
Radical de centro
19/09/2025
Lei dos Partidos Políticos completa 30 anos em meio a debates sobre reforma
19/09/2025Por Leonardo Bruno Pereira de Moraes
A trajetória do foro por prerrogativa de função no Supremo Tribunal Federal, nas últimas três décadas, revela um movimento pendular entre dois polos normativos: de um lado, a leitura do foro como garantia institucional do cargo (ou do mandato), voltada a proteger a independência funcional; de outro, a percepção do foro como exceção ao juiz natural, cuja interpretação deve ser restritiva para não corroer a igualdade republicana. Esse pêndulo pode ser observado em três marcos decisórios: 1) o cancelamento da Súmula 394 no Inquérito 687 (1999); 2) a restrição material e temporal do foro na AP 937 (QO) (2018); e 3) a redefinição no HC 232.627 (2025), que admite a subsistência do foro após o término do mandato, quando o delito tiver sido cometido no exercício e em razão do cargo.
Para situar a evolução jurisprudencial, é útil mapear a arquitetura constitucional do foro por prerrogativa de função. Nesse sentido, a Constituição distribui competências penais originárias segundo a relevância institucional do cargo e a lógica federativa, sempre como exceção ao juiz natural comum. No plano federal, o presidente da República é processado e julgado pelo Supremo Tribunal Federal por infrações penais comuns (artigo 102, I, “b”), ao passo que os crimes de responsabilidade seguem regras próprias, de natureza político-jurisdicional, não tratadas aqui.
Os membros do Congresso (deputados federais e senadores) também se submetem ao STF nas infrações penais comuns (artigo 102, I, “b”), sob o regime das imunidades parlamentares (artigo 53), que modulam o modo de persecução sem criar foro autônomo — a inviolabilidade por opiniões, palavras e votos e a possibilidade de sustação do andamento do processo, por decisão da respectiva Casa, operam como contrapesos institucionais dentro da própria competência do Supremo.
No âmbito subnacional, a Constituição desloca a competência originária para cortes de cúpula adequadas ao desenho federativo. Os governadores de estado e do Distrito Federal respondem no Superior Tribunal de Justiça por crimes comuns (artigo 105, I, “a”); quanto a crimes de responsabilidade, há regime próprio que não será objeto desta análise. No plano municipal, os prefeitos são processados e julgados perante o Tribunal de Justiça (artigo 29, X), solução que retira o feito do juiz singular e o submete a um colegiado estadual, preservando o distanciamento mínimo em relação ao ambiente político local; quanto às hipóteses de infrações político-administrativas, igualmente se aplicam regras específicas.
Esse mosaico evidencia uma estratificação do foro: presidente e parlamentares no STF; governadores no STJ; prefeitos nos TJs. Em todos os casos, a prerrogativa aparece como mecanismo excepcional de proteção funcional — e não como atributo pessoal do agente. É sobre esse alicerce normativo que a jurisprudência do STF, nas últimas décadas, operou seus movimentos de restrição, estabilização e recalibração, buscando compatibilizar a garantia institucional com as exigências republicanas de igualdade e juiz natural.
Antes de 1999: paradigma da Súmula 394
Sob a égide da Constituição de 1946, o STF consolidou a Súmula 394 — “Cometido o crime durante o exercício funcional, prevalece a competência especial por prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados após a cessação daquele exercício” —, de modo que bastava a prática do fato durante o mandato para que a competência especial perdurasse mesmo após o seu término. A racionalidade subjacente era institucional: o foro funcionava como escudo ao livre exercício de funções de Estado contra eventuais pressões do juízo comum, servindo à independência do cargo e não à concessão de vantagem pessoal ao agente.
Por muito tempo, não houve dissenso quanto ao que fora assentado na Súmula 394, mas, ao final da década de 1990, amadureceu o questionamento sobre a compatibilidade dessa “perenidade” do foro com os valores de igualdade e com a própria ideia republicana de excepcionalidade das competências originárias. Na prática, o modelo produzia a perpetuação da competência especial por referência ao momento do fato, favorecendo a ultratividade do foro mesmo quando extinto o vínculo funcional; com isso, processos permaneciam nas cortes superiores ainda que o titular já não ocupasse o cargo, deslocando o centro de gravidade da prerrogativa do campo estritamente funcional para um efeito pessoal que o debate posterior buscaria reavaliar.
