
Welliton Nazário tem artigo sobre populismo e democracia aprovado para publicação pela Editora Dialética
20/10/2025
Democracias em mira: o ensaio global das guerras invisíveis
21/10/2025Por Anna Paula Oliveira Mendes e Raquel Cavalcanti Malenchini
A igualdade de gênero na política brasileira ainda enfrenta fragilidades: conquistas lentas, ameaçadas por retrocessos, revelam a urgência de uma proteção contínua e efetiva dos direitos das mulheres.
Outubro chegou sem que o projeto do Novo Código Eleitoral tenha sido aprovado. Não haverá, portanto, um novo conjunto de regras aplicáveis às próximas eleições. Como tem ocorrido há décadas, o que se verificou foram apenas alterações pontuais e fragmentadas, insuficientes para conferir coerência sistêmica ao direito eleitoral brasileiro. Ainda assim, o processo legislativo de tramitação do projeto e o conteúdo das normas pretendidas oferecem lições relevantes sobre o estágio atual da democracia e da representação política no país.
No que se refere especificamente aos direitos das mulheres, o debate em torno do Novo Código revelou, mais uma vez, que as conquistas jurídicas são escassas, de difícil concretização e vulneráveis a retrocessos1. A tentativa de revisão normativa evidenciou o quanto a igualdade de gênero na política brasileira continua dependente de esforços interpretativos, da atuação judicial e da pressão social constante para evitar que avanços recentes sejam desfeitos sob o argumento da autonomia partidária ou de uma pretensa neutralidade das regras eleitorais.
As regras para tentar equalizar os direitos políticos de participação da mulher como candidata começaram tarde e com timidez no país. Iniciaram com a previsão de cotas, mas logo se reconheceu que a mera inclusão da regra era insuficiente para garantir resultados concretos, sem uma sanção clara para seu descumprimento3. A evolução para concretização passou do reconhecimento da necessidade de ajuste no Demonstrativo de Regularidade Partidária à possibilidade de perda de mandato de todos os integrantes da chapa em que ocorreu a fraude3. Envolveu, ainda, a exigência de financiamento das campanhas equivalente às cotas ou às candidaturas apresentadas4 e a normatização do combate à violência política de gênero.
Nas últimas décadas, o direito eleitoral e a jurisprudência constitucional brasileira têm buscado responder a essa realidade por meio da criação e do fortalecimento de mecanismos de proteção e incentivo à presença feminina na política. A lei 9.504/1997 (lei das eleições), em seu art. 10, § 3º, determinou que cada partido deve preencher o mínimo de 30% e o máximo de 70% para candidaturas de cada sexo. O TSE, a partir de 2015, passou a reconhecer a fraude à cota de gênero como hipótese de cassação de toda a chapa5, em sede de AIME – Ação de Impugnação de Mandato Eletivo ou de AIJE – Ação de Investigação Judicial Eleitoral, entendimento que se consolidou com a edição da súmula 73. No âmbito da distribuição de recursos, o STF, ao julgar a ADI 5.617, reconheceu o dever de aplicar, de forma proporcional, os recursos do fundo partidário às candidaturas femininas. Tal entendimento foi estendido pelo TSE às verbas do FEFC – Fundo Especial de Financiamento de Campanhas e ao tempo de propaganda gratuita, sendo posteriormente constitucionalizado pela EC 117/22, que incluiu o § 8º ao art. 17 da Constituição Federal.
Entretanto, a mesma Emenda trouxe um preocupante retrocesso ao prever anistia aos partidos que descumpriram a aplicação mínima de recursos em eleições anteriores. Além disso, somente em 2021 foi tipificada, no art. 326-B do Código Eleitoral, a violência política de gênero, com pena de reclusão de um a quatro anos e multa. Esses avanços normativos, ainda que relevantes, como se percebe, não têm sido suficientes para corrigir as desigualdades materiais persistentes, pois as candidaturas femininas continuam expostas a fraudes, desamparo financeiro e violência simbólica.
De fato, o desenho normativo atual, apesar de aperfeiçoado, considerando o quadro normativo delineado desde 1995, os esforços jurisprudenciais e com as alterações pretendidas pelo novo Código Eleitoral, é insuficiente. Além disso, permanece sob constante ataque. Pretende-se assim exatamente destacar aqui algumas das insuficiências presentes na estrutura jurídica atual e refletir sobre um escudo de proteção diante de ataques e possíveis retrocessos aos direitos já conquistados. A igualdade de participação política deve ser pensada, no mínimo, como igualdade de oportunidade nas competições eleitorais.6
Parte da insuficiência da legislação decorre do fato de que a arquitetura de proteção dos direitos das mulheres, como se percebe, vem sendo realizada de forma retalhada e lenta. Ponto importante é exatamente que essas medidas deveriam ter sido todas implementadas no momento da previsão das cotas de candidatura, mas foi necessário amadurecimento quanto à gravidade do desrespeito às cotas e à importância de proteção conjunta e estruturada para que se chegasse à arquitetura normativa atual, e a percepção de que a igualdade só se faz efetiva se alcançar todos os aspectos da participação política.
A insuficiência da legislação também se evidencia na ausência de políticas que contemplem as múltiplas dimensões da vida das mulheres na política. Questões como a maternidade, o cuidado com filhos e a igualdade de acesso aos meios digitais permanecem à margem da regulamentação eleitoral. É fundamental reconhecer, por exemplo, que despesas com creche ou apoio à amamentação devem ser consideradas gastos de campanha legítimos7 e que a visibilidade digital das candidatas precisa ser assegurada de modo equitativo, ao mesmo tempo em que se desenvolvem mecanismos institucionais eficazes de prevenção e combate à violência.
