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A Lei da Ficha Limpa (Lei Complementar nº 135/2010) nasceu de uma das mobilizações sociais mais expressivas da história recente do país: mais de 1,3 milhão de assinaturas viabilizaram a tramitação de um projeto de iniciativa popular que se converteu em símbolo da luta por integridade na política. Seu fundamento está no artigo 14, § 9º, da Constituição, que autoriza a lei complementar a estabelecer hipóteses de inelegibilidade para proteger a probidade administrativa e a moralidade no exercício do mandato.
Desde então, a Ficha Limpa transformou de forma profunda a dinâmica eleitoral. Ao longo de 15 anos de vigência, afastou candidatos condenados por crimes graves, abuso de poder e corrupção, produziu decisões emblemáticas no TSE e no STF e se consolidou como um instrumento de moralização reconhecido inclusive pela opinião pública. Mais do que normas abstratas, suas disposições impactaram diretamente pleitos estaduais e federais, alterando candidaturas competitivas e reforçando a percepção de que a lisura é requisito essencial da disputa democrática.
Inelegibilidade: conceito e fundamento
A inelegibilidade é restrição à capacidade eleitoral passiva, de natureza jurídico-política, não penal. José Jairo Gomes define-a como “condição negativa” que impede a candidatura em defesa da moralidade administrativa. Rodrigo López Zílio acrescenta que deve ser aplicada com proporcionalidade, pois restringe um direito fundamental em prol da integridade do pleito. Edson Resende de Oliveira sublinha seu papel de “garantia constitucional destinada a preservar o equilíbrio do processo democrático”. Adriano Soares da Costa lembra que, ainda que restritiva, a medida se justifica pela proteção da coletividade. Torquato Jardim sintetiza que se trata de requisito negativo de elegibilidade. Já Márlon Reis, um dos idealizadores da Lei, a descreve como resposta da sociedade civil à leniência institucional com a corrupção eleitoral.
Jurisprudência e casos emblemáticos
A constitucionalidade da Lei da Ficha Limpa foi confirmada pelo Supremo Tribunal Federal em 2012, nos julgamentos das ADCs 29 e 30 e da ADI 4.578. O voto condutor, do ministro Luiz Fux, destacou o caráter preventivo das inelegibilidades, em consonância com a doutrina. Antes disso, em março de 2011, o STF havia decidido que a lei não poderia ser aplicada às eleições de 2010 em razão do princípio da anualidade. Nesse contexto, decisões do TSE em 2010, como os indeferimentos de Joaquim Roriz e Jader Barbalho, ganharam relevância histórica: ambos tiveram o registro de candidatura negado com base na Ficha Limpa, mas os efeitos práticos foram readequados após o Supremo fixar que a lei só valeria a partir de 2012.
O que mudou com o PLP 192/2023
O Senado aprovou, em 2 de setembro de 2025, o PLP 192/2023, que segue para sanção presidencial. Para compreender o alcance da reforma, é preciso comparar cada ponto com o regime anterior.
Prazo único de oito anos
Antes, a regra já previa oito anos de inelegibilidade em diversas hipóteses (como condenações por órgão colegiado ou renúncia para escapar de cassação), mas a contagem podia começar em momentos distintos. Em certos casos, o prazo só se iniciava após o término do mandato ou do cumprimento da pena, o que estendia a restrição por mais de 15 anos. Agora, o prazo de oito anos é unificado, conferindo maior previsibilidade.
Marcos iniciais objetivos
O modelo anterior permitia controvérsias sobre quando começava a contagem: na data da decisão, na diplomação, no fim do mandato? Isso gerava tratamentos distintos e longas disputas judiciais. A alteração fixa pontos claros: perda do mandato, eleição em que houve abuso, condenação colegiada ou renúncia ao cargo.
Teto máximo de 12 anos
No regime anterior, condenações sucessivas poderiam se somar e projetar inelegibilidade por períodos muito longos. Agora, estabelece-se um limite de 12 anos, mesmo em caso de múltiplas condenações.