1999-2018: o Inquérito 687 e cancelamento da Súmula 394
O Inquérito 687 (QO) marca a inflexão: o STF cancela a Súmula 394 e repõe o foro no seu âmbito estrito, afirmando que “as prerrogativas de foro, pelo privilégio que de certa forma conferem, não devem ser interpretadas ampliativamente, numa Constituição que pretende tratar igualmente os cidadãos”. A partir dessa premissa, fixa-se a tese de que a prerrogativa visa “garantir o exercício do cargo ou do mandato, e não a proteger quem o exerce. Menos ainda quem deixa de exercê-lo”, de modo que, cessado o mandato, cessa também o foro, permanecendo as regras funcionais apenas enquanto durar o exercício da função.
A razão de decidir é abertamente republicano-igualitária: por se tratar de exceção ao juiz natural, a leitura do foro deve ser restrita; deslocá-lo para a pessoa, e não para o cargo, desnatura o instituto, afronta a igualdade e banaliza a competência excepcional. Coerente com esse vetor, a Corte rejeita, ainda na QO, a edição de novo enunciado que preservasse a competência especial para inquéritos ou ações iniciados após a cessação do mandato, registrando, contudo, a necessidade de cautelas de transição para evitar paralisia ou retrocesso na persecução penal.
Sob esse aspecto, o debate mais sensível concentra-se no alcance temporal da virada e nos efeitos sobre processos em curso (ex nunc versus retroatividade), razão pela qual o tribunal explicita balizas e mecanismos de transição para compatibilizar segurança jurídica e efetividade. No plano prático, a alteração é substancial e a regra torna-se clara a partir de 1999: extinto o mandato ou cargo, a competência se desloca ao primeiro grau. Com isso, desincentivam-se estratégias litigiosas baseadas na ultratividade do foro e reancora-se a prerrogativa em sua essência institucional: proteger o exercício da função, não conferir um benefício residual ao indivíduo.
2018-2025: AP 937 (QO) e dupla restrição
Em 2018, na Questão de Ordem da Ação Penal 937, o Plenário agregou dois filtros ao foro por prerrogativa de função: (1) material, ligado à natureza do fato analisado, e (2) temporal e estabilizador, ligado ao momento processual. Por maioria, assentou-se que “o foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas” e, cumulativamente, que “após o final da instrução processual, com a publicação do despacho de intimação para apresentação de alegações finais, a competência […] não será mais afetada em razão de o agente vir a ocupar cargo ou deixar o cargo que ocupava”. Determinou-se, ainda, a aplicação imediata do novo entendimento, com ressalva dos atos e decisões proferidos sob a jurisprudência anterior, de modo a compatibilizar segurança jurídica e eficácia.
Nesse contexto, a razão de decidir da corte parte de uma leitura estrita das competências originárias, por se tratar de uma exceção ao juiz natural, e enfrenta o problema do “foro itinerante” por meio de um marco objetivo de estabilização. Assim, o voto condutor do acórdão registra a preocupação com a “perpetuação de jurisdição” e justifica a fixação do ponto de não retorno na fase de alegações finais exatamente para impedir deslocamentos táticos de competência por mudanças supervenientes de cargo dos envolvidos.
No plano prático, a decisão recalibrou o foro em duas frentes. Materialmente, excluiu do âmbito da prerrogativa os fatos sem nexo funcional, recentrando a competência excepcional naquilo que, de fato, diz respeito ao exercício das funções. Temporalmente, barrou mudanças estratégicas de instância após as alegações finais, fixando um marco processual que impede idas e vindas conforme a conveniência do momento político. A partir desse regramento, diversos feitos foram remetidos ao primeiro grau, e o tribunal passou a aferir caso a caso a consistência do nexo “em razão do cargo”, evitando que a exceção se dilatasse por analogias indevidas e preservando a coerência do novo arranjo.
