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Eleitoral
A Lei Complementar nº 219/2025 representa um marco de maturidade para a Justiça Eleitoral brasileira, ao equacionar uma tensão histórica entre a defesa da moralidade administrativa e a garantia dos direitos políticos, enquanto direitos fundamentais. O regramento anterior, embora bem-intencionado, gerava cenários de grande instabilidade, nos quais o termo final das inelegibilidades se tornava uma incógnita, prolongando-se por prazos variáveis e, por vezes, desproporcionais, a depender do ritmo processual e dos recursos manejados. Essa imprevisibilidade feria de morte a segurança jurídica, essencial ao Estado de Direito.
A nova legislação promove três movimentos estruturantes: (1) redefine, com maior precisão, os termos inicial e final das inelegibilidades, mitigando a dependência do andamento dos processos judiciais; (2) cria mecanismos para evitar o acúmulo de sanções sobre um mesmo substrato fático, com a instituição de um teto de duração; e (3) inaugura o requerimento de declaração de elegibilidade (RDE), uma ferramenta de tutela preventiva que promete revolucionar a governança partidária e as estratégias de pré-campanha. Ao analisar estas mudanças, percebe-se um nítido esforço do legislador em compatibilizar o combate à corrupção com a proporcionalidade das sanções, uma premissa que foi, acertadamente, reforçada pelos vetos presidenciais que acompanharam a sanção da lei.
O primeiro eixo da modernização legislativa concentra-se na calibração do dies a quo nas hipóteses de condenação criminal (artigo 1º, I, ‘e’, da LC 64/90). Essa alteração atende diretamente ao postulado da segurança jurídica. O modelo anterior, ao atrelar o início da contagem do prazo de oito anos ao cumprimento da pena, criava um cenário de alta imprevisibilidade, no qual a duração da restrição aos direitos políticos dependia de todo o trâmite da execução penal. Isso violava o princípio da proporcionalidade e a vedação de penas de caráter perpétuo, pois a sanção eleitoral se estendia por prazo indeterminado.
A LC 219/2025 corrige essa grave distorção ao estabelecer uma “janela fechada”: a inelegibilidade vigerá desde a condenação por órgão colegiado até o transcurso de oito anos, conferindo objetividade e isonomia ao tratamento dos candidatos. Contudo, o legislador demonstrou critério ao manter a sistemática anterior – mais gravosa – para os crimes de maior reprovabilidade social. Para delitos como os praticados contra a administração pública, a vida e a dignidade sexual, ou aqueles definidos como hediondos, a inelegibilidade se estenderá até oito anos após o cumprimento da pena. Essa distinção reflete um cuidadoso juízo de ponderação: para os ilícitos mais graves, a proteção à moralidade justifica uma restrição mais severa, enquanto para os demais, a previsibilidade e a razoabilidade prevalecem.
No segundo eixo, a lei aprimora o tratamento eleitoral da improbidade administrativa, conferindo maior segurança jurídica. Embora a jurisprudência majoritária já exigisse a condenação por ato doloso que cumulativamente gerasse lesão ao erário e enriquecimento ilícito, a LC 219/2025 solidifica essa interpretação e avança ao detalhar a natureza desse dolo. O legislador estabeleceu a exigência de um dolo específico, qualificado pela vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito. Essa mudança blinda o gestor contra acusações fundadas em meras irregularidades, combatendo o chamado “apagão das canetas” — o receio que paralisava a administração pública.
De forma igualmente relevante, a lei cria uma salvaguarda ao estipular que o mero exercício de competências públicas, sem prova de ato doloso com fim ilícito, não autoriza o rótulo de improbidade para fins eleitorais. Essa mudança é crucial para desestimular o uso da Lei de Improbidade como instrumento de perseguição política, protegendo a tomada de decisão administrativa de controvérsias puramente técnicas. Adicionalmente, a contagem do prazo de inelegibilidade nesses casos passa a seguir a mesma lógica de “janela fechada” a partir da decisão colegiada, conferindo previsibilidade e isonomia ao processo.
Antipunitivismo
O terceiro eixo da lei revela um nítido propósito antipunitivista no plano eleitoral, ao criar mecanismos para evitar o empilhamento de sanções decorrentes de um mesmo núcleo fático. A nova norma estabelece que, em ações ajuizadas sobre os mesmos fatos (ou fatos conexos), a inelegibilidade será gerada apenas a partir da primeira condenação colegiada, sendo vedada a imposição de novas restrições por decisões posteriores, ainda que mais gravosas. Essa regra impede a situação em que um candidato poderia ser declarado inelegível perpetuamente por uma única conduta investigada em múltiplos processos.
