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23/07/2025Por Francieli de Campos e Elder Maia Goltzman
A pouco mais de um ano do início oficial da corrida eleitoral de 2026, episódios recentes no Brasil e nos Estados Unidos evidenciam o potencial da inteligência artificial para polarizar ou distorcer o debate democrático em escala global.
No Brasil, certos atores políticos têm aumentado o uso de vídeos criados por IA em uma campanha digital direcionada ao Poder Legislativo. Essa estratégia se tornou mais proeminente após a decisão dessa casa de reverter um aumento do IOF, com o objetivo de retratá-la como priorizando os “ricos sobre os pobres” e dificultando iniciativas como a tributação de bilionários, bancos e empresas de jogos.
Os vídeos utilizam atores virtuais e caricaturas: engravatados consumindo champanhe e recusando dividir a conta, ou paródias em que o presidente da Câmara é chamado de “Hugo Nem Se Importa”. A campanha mobilizou influenciadores e páginas alinhadas ao governo. Recentemente, lançou outro vídeo feito com IA generativa em que mostra um diálogo satírico entre o presidente dos EUA, Donald Trump, e o ex-presidente Jair Bolsonaro.
Essa mobilização digital representa uma novidade estratégica para a esquerda, tradicionalmente menos ágil nesse campo, e antecipa o tom da comunicação política para 2026, em que a estética chamada de cheapfake (vídeo falso, mas não tão elaborado como uma deepfake) pode ser uma arma para fugir da regulamentação legal.
Fraude nos EUA
Nos Estados Unidos, o alerta veio de uma fraude sofisticada: um impostor utilizou IA para clonar a voz do secretário de Estado, Marco Rubio, e enviou mensagens de texto e áudio para autoridades americanas e estrangeiras. O golpe, que usou poucos segundos de áudio original para criar a imitação, enganou pelo menos cinco altos funcionários, incluindo três ministros das Relações Exteriores, antes de ser descoberto.
Segundo o Departamento de Estado, o objetivo do fraudador era obter acesso a informações confidenciais ou contas de autoridades, utilizando mensagens no aplicativo Signal e e-mails falsos. A polícia federal americana investiga o caso, que expôs a facilidade e o baixo custo das ferramentas de clonagem de voz baseadas em IA, além do risco crescente de ataques de engenharia social de alta precisão.
Apesar das diferenças, ambos os casos convergem ao demonstrar como a IA barateia e amplia a produção de conteúdos polêmicos ou enganosos: no Brasil, com foco na viralização visual e narrativa; nos EUA, com ataques personalizados e sofisticados.
Regulação da IA no sistema eleitoral
Enquanto o Congresso e a Justiça Eleitoral buscam meios de regular sobre o uso da inteligência artificial, partidos e grupos políticos testam as brechas do sistema. Atualmente, não há uma legislação específica para o uso de inteligência artificial na propaganda partidária. As campanhas e a comunicação dos partidos são regidas pela Lei dos Partidos Políticos (Lei nº 9.096/1995), que não prevê as particularidades das novas tecnologias generativas. Essa lacuna abre espaço para que os partidos explorem os limites do que é permitido, testando as fronteiras da ética e da legalidade.
A regulamentação do uso da IA para partidos e candidatos é uma tarefa complexa, não apenas pelo dinamismo acelerado das novas tecnologias, que evoluem mais rápido do que a capacidade do legislador de criar normas, mas também porque é praticamente impossível proibir ou controlar que os próprios eleitores façam uso dessas ferramentas. Cidadãos podem utilizar aplicativos de IA para criar e disseminar conteúdos de forma anônima ou descentralizada, seja para apoiar ou para criticar um candidato, tornando o rastreamento e a punição de excessos um desafio monumental.
Soma-se a isso o fato de que a liberdade de expressão do eleitor é uma garantia constitucional e um pilar da democracia, que deve ser preservada. Qualquer tentativa de regulação excessiva pode esbarrar no risco de censura ou de cercear o direito do cidadão de se manifestar politicamente. Por isso, equilibrar a necessidade de coibir a desinformação e o uso malicioso da IA com a proteção das liberdades individuais torna a criação de uma legislação sobre o tema um quebra-cabeça jurídico e político de difícil solução.
Licitude da inteligência artificial
Há de se pensar, ainda, que existem usos lícitos da inteligência artificial. A sátira, ironia e crítica política podem ser feitas utilizando ferramentas de IA generativa enquanto um mecanismo que materializa a liberdade de expressão no mundo digital. Um exemplo recente é a personagem Marisa Maiô. Em seu programa, integralmente criado por ferramentas de inteligência artificial, ela entrevista pessoas e traz falas jocosas demonstrando que a partir de agora devemos estar preparados para interagir com figuras cujos corpos não existem, mas representam a expressão artística de alguém.
Todavia, criar cenas ou falas que nunca existiram, envolvendo pessoas reais, e sem qualquer sinalização ao público externo, abre espaço para que a desinformação floresça. A ausência de letramento digital, o hiper-realismo e a rápida evolução da qualidade das mídias são elementos de uma fórmula com alto potencial danoso. Especialmente porque a desinformação trabalha gatilhos emocionais e sentimentos como a raiva, o medo e a ansiedade, deixando o raciocínio crítico em segundo plano.
Na Argentina, a Câmara Nacional Eleitoral só confirmou agora em julho a primeira decisão por difusão de fakenews em campanha eleitoral, relativo a um ato ocorrido em dezembro de 2021, sem que o caso tenha recebido qualquer atenção expressiva na mídia ou nas cortes locais. Até o momento, permanece isolado como o único procedimento desse tipo no país, demonstrando que o tema desperta muito menos preocupação institucional do que no Brasil, onde suspeitas de deepfakes ou desinformação eleitoral geram imediata mobilização normativa e debate público intenso.
Maturidade cívica é fundamental
É importante destacar que democracias consolidadas operam normalmente em ambientes muito menos regulados que o do Brasil. A experiência argentina demonstra que não é preciso abarcar todos os ângulos em normas para que o sistema funcione. Basta um Judiciário atuante, mecanismos de fiscalização ágeis e a participação ativa da sociedade civil. Mais regulamentação, por si só, não gera mais democracia. Ao contrário, pode engessar a livre circulação de ideias e deslocar o protagonismo do cidadão para o Estado.
No entanto, o completo vácuo deixa os atores sem qualquer diretriz de atuação, inclusive o próprio Poder Judiciário, que passa a analisar os casos sem amparo em norma. Traçar limites para o legítimo exercício da liberdade de expressão não é uma tarefa simples. Se proibir é esbarrar na censura, liberar todo tipo de conteúdo é autorizar uma poluição completa do fluxo informacional, possibilitando que a vontade do eleitor esteja amparada em falácias.
É fundamental compreender que o direito, por sua natureza, não é capaz de esgotar a previsão de todas as condutas e inovações que podem surgir na sociedade. Por isso, não se pode colocar sobre a lei a tarefa e a expectativa de que tudo ocorrerá bem apenas com a sua existência. A regulação é um instrumento importante, mas a integridade do processo democrático dependerá também da maturidade cívica, da educação midiática e da vigilância constante da própria sociedade civil — e não de sobreposições de regras. Mais legislação não significa mais democracia. O desafio de equilibrar normas e liberdade é não de vista que a força do regime democrático reside na participação crítica dos seus cidadãos.