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03/10/2025Por Gabriel Gomes Ferreira de Oliveira Lima, Fatima Cristina Pires Miranda e Brenno Marcus Guizzo
A crescente judicialização da política tem tensionado os marcos legais do processo eleitoral. Entre os temas mais sensíveis está a caracterização da chamada “candidatura fictícia” no contexto da cota de gênero. A introdução da noção de “inviabilidade jurídica patente” pela resolução TSE 23.735/24 (art. 8º, § 3º) levanta um relevante debate jurídico: pode-se presumir fraude com base apenas na expectativa de uma futura declaração de inelegibilidade?
O conceito normativo de “inviabilidade jurídica” da candidatura
A resolução 23.735/24, em seu art. 8º, §3º, estabelece que:
“Configura fraude à cota de gênero a negligência do partido político ou da federação na apresentação e no pedido de registro de candidaturas femininas, revelada por fatores como a inviabilidade jurídica patente da candidatura, a inércia em sanar pendência documental, a revelia e a ausência de substituição de candidata indeferida.”
A redação busca oferecer parâmetros objetivos para aferição de candidaturas fictícias. Contudo, ao incluir a expressão “inviabilidade jurídica patente”, abre margem para que impedimentos potenciais, ainda não declarados, sejam indevidamente presumidos como certos, e além disso, que sejam previamente identificados pelas agremiações partidárias.
A norma parece pressupor que a legenda tem capacidade e dever de detectar previamente situações de inelegibilidade, não obstante, trata-se de uma premissa que não se sustenta integralmente diante da realidade normativa, até mesmo porque há requisitos facilmente verificáveis e outros cuja apuração exige complexa análise jurídica.
Ademais, a chamada “inviabilidade jurídica” da candidatura feminina não pode ser examinada de forma isolada, mas apenas se houver outros indícios concretos de fraude. Isso porque eventual inelegibilidade somente será apurada no momento do pedido de registro de candidatura, nos termos expressos do art. 11, §10, da lei das eleições (lei 9.504/1997). A presunção automática de má-fé a partir de um impedimento potencial contraria o devido processo legal eleitoral e inverte a lógica do sistema, que exige uma decisão judicial prévia para a configuração de inelegibilidades.
Requisitos verificáveis vs. inelegibilidades complexas
Nesse diapasão, é necessário distinguir:
Requisitos (condições) de elegibilidade objetivamente verificáveis, como os do art. 14, § 3º da Constituição Federal (nacionalidade, alistamento, domicílio, filiação partidária, idade mínima), são de fácil constatação pela legenda. Se, por exemplo, uma agremiação lança candidata estrangeira sem nacionalidade brasileira, pode-se cogitar má-fé evidente – e eventual configuração de candidatura simulada.
Já as inelegibilidades infraconstitucionais, previstas na LC 64/1990, como a da alínea “m”, art. 1º, inciso I (exclusão do exercício da profissão por infração ético-profissional), demandam análise jurídica minuciosa e acesso a informações que, via de regra, não estão ao alcance das direções partidárias. Cumpre ainda observar que, não raro, a exclusão do exercício da profissão, especialmente oriunda de decisão administrativa, é posteriormente contestada no Poder Judiciário. Nessas hipóteses, é comum que o profissional obtenha provimento jurisdicional liminar que suspenda os efeitos da demissão. Exigir que a agremiação as antecipe é, na prática, transferir-lhe o papel da Justiça Eleitoral, em violação ao devido processo legal, para além de hipotética usurpação de competência da Justiça Eleitoral, a quem cabe a função de deferir o registro de candidatura.
Outro exemplo é a alínea “l” do mesmo dispositivo supracitado, que trata da inelegibilidade dos condenados à suspensão dos direitos políticos por ato doloso de improbidade administrativa que importe lesão ao erário e enriquecimento ilícito. A caracterização desse impedimento depende de interpretação pela Justiça Eleitoral dos acórdãos oriundos da Justiça Comum, o que frequentemente exige juízo valorativo sobre os elementos objetivos do acórdão – como a existência ou não de enriquecimento ilícito, mesmo quando tal termo não conste expressamente na ementa, ou, ainda que tenha constado, a condenação não tenha se dado pelo art. 9º da LIA. Logo, não se pode exigir da legenda esse grau de análise jurídica antecipada, sob pena de transformar exigências técnicas em presunções artificiais de má-fé.
