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16/05/2025Por Kaleo Dornaika e Pedro Sberni Rodrigues
Em 6/5/25, a Câmara dos Deputados aprovou, por expressiva maioria, o requerimento de urgência para o projeto de decreto Legislativo 327/23, que propõe elevar de 513 para 538 o número total de deputados Federais. A justificativa formal alude à necessidade de adequar a representação parlamentar aos dados do Censo 2022. Ocorre, porém, que a recente decisão do STF na ADO 38/DF – proferida em agosto de 2023 – reconheceu apenas a mora legislativa na redistribuição das cadeiras já existentes, determinando que o Congresso ajustasse, até 30/6/25, a quota de cada unidade federativa sem ultrapassar o limite de 513 assentos. Em caso de inércia, a Corte atribuiu competência subsidiária ao TSE para efetuar a redistribuição, igualmente respeitando esse teto.
Não há, portanto, qualquer respaldo na ratio decidendi do STF para a ampliação do total de cadeiras. Ao contrário, o Tribunal partiu de um modelo de soma zero: remanejar vagas de estados super representados para aqueles cujo crescimento populacional clama por maior voz legislativa. A iniciativa parlamentar de criar 25 novos assentos, além de deslocar o debate do eixo constitucional delineado na ADO 38, suscita questões sobre legitimidade democrática, impacto fiscal e coerência institucional. Este artigo examina criticamente esse descompasso, investigando os fundamentos constitucionais da representação, os limites impostos pela decisão do STF e as implicações políticas e orçamentárias de um eventual aumento do número de deputados Federais.
Quem são os Estados sub-representados?
A CF/88 consagra, em seu art. 1º, parágrafo único, o princípio de que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos”. Tal premissa estrutura a lógica da democracia representativa e condiciona o funcionamento dos poderes da República. A representação proporcional na Câmara dos Deputados, por sua vez, é regida pelo art. 45, que assegura a proporcionalidade da população de cada Estado e do Distrito Federal como critério distributivo das cadeiras.
Não obstante a rigidez formal da CF, o número absoluto de parlamentares pode ser ajustado por meio de decreto legislativo, respeitando os limites estabelecidos no art. 45, §1º – número mínimo de oito e máximo de setenta deputados por unidade federativa. A proposta de aumento do número de deputados tem como principal argumento a atualização da representação com base nos dados do Censo Demográfico de 2022, realizado pelo IBGE. A defasagem na revisão do número de cadeiras por Estado – o último ajuste ocorreu em 1993 – demonstra o descompasso entre a evolução populacional dos entes federativos e sua representação na Câmara.
De fato, Estados com crescimento demográfico acentuado permanecem sub-representados, enquanto outros mantêm sua bancada inalterada, mesmo com estagnação ou queda populacional. Vejamos:
- Santa Catarina: Com aproximadamente 7,6 milhões de habitantes, tem hoje 16 deputados Federais. Pela proporcionalidade atualizada, deveria ter 18 ou 19.
- Amazonas: Com cerca de 3,9 milhões de habitantes, mantém apenas 8 deputados – o mínimo constitucional. Deveria ter pelo menos 10, dado seu crescimento populacional acelerado nas últimas décadas.
- Pará: Com 8,1 milhões de habitantes, tem 17 deputados, enquanto Estados menos populosos, como o Rio Grande do Sul (com população inferior), possuem 31 cadeiras.
- Goiás: Estado que superou 7,3 milhões de habitantes, ainda permanece com apenas 17 representantes.
- Distrito Federal: Com cerca de 3 milhões de habitantes, tem 8 deputados – o mesmo número do Amapá, Roraima e Acre, que têm populações inferiores a 1 milhão.
Em contrapartida, Estados como Alagoas, Piauí, Sergipe, Acre, Roraima e Amapá estão super-representados, beneficiados pelo piso mínimo de oito deputados Federais. Por exemplo: Acre (830 mil habitantes), Roraima (636 mil habitantes) e Amapá (733 mil habitantes) – todos com 8 deputados. Comparando com Distrito Federal (3 milhões), Amazonas (3,9 milhões) e Espírito Santo (4,1 milhões), evidencia-se o desequilíbrio.
Antecedentes: Decisões do STF sobre a (re)distribuição de cadeiras na Câmara e o papel do TSE
Em abril de 2013 o TSE editou a resolução 23.389, redesenhando as bancadas de 13 unidades da Federação com base no Censo 2010, sem alterar o total de 513 deputados. Governadores, Assembleias e o próprio Congresso impugnaram o ato. Em junho de 2014, no julgamento conjunto das ADIns 4.963,4.965 e outras, o STF declarou inconstitucional a resolução, afirmando que apenas LC emanada do Congresso pode definir o número de cadeiras e sua distribuição proporcional- o que tornou sem efeito a intervenção da Justiça Eleitoral. Tentou se modular (para deixar a resolução valer apenas a partir das eleições de 2014), mas não houve quórum qualificado; logo, a regra geral (efeitos retroativos – extunc) prevaleceu. Assim, continuaram vigentes as bancadas definidas antes da Res.23.389/13 (distribuição usada nas eleições de 2010).
A virada de 2023
Quase uma década depois, o Governo do Pará ajuizou a ADO – Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão 38, alegando que o Congresso ignorava o mandato constitucional de revisar a representação à luz dos censos. Em 25/8/23 o STF, por unanimidade e voto do relator ministro Luiz Fux, reconheceu a mora legislativa e fixou duas determinações principais: o Congresso deveria aprovar, até 30/6/25, lei complementar que adeque a distribuição de cadeiras ao Censo 2022. Se o prazo não for cumprido, caberá ao TSE definir, até 1/10/25, o número de deputados de cada Estado (entre 8 e 70), para vigorar a partir da legislatura 2027.
