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13/10/2025
Liberdade de expressão não é passaporte para impunidade
16/10/2025Por Sérgio Melo
O novo entendimento do TSE combate fraudes à cota de gênero, fortalecendo a representatividade feminina e promovendo equilíbrio e segurança eleitoral.
Há um tempo, as mulheres no Brasil lutaram pelo direito, ao menos, de votar e, consequentemente, de serem votadas – direito que só foi garantido em 1932, quando o presidente Getúlio Vargas assinou, no dia 24 de fevereiro, o Código Eleitoral de 1932. Registro que a então presidente Dilma Rousseff sancionou a lei 13.086/15, instituindo o Dia da Conquista do Voto Feminino.
O TSE divulgou dados das eleições municipais de 2024, revelando que as mulheres representam a maioria do eleitorado brasileiro: 81.806.914 eleitoras, o que equivale a 52,47% do total. Os homens, por sua vez, totalizam 74.076.997 eleitores (47,51%).
O projeto De Olho nas Ruas publicou, em setembro de 2025, uma pesquisa que é relevante para o presente artigo, trazendo dados que servem como reflexão:
Entre 2020 e 2024, as eleições municipais registraram um crescimento modesto na participação feminina. Conforme o relatório “Desigualdade de gênero nas eleições proporcionais de 2020 e 2024: fatores associados ao desempenho eleitoral das mulheres”, as mulheres passaram de 34,6% para 35,3% do total de candidaturas a vereador. A taxa de sucesso (eleições efetivas) também aumentou, de 5,5% para 7,2%. No entanto, os homens mantiveram vantagem expressiva, com taxas de 15,2% (2020) e 17,6% (2024), refletindo a persistência de barreiras estruturais de gênero na política brasileira.
[…] Apesar da obrigatoriedade legal que reserva um mínimo de 30% e um máximo de 70% das candidaturas para cada gênero, partidos políticos continuam a descumprir a cota de gênero, principalmente em relação às mulheres.
Conforme os dados apresentados acima, surge uma reflexão: se há mais eleitoras do que eleitores, por que os níveis de mulheres eleitas continuam tão baixos? Parafraseando a antiga expressão popular “a Maria vai com as outras”, no quesito eleitoral a Maria não vai com as outras.
Em 16 de maio de 2024, o TSE, no processo administrativo 32.345, tomou uma decisão histórica em prol da participação efetiva das mulheres nas eleições, aprovando a súmula 73, que trata da fraude à cota de gênero.
O TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL, no uso das atribuições que lhe confere o art. 23, inciso XV, do Código Eleitoral, resolve aprovar a proposta de edição do seguinte verbete de súmula:
A fraude à cota de gênero, consistente no desrespeito ao percentual mínimo de 30% (trinta por cento) de candidaturas femininas, nos termos do art. 10, § 3º, da lei 9.504/97, configura-se com a presença de um ou alguns dos seguintes elementos, quando os fatos e as circunstâncias do caso concreto assim permitirem concluir: (1) votação zerada ou inexpressiva; (2) prestação de contas zerada, padronizada ou ausência de movimentação financeira relevante; e (3) ausência de atos efetivos de campanhas, divulgação ou promoção da candidatura de terceiros. O reconhecimento do ilícito acarretará: (a) a cassação do Drap – Demonstrativo de Regularidade de Atos Partidários da legenda e dos diplomas dos candidatos a ele vinculados, independentemente de prova de participação, ciência ou anuência deles; (b) a inelegibilidade daqueles que praticaram ou anuíram com a conduta, nas hipóteses de AIJE – Ação de Investigação Judicial Eleitoral; (c) a nulidade dos votos obtidos pelo partido, com a recontagem dos quocientes eleitoral e partidário (art. 222 do Código Eleitoral), inclusive para fins de aplicação do art. 224 do Código Eleitoral. […] Ministro ALEXANDRE DE MORAES, Presidente e relator – ministra CÁRMEN LÚCIA – ministro NUNES MARQUES – ministro RAUL ARAÚJO – ministra ISABEL GALLOTTI – ministro FLORIANO DE AZEVEDO MARQUES – ministro ANDRÉ RAMOS TAVARES. Publicada nos DJes de 3, 4 e 5/6/2024.
A súmula 73 do TSE defende a busca pelo equilíbrio democrático, ao visar a participação e a contribuição efetiva que o olhar feminino pode oferecer na construção diária da política do país.
Súmula é o resumo da jurisprudência predominante, que visa à pacificação de determinado tema. A súmula 73 do TSE pode não ser vinculante, mas possui força material de sê-lo.