2025-hoje: HC 232.627 e subsistência do foro após o mandato
No HC 232.627, o STF promove a última virada: o Plenário admite que, quando o crime tiver sido cometido no exercício e em razão do cargo, o foro por prerrogativa subsiste mesmo após o afastamento do agente, firmando a tese de que “a prerrogativa de foro para julgamento de crimes praticados no cargo e em razão das funções subsiste mesmo após o afastamento do cargo, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados depois de cessado seu exercício”. Deste modo, o acórdão reafirma os parâmetros já consolidados: delitos anteriores à diplomação permanecem no primeiro grau e a necessidade do crime ser em razão do cargo, em harmonia com a AP 937.
Contudo, a razão de decidir desloca o centro de gravidade para o critério material — o nexo “em razão do cargo” —, partindo da ideia de que a proteção institucional ainda reclama tratamento excepcional mesmo quando o mandato já se encerrou, sempre que o fato tenha nascido do exercício funcional; com isso, busca-se evitar que a cessação do vínculo, por quaisquer razões, quebre a unidade institucional do caso analisado e estimule incentivos processuais disfuncionais, preservando o julgamento na instância constitucionalmente competente. No plano prático, o novo recorte mitiga deslocamentos automáticos ao primeiro grau quando houver nexo funcional inequívoco, desestimula estratégias de renúncia oportunista no curso dos processos e mantém a necessidade de relação do crime com o cargo, sem afastar a cláusula temporal que reserva ao juízo comum os crimes pré-diplomação.
Em certa medida, a solução adotada pelo STF se reaproxima da linha proposta pelo voto-vista vencido do ministro Sepúlveda Pertence no Inquérito 687, em 1999. Naquela oportunidade, Sepúlveda Pertence alegou que “para a tranquilidade no exercício do cargo ou do mandato – se para essa tranquilidade contribui, como pressupõe a Constituição, a prerrogativa de foro – ao seu titular mais importa tê-lo assegurado para o julgamento futuro dos seus atos funcionais do que no curso da investidura, quando outras salvaguardas o protegem” ¹.
Importa destacar que, no ponto específico da manutenção do foro após o término do mandato mesmo sem instrução encerrada, houve reposicionamentos relevantes em relação à orientação firmada na AP 937. Nesse aspecto, os ministros Luís Roberto Barroso, Gilmar Mendes, Alexandre de Moraes e Dias Toffoli — que em 2018 compuseram a corrente restritiva (foro apenas para crimes no cargo e em razão dele, com estabilização só após as alegações finais) — aderiram, no HC 232.627, à tese de subsistência do foro pós-mandato para crimes praticados no exercício e em razão do cargo, abrangendo inclusive hipóteses em que a denúncia é oferecida depois de encerrado o mandato. Permaneceram na linha anterior, e, portanto, vencidos em 2025, os ministros Edson Fachin, Cármen Lúcia e Luiz Fux. Registre-se, por fim, que os ministros Nunes Marques, Cristiano Zanin e Flávio Dino não participaram do julgamento de 2018, razão pela qual não integram essa análise.
Garantia do cargo, não privilégio pessoal
O foro por prerrogativa de função deve ser compreendido como garantia institucional do livre exercício do mandato ou cargo, e não como privilégio pessoal. Disso decorrem duas premissas: (1) em primeiro lugar, a prerrogativa deve proteger o mandato, assegurando independência decisória e mitigando interferências locais; não é um bônus individual, mas um mecanismo que se ativa porque há cargo. Não por acaso, no Inquérito 687 (QO) o STF registrou que “a prerrogativa de foro visa a garantir o exercício do cargo ou do mandato, e não a proteger quem o exerce. Menos ainda quem deixa de exercê-lo”; e (2) em segundo lugar, por excepcionar o juiz natural, o foro demanda interpretação estrita, sob pena de desnaturar a própria exceção e vulnerar a igualdade. Ao cancelar a Súmula 394, o Supremo fixou esse freio hermenêutico: “as prerrogativas de foro […] não devem ser interpretadas ampliativamente, numa Constituição que pretende tratar igualmente os cidadãos”.