Vedação de duplicidade em fatos relacionados
Antes, era possível que um mesmo núcleo fático resultasse em mais de uma ação, gerando duas condenações de inelegibilidade sobre o mesmo episódio. A alteração veda essa duplicidade, garantindo que não haja acúmulo para além do necessário.
Exceção para crimes graves
A grande preservação do modelo anterior foi mantida: para crimes como corrupção, lavagem de dinheiro, tráfico, racismo, tortura, terrorismo, crimes contra a vida e contra a dignidade sexual, praticados em organizações criminosas, a inelegibilidade só começa a correr após o cumprimento da pena. Essa regra já existia e foi reafirmada no novo texto.
Avaliação crítica
A unificação e objetividade dos prazos podem ser vistas como ganho em segurança jurídica, reduzindo assimetrias que antes projetavam inelegibilidades por mais de uma década. O risco, contudo, é reduzir o afastamento prático de determinados agentes, que podem retornar mais cedo ao cenário político, relativizando o efeito moralizador que marcou a Ficha Limpa.
José Jairo Gomes adverte que a busca por objetividade não pode fragilizar a essência da moralidade administrativa. Rodrigo López Zílio recorda que o afastamento por dois ciclos eleitorais completos era parte da lógica da lei. Edson Resende de Oliveira insiste que a inelegibilidade é barreira necessária contra o abuso de poder. Adriano Soares da Costa reforça que restrições individuais se justificam pelo interesse coletivo. Torquato Jardim lembra que a inelegibilidade não é sanção penal, e, portanto, deve ser avaliada como requisito político, não punitivo.
É nesse espaço de tensão que se coloca a reforma: entre a segurança jurídica de prazos uniformes e a moralidade eleitoral que inspirou a iniciativa popular de 2010.
Impactos práticos
A aplicação imediata das novas regras pode beneficiar políticos já condenados, gerando debate sobre retroatividade benigna. Embora a inelegibilidade não seja pena, é previsível que candidatos tentem obter sua aplicação retroativa. Caberá ao STF e ao TSE arbitrar esses pedidos à luz do artigo 14, § 9º, da Constituição e do princípio da anualidade eleitoral, reafirmado em 2011.
Conclusão
O PLP 192/2023 não revoga a Ficha Limpa, mas ajusta seu alcance temporal. A uniformização dos prazos traz objetividade, mas pode reduzir a força simbólica e prática de um instrumento que marcou a política brasileira nos últimos 15 anos. O desafio é aplicar o novo regime sem esvaziar a mensagem que levou milhões de cidadãos a subscrever a lei: a integridade é condição de elegibilidade.
Referências:
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Agência Senado — Aprovado projeto que unifica em oito anos o prazo de inelegibilidade
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STF — STF decide pela constitucionalidade da Lei da Ficha Limpa (ADCs 29 e 30; ADI 4578)
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Senado Federal — STF decide que Ficha Limpa não vale para eleições de 2010
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TSE — TSE nega registro da candidatura de Joaquim Roriz ao Senado
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TSE — Decisão do TSE que tornou Jader Barbalho inelegível é mantida pelo STF
Obras doutrinárias:
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COSTA, Adriano Soares da. Instituições de direito eleitoral. 11. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2018.
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GOMES, José Jairo. Direito eleitoral. 21. ed. São Paulo: Atlas/GEN, 2025.
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JARDIM, Torquato. Direito eleitoral positivo. 6. ed. Brasília: Brasília Jurídica, 2011.
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OLIVEIRA, Edson Resende de. Direito eleitoral. 13. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2020.
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REIS, Márlon. O nobre deputado. Rio de Janeiro: Leya, 2010.
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ZÍLIO, Rodrigo López. Manual de direito eleitoral: volume único. 11. ed. Salvador: Juspodivm, 2025.