Se o TSE não tivesse sumulado a questão da fraude à cota de gênero, não tenho dúvida de que haveria um número maior de questionamentos, tanto por juízes eleitorais de 1º grau e pelos tribunais regionais eleitorais, quanto por advogados eleitoralistas que ajuízam ou contestam essas ações. Não se pode esquecer que o Ministério Público Eleitoral também detém legitimidade para propor tais demandas.
A súmula 73 não veio para encerrar o debate ou afastar eventuais questionamentos, mas para reduzir sua frequência. Ao afirmar que “configura-se [a fraude] com a presença de um ou alguns dos seguintes elementos, quando os fatos e as circunstâncias do caso concreto assim permitirem concluir: (1) votação zerada ou inexpressiva; (2) prestação de contas zerada, padronizada ou ausência de movimentação financeira relevante; e (3) ausência de atos efetivos de campanha, divulgação ou promoção da candidatura de terceiros”, a súmula proporciona maior clareza e objetividade relativa, já que a análise do caso concreto pode acrescentar novos elementos de reflexão. O ponto central, contudo, é que ela assegura segurança jurídica.
Estabeleço a diferença entre a AIJE comum, que trata de abuso de poder político, econômico ou uso indevido dos meios de comunicação, e a AIJE específica, quando aborda a fraude à cota de gênero – podendo até ser compreendida como uma AIJE excepcionalíssima. Explico o porquê.
No julgamento de uma AIJE comum, o princípio in dubio pro sufragio (na dúvida, preservam-se os votos dos eleitos) predomina quando os fatos não demonstram gravidade suficiente ou robustez probatória. Nessas ações, o grau de dificuldade para cassar mandatos é elevadíssimo, já que, na maioria das vezes, o julgador(a) entende que as provas não são aptas a afastar o in dubio pro sufragio.
Com a edição da súmula 73, o TSE, ao meu ver, reduz a relevância desse princípio nos casos de fraude à cota de gênero, pois, nesses casos, prevalece o combate histórico pela ampliação da representação feminina nos espaços de poder.
Assim, entendo que ações que envolvem fraude à cota de gênero podem ser consideradas como uma AIJE específica ou até mesmo excepcionalíssima. Se fossem analisadas sob os moldes da AIJE comum, a resposta judicial poderia ser baixa ou nula, com efeitos políticos inexpressivos.
Belas ponderações sobre esse tema foram apresentadas por outros membros da Academia Brasileira de Direito Eleitoral, Leonardo David e Lucas Ribeiro, no artigo intitulado “Limites da interpretação subjetiva da súmula 73/TSE”.
Partindo desse pressuposto, a cognição do juiz passa a equilibrar com menos dificuldade a balança do in dubio pro sufrágio versus a desestimulação de fraudes e, portanto, o combate à histórica sub-representação das mulheres nos espaços de poder o que, ao nosso sentir, parece ser, de fato, a essência do enunciado da súmula 73-TSE.
Assim, entendo que os pontos narrados na súmula são autoexplicativos e dotados de objetividade relativa, mas não afastam a análise dos fatos concretos, quando as circunstâncias permitirem concluir pela ocorrência de: (1) votação zerada ou inexpressiva; (2) prestação de contas zerada, padronizada ou ausência de movimentação financeira relevante; (3) ausência de atos efetivos de campanha, divulgação ou promoção de candidaturas de terceiros.
Kaleo Dornaika e Renato Ribeiro, no artigo intitulado ‘Fraude em cota de gênero: avanço trazido pela Súmula 73’, refletem sobre a importância dessa súmula:
“Portanto, a súmula 73 foi feliz em conciliar dois postulados jurídico-interpretativos que dificilmente se relacionam: a segurança jurídica e a equidade. A segurança jurídica foi atingida por meio da enunciação de elementos objetivos aferíveis mediante as plataformas que a própria Justiça Eleitoral disponibiliza (resultado das eleições e prestação de contas). A equidade, compreendida como a faculdade de julgar conforme as particularidades do caso concreto, foi assegurada mediante a valoração dos fatos e circunstâncias.”
O CPC, aplicado subsidiariamente ao processo eleitoral, traz a seguinte redação em seu art. 926: “Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.”
Entendo que toda discussão acadêmica, jurídica ou política é válida e salutar. No entanto, a súmula 73, aprovada em maio de 2024, ano das eleições municipais, precisa ser mantida de forma estável.
Quanto à integridade e à coerência, tomando por base o artigo acima mencionado, vejo que há margem para alteração apenas quanto aos efeitos da condenação por fraude à cota de gênero.