No julgamento da ADI 5671, o ministro Edson Fachin lançou importantes luzes sobre o amadurecimento do princípio da igualdade ao afirmar que a equidade entre homens e mulheres “exige não apenas iguais oportunidades, mas também ambiente que permita alcançar a igualdade de resultados”. É preciso, contudo, avançar normativa e institucionalmente para que esse ideal se concretize de forma simultânea em todas as frentes.
Como observou Simone de Beauvoir, “feita a revolução, o problema da mulher não se colocaria mais. Muito bem, mas e enquanto se espera?”8.
A consolidação da presença feminina na política é, portanto, um processo histórico que exige vigilância institucional, educação democrática e políticas públicas permanentes e, sobretudo, articuladas entre si. Trata-se de um aspecto sobre o qual não se pode transigir. Enquanto os espaços de poder não refletirem o equilíbrio de gênero existente na sociedade, considerando a mulher em todas as suas dimensões e desafios, o ordenamento jurídico deverá continuar a ser reformado e interpretado à luz do princípio da igualdade.
Mesmo após alcançada a paridade, será indispensável manter mecanismos de prevenção e combate à violência política, para que a chegada das mulheres ao poder não represente apenas um episódio isolado de conquista, mas um espaço legítimo de permanência e influência. O início de mais um ano eleitoral sob uma legislação ainda insuficiente apenas reforça a urgência de se pensar em uma arquitetura normativa mais coesa e orientada pela igualdade substancial. Mais uma vez, o Poder Judiciário terá papel decisivo a desempenhar, refletindo criticamente sobre os efeitos de seus próprios precedentes e assegurando que a interpretação constitucional esteja sempre em consonância com o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, como instrumento de promoção de uma democracia verdadeiramente inclusiva.
Referências
- OBSERVATÓRIO DE VIOLÊNCIA POLÍTICA CONTRA A MULHER. Nota Técnica sobre o PLP 112/2021, que institui o Código Eleitoral: Considerações sobre o crime de violência política contra mulheres. 2021. Disponível em: https://transparenciaeleitoral.com.br/wp-content/uploads/2021/09/NOTA-TE%CC%81CNICA-PLP-112_2021-Novo-Co%CC%81digo-Eleitoral.pdf. Acesso em: 10 out. 2025. E OBSERVATO’RIO DE VIOLE^NCIA POLI’TICA CONTRA A MULHER. Revisa~o de nota te’cnica – o Projeto de Lei complementar n. 112/2021 e o 3° relato’rio no Senado Federal sobre os direitos poli’ticos das mulheres e na inclusa~o de outros grupos tidos como minorita’rios. 2025. Disponi’vel em: https://drive.google.com/drive/folders/10jviF_Gt95bsa0gAGLP5SX3b_VLkBcXh?us%20p=drive_link. Acesso em: 10 out. 2025.
- A primeira vez que se estabeleceu, no direito brasileiro, uma cota visando à promoção da igualdade de gênero na política ocorreu com a Lei nº 9.100/95, que determinava o registro de no mínimo 20% de candidaturas femininas. Esta norma foi revogada pelo art. 92 do Código Eleitoral. Em 1997, com a entrada em vigor da Lei das Eleições, a cota passou a ser prevista em seu art. 10, § 3º. Não obstante, no momento de sua promulgação, a norma determinava apenas a reserva de, no mínimo, 30% das candidaturas para um dos sexos. Foi apenas em 2009 que a redação legal passou a ser como a conhecemos hoje, e determina o lançamento, e não apenas a reserva, de no mínimo 30% das vagas para um dos sexos (e este, na prática, sempre é o femino). (CRISTINA, Tailaine e ROBERTA, Emma. Meu pé de cota laranja: a Justiça Eleitoral e o seu papel na garantia da participação feminina na política. Em: SALGADO, Eneida Desiree; KREUZ, Letícia e BERTOTTI, Bárbara (orgs.). Mulheres por mulheres: memórias do I Encontro de pesquisa por/de/sobre mulheres. Porto Alegre: Fi, 2018).
- BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. RESPE 19392 – PI. Acórdão. Relator: Min. Jorge Mussi. Publicado no DJE de 04/10/2019.
- BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 5617, Rel. Min. Edson Fachin, Tribunal Pleno, julgado em 15/03/2018, publicado no DJE de 03/10/2018.
- Parte da doutrina critica que a cassação alcance inclusive as mulheres, por representar um desrespeito à finalidade da política afirmativa. Estamos de acordo com esse posicionamento. SILVEIRA, Marilda de Paula. As Consequências da Identificação de candidaturas Fictícias: cassação das eleitas e desincentivos à representatividade feminina na política. Resenha Eleitoral (Florianópolis), v. 23, n. 2, p. 161-186, 2019.
- MUÑOZ, Ó. S. (2007). La igualdad de oportunidades en las competiciones electorales. Madrid: Centro de Estúdios Políticos e Constitucionales.
- MACHADO, Raquel Cavalcanti Ramos; ALMEIDA, Jéssica Teles de. A proteção dos espaços ocupados pela mulher nos ambientes públicos e privados para avanço na política. Migalhas, 7 mar. 2023. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/382550/a-protecao-dos-espacos-ocupados-pela-mulher-nos-ambientes-publicos. Acesso em: 07 out. 2025.
- BEAUVOIR, Simone de. A força das coisas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017, p. 101