Complementando essa proteção, o legislador instituiu um teto de 12 anos para a unificação de restrições decorrentes de improbidade administrativa. Esse limite temporal é uma manifestação direta do princípio da proporcionalidade, evitando que a sucessão de condenações resulte em uma espécie de banimento político. Trata-se de uma medida que, sem afrouxar o combate à corrupção, assegura que a sanção cumpra sua finalidade sem aniquilar os direitos políticos do apenado.
A LC 219/2025 também promoveu ajustes relevantes em hipóteses clássicas de inelegibilidade. A perda de mandato por infração constitucional, por exemplo, passa a gerar a restrição por oito anos a contar da decisão que decreta a perda, e não mais do fim do mandato. A regra de oito anos para a renúncia com o intuito de obstar um processo de cassação foi mantida, mas a lei inova ao prever que a demissão do serviço público — quando o fato se equipara a um ato de improbidade — projeta a inelegibilidade por oito anos a partir da decisão demissional, trazendo mais clareza à matéria.
No campo da desincompatibilização, foram atualizadas as regras para diversas carreiras públicas, garantindo a remuneração integral nos afastamentos e o retorno imediato ao cargo em caso de indeferimento da candidatura, o que fortalece a segurança jurídica para o servidor que deseja se candidatar. Do ponto de vista processual, a lei positivou o critério de que as condições de elegibilidade e as causas de inelegibilidade são aferidas no momento do registro, sem prejuízo de alterações fáticas ou jurídicas supervenientes, ocorridas até a data da diplomação, que afastem a restrição.
Nova ferramenta
A grande novidade procedimental da reforma é o requerimento de declaração de elegibilidade (RDE). Por meio dele, o pré-candidato ou o partido pode, a qualquer tempo, provocar a Justiça Eleitoral para sanar dúvida razoável sobre a capacidade eleitoral passiva, com a possibilidade de impugnação por outros partidos. Essa ferramenta ataca diretamente um dos maiores problemas do processo eleitoral: a judicialização massiva e de última hora que ocorre durante a fase de registro de candidatura. Ao permitir uma definição prévia, o RDE mitiga o cenário caótico de substituição de candidatos na véspera da eleição, o que gera insegurança para o eleitorado e custos para os partidos.
Na prática, a inovação cria um ambiente de governança de riscos, conferindo um ganho de previsibilidade inestimável. A decisão obtida no RDE oferece segurança para que o partido invista recursos e capital político em uma candidatura, sabendo que a elegibilidade do nome escolhido já foi chancelada pela Justiça. O contencioso eleitoral se desloca, em parte, do pós-registro para a pré-campanha, exigindo uma advocacia mais preventiva e de planejamento, focada na construção de teses e provas muito antes do início oficial da disputa.
Por fim, é imperativo analisar o acerto dos vetos presidenciais que moldaram a versão final da lei. O principal deles incidiu sobre o dispositivo que previa a aplicação retroativa das novas contagens de prazo, mais benéficas, a casos já transitados em julgado. A Presidência da República, em uma decisão de grande responsabilidade institucional, vetou essa possibilidade, sob o argumento de que ela violaria a segurança jurídica e a coisa julgada. De fato, permitir a retroatividade indiscriminada criaria um cenário de caos, ressuscitando candidaturas já barradas pela Justiça Eleitoral e desconstituindo decisões judiciais definitivas. O veto, portanto, foi essencial para preservar a estabilidade e a previsibilidade das relações jurídicas, assegurando que o avanço legislativo não ocorresse ao custo do respeito às decisões do Poder Judiciário.
Conclusão
Em síntese, a Lei Complementar nº 219/2025 representa uma sofisticada recalibragem do sistema de inelegibilidades brasileiro. Ao fixar prazos mais claros, refinar o conceito de improbidade administrativa com ênfase no dolo específico, coibir o empilhamento de sanções e inaugurar uma via de consulta prévia com o RDE, o legislador optou por um modelo que valoriza a segurança jurídica e a proporcionalidade.
Os vetos presidenciais, ao impedirem a retroatividade da norma, foram cruciais para selar esse compromisso com a estabilidade. O resultado é um sistema que, sem renunciar à firmeza contra a corrupção, fortalece as garantias fundamentais dos cidadãos e qualifica o debate democrático, deslocando o foco da incerteza jurídica para o planejamento estratégico e a previsibilidade.
Referências
BRASIL. Lei Complementar nº 219, de 29 de setembro de 2025. Altera a LC 64/1990 e a Lei 9.504/1997. Diário Oficial da União, 30 set. 2025, Seção 1.
BRASIL. Lei Complementar nº 64, de 18 de maio de 1990. Estabelece, de acordo com o art. 14, §9º, da Constituição Federal, casos de inelegibilidade.
BRASIL. Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997. Estabelece normas para as eleições.
BRASIL. Lei nº 14.230, de 25 de outubro de 2021. Altera a Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/1992).