Se um dos fundamentos e objetivos da norma é ampliar a participação efetiva das mulheres nas eleições e na vida política do país, cassar o mandato de uma mulher eleita revela-se incoerente. Por isso, defendo a manutenção da súmula 73, com a devida observância aos efeitos da condenação, de modo a preservar o mandato das candidatas eleitas.
A base legal para o início dessa discussão está prevista no art. 10, § 3º, da lei 9.504/1997 (lei das eleições): “Do número de vagas resultante das regras previstas neste artigo, cada partido ou coligação preencherá o mínimo de 30% (trinta por cento) e o máximo de 70% (setenta por cento) para candidaturas de cada sexo.”
Como disse a então vice-presidente e atual presidente do TSE, ministra Cármen Lúcia, em seu voto pela criação da presente súmula:
“Em primeiro lugar cumprimentar vossa excelência por ter trazido este que é um tema que preocupa como lembrei aqui na terça-feira, eu recebi a visita de parlamentares que pediu exatamente que se houvesse essa sedimentação para que os tribunais regionais eleitorais e os juízes eleitorais tivessem uma orientação mais firme e segura, o que daria tranquilidade a partidos, candidatos, candidatas, para que todo mundo pudesse, enfim, se haver e se saber como se comportar neste caso específico, de tornar efetiva e eficaz jurídica, política e socialmente o parágrafo terceiro do art. 10 da lei 9.504/1997, o que mais uma vez dissemos desde o início da consolidação do entendimento que vossa excelência expõe e propõe nesta súmula exatamente o que a gente quer que aconteça e cada vez mais possa se ter a igualdade nesta matéria. […] mas por essa consolidação que facilitará muito a vida dos juízes, tribunais, mas principalmente da sociedade, dos candidatos as candidatas, para que a gente tenha clareza no que se vai decidir, e quais as necessidades e principalmente os efeitos jurídicos, políticos que advém do cumprimento, do descumprimento eventual desta norma.
A súmula 73 do TSE representa, a meu ver, a busca pelo equilíbrio democrático. Ela pode não ser perfeita – no direito, perfeição soa como utopia -, mas, com o passar do tempo e com coerência, é plenamente possível promover alterações pontuais.
Finalizo com os ensinamentos de Ulysses Guimarães: “A Constituição, certamente, não é perfeita; ela própria o confessa ao admitir a reforma. Quanto a ela, discordar, sim; divergir, sim; descumpri-la, jamais; afrontá-la, nunca.”
Defender a súmula 73 do TSE é defender o equilíbrio democrático.
Referências
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Súmula nº 73 do TSE. Disponível em: https://www.tse.jus.br/legislacao/codigo-eleitoral/sumulas/sumulas-do-tse/sumula-tse-n-73. Acesso em: 10 set. 2025.
BRASIL. Presidência da República. Lei nº 13.086, de 8 de janeiro de 2015. Institui o Dia da Conquista do Voto Feminino no Brasil. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/L13086.htm. Acesso em: 10 set. 2025.
ABRADEP – Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político. Limites da interpretação subjetiva da Súmula 73/TSE. Disponível em: https://abradep.org/midias/limites-da-interpretacao-subjetiva-da-sumula-73-tse/. Acesso em: 23 set. 2025.
SENADO FEDERAL. Direito ao voto feminino no Brasil completa 92 anos. Publicado em 26 fev. 2024. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2024/02/26/direito-ao-voto-feminino-no-brasil-completa-92-anos. Acesso em: 10 set. 2025.
TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL. Seis em cada dez municípios têm maioria do eleitorado feminino. Publicado em jul. 2024. Disponível em: https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2024/Julho/seis-em-cada-dez-municipios-tem-a-maioria-do-eleitorado-feminina. Acesso em: 24 set. 2025.
UFG – Universidade Federal de Goiás. Relatório-síntese da pesquisa De Olho nas Urnas é publicado. Publicado em 8 set. 2025. Disponível em: https://deolhonasurnas.ufg.br/2025/09/08/relatorio-sintese-da-pesquisa-de-olho-nas-urnas-e-publicado/. Acesso em: 24 set. 2025.
BRASIL. Presidência da República. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em: 10 set. 2025.
BRASIL. Presidência da República. Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997. Lei das Eleições. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9504.htm. Acesso em: 10 set. 2025.
CONJUR – Consultor Jurídico. Fraude em cota de gênero: o avanço trazido pela Súmula 73. Publicado em 14 out. 2024. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-out-14/fraude-em-cota-de-genero-o-avanco-trazido-pela-sumula-73/. Acesso em: 25 set. 2025.