Mais um caso que poderia ser mencionado a título ilustrativo se refere à inelegibilidade estabelecida na alínea “e” do art. 1º, I da LC 64/1990. Isto porque o referido dispositivo traz um rol de crimes que atraem a incidência da inelegibilidade em razão de sua condenação. Contudo, não é todo e qualquer tipo de infração penal que acarreta a inelegibilidade como consequência – e, portanto, a “inviabilidade patente” – pois, o próprio parágrafo 4º do mesmo dispositivo traz exceções, situações estas que afastam a incidência de inelegibilidade, nos casos de crimes culposos, os de menor potencial ofensivo ou de ação penal privada. Novamente é preciso destacar: não se pode exigir da agremiação partidária, uma técnica jurídica que é própria dos operadores de direito e da Justiça Eleitoral, sob risco de se impedir candidaturas legítimas – ainda que com certa discussão sobre o seu deferimento.
Portanto, a responsabilização da agremiação por fraude deve ser excepcional, fundamentada em prova inequívoca de dolo, e não presumida com base em circunstâncias de difícil apuração.
Isso não significa eximir totalmente o partido político do múnus de verificar as condições da pretensa candidatura, mas tão somente dar contornos mais precisos para tais situações, de maneira que o conceito indeterminado encontre parâmetro compatível com o ordenamento jurídico.
A antinomia com o momento processual de aferição da inelegibilidade
Nos termos do art. 11, §10, da lei 9.504/1997, as condições de elegibilidade e as causas de inelegibilidade serão verificadas no momento do pedido de registro de candidatura. Assim, não há respaldo legal para declarar impedimentos de forma antecipada, principalmente no âmbito interno das siglas.
Isso ocorre por diversas razões, sendo a principal o fato de que os partidos políticos não possuem competência legal para se imiscuir na função jurisdicional da própria Justiça Eleitoral, sob pena de, inclusive, utilizarem-se de tal mister tão somente para barrar candidatas plenamente elegíveis a pretexto de possível inelegibilidade futura.
Diante da normativa ter sido trazida apenas em nova resolução do TSE de 2024, os primeiros casos começam a surgir no âmbito do TSE. Em recentíssima decisão monocrática, o ministro André Mendonça, ao negar provimento no REspe 0600631-66.2024.6.26.0018, reiterou esse entendimento ao afirmar:
“(…). Soma-se a isso não haver, no acórdão impugnado, elementos que permitam afirmar que a legenda tinha conhecimento prévio de que o registro da candidata seria indeferido. Até porque a candidata empreendeu esforços para reverter a demissão pela via judicial, de modo que não é possível concluir, por simples presunção, que a indicação de Claudia Moreira Reis se voltava tão somente a complementar de forma fictícia a cota de gênero.”
O reconhecimento jurídico de uma inelegibilidade tem momento processual próprio e não pode ser inferido com base em suposições extraídas de atos partidários anteriores.
E se a grei agiu de má-fé?
Embora a referida resolução tente responder ao risco de candidaturas artificiais, a via correta para esse enfrentamento continua sendo o devido processo legal – com instrução probatória robusta e ampla defesa. A tentativa de presunção de fraude a partir da chamada “inviabilidade jurídica patente” sem decisão judicial que a declare é incompatível com a garantia do devido processo legal eleitoral, até mesmo porque é sempre imperioso observar as nuances de cada caso, como advertiu o ministro Mendonça:
“Assim, as circunstâncias aduzidas pelas partes, extraídas do § 4º, do art. 8º, da resolução TSE 23.735/24, não conduzem para o provimento da ação, especialmente porque não se vislumbra no caso as circunstâncias previstas pela súmula TSE 73.”
Conclusão: segurança jurídica exige precisão normativa
A resolução 23.735/24 pretendeu oferecer balizas para coibir fraudes à cota de gênero, mas incorre em risco normativo ao usar um conceito jurídico indeterminado (“inviabilidade jurídica patente”) que colide com o regime legal do registro de candidatura. O TSE, ao inovar, deve fazê-lo em harmonia com a legislação eleitoral e com a Constituição Federal, sob pena de transformar um instrumento de proteção da democracia e da participação feminina na política em arma de insegurança jurídica.
A proteção da cota de gênero exige vigilância, mas não pode ensejar distorções no regime de inelegibilidades. A inovação trazida pela norma oriunda do TSE precisa ser interpretada à luz do sistema normativo mais amplo, sob pena de criar uma responsabilidade objetiva de partidos políticos por fatos que escapam à sua esfera de controle legítima.
Preservar a integridade do processo eleitoral é, também, garantir que nenhum candidato ou partido seja punido por não prever aquilo que nem mesmo a Justiça havia declarado.