A decisão, porém, deixou latente o problema de representatividade – que retornaria ao debate público com o Censo 2022 e, agora, com o projeto de decreto Legislativo 327/23. Importante salientar que o STF não “aumentou” o total de deputados, mas condicionou o Congresso a legislar com base no número originário; caso contrário, devolve se ao TSE uma competência subsidiária e excepcional, agora por ordem judicial. A Corte adotou, na prática, uma “sentença construtiva” típica dos casos de omissão inconstitucional.
ADO 38 e o obstáculo constitucional ao aumento de cadeiras
O voto do relator Luiz Fux, que formou a maioria na ADO 38/DF, descreveu a “omissão clara e evidente” do Congresso em revisar a proporcionalidade das bancadas e registrou que, para corrigir a sub representação de Estados com crescimento populacional, “necessariamente se terá de reduzir o número de assentos para outros” – o que gera um “verdadeiro entrave federativo”. Com isso, o STF reconheceu a mora legislativa, mas fixou prazo (30/6/25) apenas para que o Legislativo redistribua as cadeiras “hoje existentes”, preservando o teto de 513 deputados definido pela LC 78/1993.
Além disso, determinou que, se o prazo não for cumprido, caberá ao TSE definir, até 1/10/25, o número de representantes de cada unidade federativa, “observado o número total de parlamentares previsto na LC 78/93” – isto é, sem aumento do total.
A ratio decidendi da decisão, portanto, parte de um jogo de soma zero: acrescentar cadeiras a um Estado implica subtrair de outro, pois o total de 513 é tomado como dado constitucional legal. O projeto em discussão na Câmara (PDL 327/23), que pretende elevar esse total para 538, contorna justamente o dilema apontado pelo STF – evitando perdas ao simplesmente criar novos assentos – mas não encontra amparo no fundamento do julgamento, que se limitou a ordenar a redistribuição e não a expansão do Legislativo.
Em síntese, enquanto a ADO 38 exige a correção da distorção populacional dentro do limite já existente, o movimento político atual visa alterar o próprio referencial numérico, afastando se da lógica decisória firmada pelo Supremo.
Os projetos legislativos já apresentados: Da redistribuição à proposta de criação de novas vagas
A discussão sobre representação proporcional entrou na agenda do Congresso ainda em 2023, quando foi protocolado o PLP 148/23 (deputado Pezenti). O texto limitava se a recalcular as bancadas dentro do teto de 513 cadeiras, aplicando ao Censo 2022 o método dos quocientes populacionais, sem que nenhum estado ficasse abaixo de oito nem acima de setenta deputados. O art. 1º já exibia a nova tabela completa, enquanto a justificativa reiterava que “não se propôs alteração” do total de parlamentares, justamente para cumprir a ratio decidendi do STF nas ADIns que vedaram regulamentação por resolução do TSE.
Com o avanço da ADO 38/DF no Supremo – que reconheceu a mora legislativa, mas pressupôs um jogo de soma zero – ganhou força, dentro da Câmara, a ideia de evitar perdas regionais por meio de acréscimo moderado de vagas. Em fevereiro de 2025, o presidente da Casa, deputado Hugo Motta, defendeu um acordo político institucional com Senado e STF para elevar o total de 513 para 527 deputados, isto é, criar 14 novas cadeiras e “compensar” os Estados que, de outra forma, perderiam representação. Esse balão de ensaio abriu caminho para iniciativas legislativas mais ambiciosas.
A principal delas foi o PLP 177/23, de autoria da deputada Dani Cunha. Originalmente concebido como simples alteração da LC 78/1993, o projeto transformava o número atual (513) de limite máximo em piso mínimo, permitindo aumentos futuros sempre que a demografia assim exigisse. Ao assumir a relatoria, o deputado Damião Feliciano apresentou um substitutivo que, em vez de cláusula aberta, cravou imediatamente o acréscimo de 18 vagas, totalizando 531 deputados a partir das eleições de 2026, sem subtrações de bancadas estaduais.
O substitutivo foi submetido a regime de urgência e aprovado em 6/5/25 por 270 votos a 207, com impacto fiscal anual estimado em R$ 64,6 milhões segundo a Diretoria Geral da Casa. A arquitetura do texto preserva todos os Estados que hoje superam a cota populacional – Rio de Janeiro, Paraíba, Bahia, Piauí, Rio Grande do Sul, Pernambuco e Alagoas – e distribui as 18 novas cadeiras entre nove entes sub representados: Pará e Santa Catarina (4 cada), Amazonas e Mato Grosso (2 cada), Rio Grande do Norte, Paraná, Ceará, Goiás e Minas Gerais (1 cada).
Do ponto de vista constitucional, o movimento representa uma mudança de paradigma: desloca se do comando do STF – que exige mera redistribuição – para a criação de espaços legislativos adicionais, contornando o “entrave federativo” destacado no voto do relator Luiz Fux. O texto segue agora para o Senado Federal, onde precisará de maioria absoluta em dois turnos, além de eventual mediação com o próprio Supremo caso o aumento seja questionado por violar a ratio decidendi fixada na ADO 38.
Em resumo, a tramitação revela três caminhos simultâneos: (i) o modelo estritamente proporcional do PLP 148/23, fiel à jurisprudência da Corte; (ii) a proposta de ampliação moderada (527 cadeiras) que ainda circula nos bastidores; e (iii) o substitutivo do PLP 177/23, já aprovado na Câmara, que institucionaliza um salto para 531 parlamentares. O desfecho agora depende da convergência (ou colisão) entre essas alternativas, do cálculo político dos senadores e da eventual reavaliação do STF quanto aos limites de sua própria decisão.