Dito isso, a tese vigente no HC 232.627 contém um ônus argumentativo que, a rigor, não se cumpre: se o bem jurídico tutelado é a liberdade do exercício do cargo, encerrado esse exercício, desaparece o fundamento da prerrogativa. Manter o foro após o término — ainda que apenas quando o fato tenha sido no exercício e em razão do cargo — reintroduz, por via reflexa, a lógica pessoalizante que o Tribunal rejeitou ao cancelar a Súmula 394.
Sob essa perspectiva, relevante a passagem do voto do ministro Moreira Alves no Inquérito 687 que disserta sobre a interpretação restritiva do foro: “a prerrogativa de foro é, sem dúvida, excepcional. Ela afasta o Juiz natural nos termos estritos da Constituição, ou seja, em favor do parlamentar que permaneça no exercício do mandato durante o processo e por ocasião do julgamento por esta Corte. A Constituição não diz que essa prerrogativa persiste, depois de o parlamentar deixar de sê-lo, se o crime de que ele é acusado for cometido durante o exercício do mandato, nem que o tenha sido em decorrência desse exercício” ².
É verdade que a corte em 2018 reconduziu a solução a um critério material estrito (“em razão do cargo”), pretendendo evitar manobras e assegurar a unidade de tratamento. Todavia, esse argumento não basta para transpor a barreira teórica central: se não há mais mandato, não há risco atual ao livre exercício. Sendo assim, o que resta é, no máximo, um rescaldo institucional do passado — insuficiente para justificar um foro excepcional.
Em termos de igualdade, a permanência do foro após o mandato cria uma assimetria sem contrapartida funcional: dois cidadãos, ambos hoje sem cargo, responderão perante juízos diversos por fatos pretéritos, apenas porque um deles já ocupou função que não ocupa mais. Esse arranjo, avançando sobre a exceção, reaproxima o sistema da lógica que o STF afastou em 1999, quando desautorizou leituras ampliativas da prerrogativa.
Traz-se, nesse aspecto, trecho do voto do ministro Carlos Velloso no Inquérito 687, que subsidiou a revogação: “os cidadãos devem ser julgados pelo juiz natural de todos eles. Assim, as normas que estabelecem foro privilegiado, que é o nome correto do foro por prerrogativa de função, devem ser interpretadas em sentido estrito, sem possibilidade de ampliação”³.
Do ponto de vista prático, os objetivos legítimos de evitar fraudes (renúncias oportunistas) e travar o foro itinerante já haviam sido satisfatoriamente atendidos pela AP 937 (QO) ao: (1) restringir o foro a crimes no cargo e em razão do cargo e (2) estabilizar a competência após as alegações finais. Assim, a solução da QO esvaziou o principal incentivo à manipulação da competência, preservando a teleologia original do foro (proteção enquanto se exerce o cargo) sem prorrogar efeitos depois de cessado o mandato. Por outro lado, o HC 232.627, ao restabelecer uma ultratividade material (ainda que cirúrgica), tensiona a coerência do sistema com a premissa republicana e o princípio da igualdade entre brasileiros.
Em síntese: garantia institucional não se converte em privilégio residual. Extinto o mandato, extingue-se a prerrogativa — como a corte expressamente registrou em 1999 — sob pena de violar a igualdade e o juiz natural. Destaca-se que o bem tutelado não mais subsiste com o final do mandato. Para coibir fraudes, bastam as travas processuais da AP 937, e para preservar a igualdade, impõe-se não estender o foro para além do mandato.
Referências:
STF. HC nº 232.627, rel. min. Gilmar Mendes, plenário, j. em 12/03/2025.
STF. AP nº 937, rel. min. Roberto Barroso, plenário, j. em 03/05/2018.
STF. Inq nº 687, rel. min. Sidney Sanches, Plenário, j. em 25/08/1999.
Notas:
¹Voto do min. Sepúlveda Pertence no Inq nº 687, p. 263.
²Voto do min. Moreira Alves no Inq nº 687, p. 285.
³Voto do min. Carlos Velloso no Inq nº 687, p. 295.