brasileira, equilibrando liberdade e responsabilidade, ou se abrirá espaço para novos desafios e inseguranças em um ambiente cada vez mais central para a vida pública e privada do país.