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24/09/2025Luis Fernando Verissimo — que, como poucos, soube descrever, com fino humor e leveza, os desencantos da nossa sociedade brasileira das últimas décadas — nos deixou no último dia 30 de agosto. Foi um gênio das palavras. Poucos dias depois, na terça-feira, 2 de setembro, o Senado aprovou o Projeto de Lei (PL) 192/2023 que, em síntese, reduz prazos de inelegibilidade e, agora, aguarda a sanção ou veto presidencial. Em suas recentes produções legislativas, aliás, reconhece-se que o Congresso também tem demonstrado notável criatividade no trato das palavras, como é possível recordar de legislação recente que, em inusitado malabarismo semântico, criou um conceito de inelegibilidade superveniente que, na verdade, é antecedente [1].
A aprovação do PL 192 foi saudada por parcela distinta da academia (como um bálsamo de restabelecimento de direitos fundamentais), criticada por parte significativa da imprensa (que viu na ação um afrouxamento indevido da Lei da Ficha Limpa) e recebida com desconfiança pela população em geral: afinal, o que os poderes instituídos têm produzido que represente ganho efetivo ao corpo social?
Durante a votação do projeto de lei, chamou a atenção o ato do presidente do Senado, Davi Alcolumbre que, deixando momentaneamente sua atribuição presidencial, expôs sua intenção de votar a favor do projeto, ao argumento de uma necessária “modernização” no sistema das inelegibilidades (“Eu faço questão dessa modernização”). Para além do simbolismo ímpar, a fala do parlamentar reafirma a tendência contemporânea de usar a expressão “modernização” como um eufemismo — do mesmo modo, aliás, que já fora empregado quando da atualização da Lei da Improbidade Administrativa em 2021 [2], cujo efeito de obstar a apuração de atos corruptivos tem sido claramente constatado nos últimos anos.
A defesa da aprovação do PL 192/2023 é a sedutora tese de que “a inelegibilidade não pode ser eterna. Está no texto da lei oito anos, não pode ser nove nem vinte” [3]. Fosse apenas isso, não haveria maiores óbices à modificação. Essa justificativa, a bem da verdade, tem certo sentido em três — das oito — inelegibilidades infraconstitucionais que foram afetadas pelo projeto de lei (especificamente, a perda de mandato do Poder Legislativo e Executivo por infração política, e a renúncia parlamentar para escapar de processo de cassação). Nas outras cinco hipóteses, todavia, a justificativa da “modernização” para evitar “inelegibilidade eterna” representa uma espécie de convite da Esfinge de Tebas para o eleitor desavisado: “Decifra-me [a real intenção do aludido projeto de lei] ou te devoro [vendendo modernização por desconstrução]”.
Em relação à inelegibilidade por abuso de poder (alínea “d”), além de perder a oportunidade de atualizar o dispositivo para incluir o uso indevido dos meios de comunicação, a fraude e a corrupção, manteve a mesma falha legislativa que atualmente consta na LC 64/90 e, como bônus, acrescentou a elementar “por comportamentos graves aptos a implicar a cassação de registros, de diplomas ou de mandatos”, de modo a exigir um razoável esforço interpretativo para justificar sua aplicação igualmente àqueles candidatos não eleitos que praticaram ilícitos graves.
Quanto à inelegibilidade por demissão do serviço público (alínea “o”), acresceu a elementar “quando o fato que deu causa à demissão for equiparado a ato de improbidade” que trará certamente ainda mais subjetividade e indefinição na análise de incidência dessa cláusula, ainda que seja possível aventar uma justificativa do legislador em evitar restrição ao direito de elegibilidade por situações menos gravosas e sem conexão direta com a boa governança. De todo modo, chama a atenção que o legislador — tão cioso em proteger direitos fundamentais de elegibilidade — sequer teve o trabalho de adjetivar o denominado “ato de improbidade” nessa alínea.
Os maiores impactos, no entanto, do novo projeto de lei — que, nesse ponto, de longe se resumem a apenas unificar prazos de inelegibilidade — estão consubstanciados nas hipóteses de inelegibilidade por ato de improbidade administrativa, rejeição de contas e condenação criminal.
No tocante à improbidade administrativa (alínea “l”), o novo projeto de lei buscou restringir ainda mais a já tão difícil incidência dessa cláusula de inelegibilidade ao referir expressamente que a condenação por ato doloso de improbidade administrativa deve importar, de modo concomitante (alinhando-se aqui ao entendimento da jurisprudência do TSE), lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito “na parte dispositiva da decisão”.
Indiscutível que há uma prática reiterada de, em ações dessa natureza, após indicar quais os atos de improbidade administrativa foram praticados na fundamentação da decisão, o julgador limitar-se a fazer referência apenas ao artigo de tipificação de maior gravidade (artigo 9º) no dispositivo condenatório, utilizando-se da consunção para evitar repetição de sanções semelhantes (artigo 9º e 10). Que o legislador têm ciência disso é mais que certo, o que bem demonstra a “modernizadora” intenção que animou o Congresso nessa reforma.
Em linha semelhante, a sanha de esvaziar a LC 64/90 se revela igualmente no § 4º-B que, além de exigir a demonstração do dolo específico (em consonância com a jurisprudência do TSE) na inelegibilidade por rejeição de contas, limita a sua incidência apenas quando houver “ilícito tipificado exclusiva e cumulativamente nos arts. 9º e 10 da Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992 (Lei de Improbidade Administrativa)”; é dizer, também para a rejeição de contas (alínea “g”), que é hipótese oriunda de decisões administrativas — do Tribunal de Contas — ou políticas — do Poder Legislativo, haverá a necessidade de demonstração cumulativa de prejuízo doloso ao erário e enriquecimento ilícito.
Bifurcação
A inelegibilidade por condenação criminal tampouco escapou do furor legislativo, sob o verniz da “modernização”. Sem abrir espaço para um salutar debate sobre uma possível detração da inelegibilidade, com o desconto da restrição antecipada a partir da decisão colegiada até o trânsito em julgado do prazo final de oito anos a ser contado com o cumprimento ou extinção da pena, a ideia inicial do projeto de lei era a limitação da inelegibilidade — para todos os crimes já elencados na alínea “e” — “até o transcurso do prazo de oito anos” da condenação.
Uma emenda do senador Sergio Moro, surpreendentemente acolhida, adotou uma bifurcação das hipóteses de inelegibilidade por condenação criminal: para os crimes previstos nos itens 6 a 10 e contra a administração pública, permanece a mesma regra atual da LC 64/90; para os demais (itens 1 a 5, exceto crimes contra a administração pública), adota-se o novo regime (oito anos a partir da condenação).
Esse novo regime, todavia, torna — muito — provável a hipótese de sequer haver oito anos de inelegibilidade nessas condenações criminais. Basta imaginar um caso em que, antes do período de oito anos a contar da decisão colegiada, ocorra o trânsito em julgado da condenação — quando, então, passa a correr a suspensão dos direitos políticos (que, assim, absorverá o prazo da inelegibilidade). Sem dúvida é a criação de um generoso combo: cumpre-se, a um só tempo, a suspensão dos direitos políticos e a inelegibilidade – como se fosse possível, a partir de um mero desejo legislativo, unificar duas sanções de restrição dos direitos políticos absolutamente distintas [4].
Imagine-se, no direito penal, o réu — uma vez condenado definitivamente — cumpre a pena restritiva de direitos (menos gravosa, tal qual a inelegibilidade em relação à suspensão dos direitos políticos) e obtém um bônus de ver cumprida também a pena privativa de liberdade (mais gravosa, tal qual a suspensão dos direitos políticos em relação à inelegibilidade). Decerto que o prestígio ao direito de elegibilidade não se faz esquartejando conceitos e deturpando institutos jurídicos.
Notório, assim, como a dita “modernização” pode nos levar a situações constrangedoras, se analisadas sob o prisma das diretrizes fixadas pelo artigo 14, §9º, da Constituição. Em síntese, na falta de coragem para revogar a lei, desidrata-se. Por certo haveria espaço para observações mais particularizadas ainda no aludido projeto de lei. Não é, todavia, o objetivo desse articulado.
A indagação que fica, por ora, é apenas o desconforto absorvido a cada nova interferência legislativa para atualizar as regras do jogo eleitoral, sobretudo porque o vocábulo “modernização”, ainda que animado por argumentos criativos, não imuniza mudanças que caminhem em descompasso com a tutela da probidade administrativa, da moralidade da administração e da proteção contra a influência do abuso de poder. Isso traz a tona o questionamento: chegamos, enfim, ao fundo do poço?
Nessa altura, o leitor deve ter se questionado o que, afinal, a “Velhinha Taubaté” — que consta no título do artigo — tem a ver com o escrito? O mesmo que a modernização tem a ver com o PL 192, ou seja, nada, absolutamente nada. Ela é apenas mais uma forma de “modernização”, que pretende, assim, atrair a atenção do leitor. Na verdade, a aprovação do PL 192 trouxe a lembrança que o Congresso ainda debate o PL 112 (Novo Código Eleitoral) — que, por exemplo, aniquila o sistema de prestação de contas partidárias e igualmente está na iminência de aprovação. Logo, então, lembrei-me do genial Verissimo que, em uma de suas frases mais celebradas, falava, com desalento, que “no Brasil, o fundo do poço é apenas uma etapa”.
Referências
[1] Art. 262 do Código Eleitoral. […] § 2º A inelegibilidade superveniente apta a viabilizar o recurso contra a expedição de diploma, decorrente de alterações fáticas ou jurídicas, deverá ocorrer até a data fixada para que os partidos políticos e as coligações apresentem os seus requerimentos de registros de candidatos. (Incluído pela Lei nº 13.877, de 2019) […]
[3] Justificativa do senador Davi Alcolumbre para a aprovação do projeto de lei
[4] Isso já foi dito, aliás, pelo Supremo Tribunal Federal, conforme decisão monocrática do Ministro Alexandre de Moraes na MC-ADI nº 7.236/DF: […] Em que pese serem previsões complementares, são diversas, com diferentes fundamentos e diferentes consequências, caracterizando institutos de natureza diversas, que, inclusive, admitem a possibilidade de cumulação entre as inelegibilidades e a suspensão de direitos políticos, pois conforme decidido pela CORTE no julgamento das ADCs 29 e 30 e da ADI 4578 (Rel. Min. LUIZ FUX, Tribunal Pleno, DJe de 29/06/2012): […]